Tuesday, 07 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A quinta dos infernos

CASO SARNEY-MURAD

Gilson Caroni Filho (*)

Ao contrário do que sugere o título, não trataremos neste artigo de nenhuma minissérie televisiva. Embora com ingredientes folhetinescos, a trama que nos interessa envolve mídia e poder. A ação se passa em terras maranhenses e seus protagonistas têm origens distintas e propósitos inconfessos. Encabeçado pela governadora maranhense, Roseana Sarney, o vaudeville conta, ainda, com a participação do Poder Judiciário e da Polícia Federal em roteiro assinado, via fax, pelo Poder Executivo. Para não sermos injustos e em respeito aos sempre vilipendiados direitos autorais, destacamos que é a continuação de chanchada iniciada nas oficinas de criação do Tribunal Superior Eleitoral, que tem revelado insuspeita vocação para criar eleitores rousseaunianos por regulamentação extemporânea.

A "quinta" não é uma propriedade rural, embora pudesse ser, mas o dia da semana em que o impensável para muitos aconteceu: a Executiva do PFL formalizou sua saída do governo, depois de oito anos de comunhão parcial de bens, ministérios e centenas de cargos de segundo escalão.Separação tão amigável que a parte que deixa três cômodos do lar preserva dois mil cargos, o carro de passeio do casal e o jogo de talheres oferecido por Washington na cerimônia do casamento realizado em 1994. Ambígua em alguns casos, ambivalente em outros, a imprensa viveu dias de frenesi em suas editorias de Política, e a contribuição de alguns articulistas pode ser extremamente pedagógica na revelação dos interesses em jogo.

Iluminismo transitado em julgado

Se na ditadura militar os pressupostos da institucionalidade precisavam ser protegidos de uma imprensa investigativa, o regime que o sucedeu, produto de transação negociada pelos estratos dominantes, parece, pela debilidade de origem, necessitar da proteção de uma imprensa a ele associada. O que em qualquer república consolidada seria visto como mera crise no bloco de poder passa a ser vendido como possibilidade de crise institucional. As bolsas registram queda, o dólar dispara e os juros acendem a luz vermelha. As vivandeiras se mostram encantadas não por vislumbrar a nova "noite dos generais" (não são tolas), mas pelas recordações que a histeria instalada lhes traz. Tranqüilizemo-nos todos. Não há bonapartismo no ar embora, como tem enfatizado o cientista político Emir Sader, haja condições objetivas para uma "fujimorização" em alguns países do continente, em especial Argentina e Colômbia. O que nos interessa no presente texto é o modus operandi de certos setores da mídia. A rapidez com que saem a campo para homologar as ações do poder. A esquizofrenia com que tentam abafar o que eles mesmos, coerentes com sua função histórica original, denunciaram. Deixam de ser informativos para se tornarem normativos e legitimadores das instâncias dominantes do campo político.

Voltemos à trama que motivou este texto. Em sua primeira parte, uma decisão do TSE, provocado por consulta do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), estabeleceu a verticalização das coligações eleitorais. No âmbito regional, as agremiações só podem reproduzir as alianças estabelecidas para a disputa do Executivo Federal. Ficam relegadas ao segundo plano as especificidades locais. O primeiro impulso de alguns colunistas e acadêmicos ? ambos sempre de plantão ? foi sair em defesa da medida, alegando que ela finalmente daria aos partidos um caráter nacional. Fortalecendo a democracia, os eleitores veriam nas legendas interesses racionalmente articulados e conteúdos programáticos em consonância com as práticas adotadas na disputa eleitoral. Rousseau bateria palmas, no que seria seguido por todos os pensadores contratualistas da teoria política clássica.

Algumas colunas, em especial "Coisas da Política", da jornalista Dora Kramer, no Jornal do Brasil, exultavam com o "senso republicano" do Judiciário. Assim, de afogadilho, regulamentando matéria que deveria ter regido a eleição presidencial anterior, a Justiça fazia o papel de Ariadne, ajudando o Teseu republicano a derrotar o Minotauro oligárquico. Pouco importa se tal decisão foi tomada a sete meses do pleito, com os principais atores se deslocando no cenário da legalidade vigente. Se a suposta nobreza dos fins justifica os meios, às favas com escrúpulos legalistas. Jarbas Passarinho, quem diria, fez escola no colunismo político áulico. Para derrotar a esquerda ou candidatura por ela considerada representante das forças do atraso, valeriam todos os expedientes de quem está de posse da caneta? Um retrocesso institucional, quem sabe, não poderia ter o aval da colunista se trouxesse uma promessa modernizadora em longo prazo como pretexto?

A fragilidade argumentativa dos que defendem a medida do TSE é tão flagrante que não vale a pena esforço reflexivo para refutá-la. Bastam algumas indagações. Desde quando cidadania é obra de regulamentação judicial extemporânea? Que lei anula a concretude dos interesses locais que efetivamente mobilizam os eleitores? Desde quando uma abstração chamada "União" refunda a realidade regional? Em que país democrático o eleitor se tornou "racional" por dispositivos legais? Quem nos assegura que o tiro dos "bem-intencionados" não sairá pela culatra e as eleições federais serão decididas pelas demandas efetivas das unidades federativas? O engessamento eleitoral não seria um tiro a mais no nosso combalido sistema federativo? Passar ao largo dos desdobramentos suscitados por estas questões parece ser a regra-mor dos defensores de um "Iluminismo transitado em julgado".

O espanto do articulista

O segundo passo da operação consistiu ? com apoio de acadêmicos e diretores de institutos de pesquisas ? em afirmar que não havia como provar que o candidato tucano seria beneficiado com a mudança repentina de regras, descaracterizando assim uma motivação casuística. Perfeito. Assim como o crime exige a prova de um corpo, o casuísmo solicita um beneficiário explícito, pouco importando o ordenamento legal rompido. Às favas agora com os mais rudimentares fundamentos da lógica formal e com os princípios jurídicos mais elementares.

Se tal episódio provocou estremecimento na base governista, a operação de busca e apreensão de documentos, por ordem judicial, na sexta-feira, 1/3, na sede da Lunus, empresa da governadora Roseana Sarney, e do marido, Jorge Murad, precipitou o terremoto que culminou com a ruptura formal do PFL. Ninguém, em sã consciência, é contra investigações que visem ao desbaratamento de esquemas de apropriação irregulares de recursos públicos. Não cabe à imprensa endossar pedidos de tratamento diferenciado em função de cargos ou projeção dos envolvidos. Mas a rapidez com que a iniciativa foi legitimada surpreende qualquer leitor mediano.

Com argumentos absolutamente inusitados, Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo de 5 de março, questionava a legitimidade dos protestos da governadora maranhense contra a ação da Polícia Federal. Faltava, segundo o articulista da página 2, base moral para quem não protestou contra a invasão do jornal paulista durante o governo Collor. É o caso de se indagar: se Roseana, então deputada federal, tivesse empenhado solidariedade à Folha naquela ocasião teria assegurado um espaço de defesa incondicional naquele veículo? Pela trajetória profissional do jornalista, devemos conceder a dúvida de que tal raciocínio foi um deslize corporativo e nada mais.


"É curiosa a extrema seletividade com que a governadora Roseana Sarney reage ao que chama de arbítrio (a invasão do escritório de seu marido, Jorge Murad). Não consta, por exemplo, que Roseana tenha pedido ao PFL que rompesse com o governo Collor quando este ordenou a invasão da Folha em 1990."


No Globo de 7 de março, em artigo intitulado "Momentos de paranóia política", Luiz Garcia, com presteza, tece considerações sobre paranóias e teorias conspiratórias. Como não poderia deixar de ser, em meio a todo o imbróglio, há sempre um espaço dedicado ao PT. Referência obrigatória enquanto exemplo do que deve ser evitado a todo custo no sistema político brasileiro.


"O clima chegou a tal ponto que o governo paulista aceitou a presença de um criminalista, deputado do PT, acompanhando de perto as investigações. Num momento de bom senso, essa extraordinária exceção não seria criada (…) Normalmente, o advogado que representa a vítima só interfere no processo na etapa judicial. A exceção aberta para acalmar o PT cria um precedente perigoso. No fim das contas, o advogado se portou bem e acabou reconhecendo que não acontecera crime político algum."


Quer dizer que se o deputado petista tivesse discordado dos métodos investigativos teria se portado mal? Deveria ele, para evitar "precedente perigoso", ter reconhecido antes de qualquer investigação a inexistência de crime político? Paranóia? O prefeito de Campinas não foi assassinado? Parlamentares do PT não receberam ameaças de morte de uma suposta organização política? Por que o articulista se espanta com o fato de o clima ter chegado a tal ponto?

Oficialismo elegante

Mas o alvo central é absolver o governo federal de qualquer participação na iniciativa judicial que motivou a ação da polícia em terras maranhenses. Vale a reprodução do parágrafo inteiro pela quantidade de coelhos que são alvos da cajadada discursiva do jornalista:


"Quem ignora o que já sofreu o governo federal em face da sanha inquisitorial dos jovens turcos do Ministério Público? [Primeiro coelho: os procuradores que tanto incomodaram o governo FHC.] A eles o país deve uma incansável luta contra variadas formas de corrupção: por outro lado muitos deles devem aprender a trabalhar direito, sem tratar indícios como provas e suspeitas como certezas [primeiro tiro no primeiro coelho]. Esse tipo de comportamento se agrava quando, para garantir que os inquéritos avancem, eles fazem públicas suas suposições, ou deixam vazar o que deveria ser sigiloso [segundo tiro no primeiro coelho]. Infelizmente, a imprensa [segundo coelho] aceita fazer-se sócia desse comportamento [primeiro tiro no segundo coelho].Comete o erro de considerar jornalismo investigativo ? que dá um trabalho danado [segundo tiro no segundo coelho] a aceitação cômoda e acrítica dos vazamentos [terceiro tiro no segundo coelho]. Segundo a teoria conspiratória, desta vez o vazamento não partiu das fontes habituais, e foi uma armadilha montada pelo Palácio do Planalto visando a desmoralizar a candidatura José Serra. Não vale: é preciso ter mais do que desconfianças e indícios para garantir que desta vez a imprensa não foi abastecida pelas fontes de sempre [só a revista Época, da organização para a qual trabalha o sr. Luiz Garcia, pode responder a esta questão]. Além disso, toda a indignaçãatilde;o da governadora e de seu pai não oculta o que houve antes do vazamento: um procedimento judicial legítimo."


Interessante, porque pedagógica, a revelação do motivo que levou ao ocultamento de tantos escândalos no governo FHC. Do Sivam à compra de votos para reeleição, passando pelo Proer e a participação direta de FHC na privatização das teles, a grande imprensa não teria tentado abafar o próprio esforço investigativo inicial por conveniência política. Pelo que se pode depreender do texto de Luiz Garcia, o fator explicativo seria uma preguiça macunaímica para apurar os fatos. Deve dar um trabalho danado…

Se, como informa o Jornal do Brasil, veículo decisivo no rumo que tomou o caso no plano político, houve o envio por fax de um relatório do delegado da Polícia Federal ao Palácio dando conta do desfecho da operação, torna-se evidente que o procedimento judicial não foi legítimo. A se confirmar o que afirma a secretária da Lunus sobre a recomendação que lhe foi feita pelo delegado ("Esse é o fax mais importante da sua vida, ele vai para o presidente"), a gravidade do caso não residiria numa patologia mental, mas no envolvimento do primeiro mandatário, como apontam as evidências paranóicas. Talvez mais danoso que o açodamento dos procuradores seja a prestimosa desenvoltura logística característica das "operações-abafa".

No mesmo dia, em sua coluna no Jornal do Brasil, Dora Kramer, mais uma vez adotando um discurso supostamente professoral e ditando orientações normativas aos atores envolvidos, sentenciava em seu elegante oficialismo diário:


"(…) Senão, o eleitorado não cairá no truque. Pois falando em eleitorado, há outro problema para o coletivo do partido: quantos votos será que acoplará ao seu patrimônio rumando à oposição? Aliás, onde arranjará com rapidez uma fantasia de oposição que convença àqueles que há anos vêem o PFL de braços com o poder, seja ele qual for (…) As versões disseminadas pelo PFL, segundo as quais o presidente Fernando Henrique poderia demitir o ministro da Justiça ou até mesmo abrir mão de José Serra como candidato, pecam por um detalhe: entre as características de FH não consta a tendência ao suicídio."


Obstáculo à democratização

O mesmo eleitorado sobre o qual se desconfia quando os índices não favorecem ao candidato governista desta vez, consciente, não "cairá no truque". Capacidade premonitória ou certeza de plantonista do poder? Será que os áulicos não se julgam mais valiosos do que efetivamente o são? Como destacamos em artigo anterior, o esvaziamento da mídia impressa tolheu, e em muito, seu poder opinativo. O leitor que busca uma coluna para formular um juízo articulado sobre determinado tema elege o articulista com quem tem afinidade ideológica.

Em suma, no caso da página 2 do JB: o cidadão não vai votar em Serra porque lê Dora Kramer. Ele, na verdade, lê Dora Kramer porque já decidiu votar em Serra. Afinidade eletiva que anula a fantasiosa pretensão de ser "formadora de opinião". Serge Halimi em seu excelente Os novos cães de guarda (Vozes), vaticina:


"Meios de comunicação de massa cada vez mais presentes, jornalistas cada vez mais dóceis, uma informação cada vez mais medíocre. Ainda durante muito tempo, o desejo de transformação há de esbarrar nesse espetáculo. Diante de um partido não declarado, de uma oligarquia da qual nada se deve esperar, é preferível ir à procura e encorajar as vozes dissidentes, conscientes do caráter irreversível de sua marginalidade midiática." (pág. 48)


Se tal munição foi usada numa simples crise de bloco de poder, imaginemos o que estaria ocorrendo caso houvesse uma efetiva crise hegemônica com forças de oposição reunindo reais condições de chegar ao aparato estatal. Mais uma vez, reiteramos o eixo central de nosso artigo anterior: enquanto empreendimento enredado a múltiplos espectros político- empresariais, a mídia é um obstáculo colossal à democratização da sociedade. Os episódios dos últimos dias só vêm a legitimar os que buscam espaços alternativos para ação no campo midiático. Tarefa tão colossal quanto urgente.

(*) Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro