Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

A reportagem, parte 2

SALA DE AULA

Pedro Celso Campos (*)

1. Como fazer

O planejamento, a partir da pauta, é fase essencial da boa reportagem. É o plano que vai dirigir a pesquisa de campo e orientar as ações futuras do trabalho, evitando perda de tempo. Antigamente a pauta era uma "camisa-de-força" da qual o repórter não podia se desviar um milímetro. O repórter do grande texto precisa ter autonomia para reinventar a pauta quando for necessário. Às vezes o repórter faz uma longa viagem e, se a pauta "furar", caberá a ele a iniciativa de criar outra adaptada ao novo contexto, comunicando ao editor. Naturalmente o jornal e os leitores esperam essa criatividade do jornalista.

Além de discutir a pauta com sua equipe, o repórter precisa contar com bom espírito de cooperação para trabalhar em grupo. Mesmo quando a reportagem exige um trabalho solitário de apuração, o repórter precisa contar com uma retaguarda na redação que vai desde o contato responsável pela liberação de recursos até a movimentação de fotógrafos, do Departamento de Arte (que pode ir adiantando a ilustração da matéria), o pessoal de pesquisa (que vai buscando dados para complementar a matéria se a publicação é urgente) etc. O jornal é uma grande equipe, e a função das chefias é fortalecer a cooperação interna. (Trataremos com mais detalhe o tema A pauta e a pesquisa)

Na hora de transformar as anotações no texto da grande matéria, o repórter deverá seguir um novo planejamento, discutindo com o editor da área a melhor abordagem, o ângulo da matéria, os destaques principais, afinal, o eixo em torno do qual o texto vai girar. Fatos de última hora podem determinar alterações nos destaques principais, daí a importância da sintonia com a chefia da redação.

O moderno processo gráfico dá ao repórter e ao editor de arte possibilidades muito amplas de tratar a matéria visualmente para que tenha boa estética na página, agradando ao leitor não só pela forma da narrativa como também pelas ilustrações, tamanho do corpo, inserções de "olhos" ou "janelas", linhas finas, legendas criativas, box explicativo, quadro de serviço.

A reportagem é sempre um gênero informativo acrescido de interpretação e opinião. De acordo com o assunto tratado, poderá ser também um texto recreativo, pois a crônica social, a crônica esportiva, o texto cultural também podem ter a forma de reportagem.O que caracteriza a reportagem é a quantidade de dados nela contidos a partir do trabalho de campo. Pode-se fazer a notícia, a coluna ou a crônica sem sair da redação ou do escritório do produtor independente (como está virando moda), usando apenas telefone, fax, computador, internet, biblioteca, jornais do dia etc. Mas é praticamente impossível produzir uma grande reportagem sem árduo trabalho externo, de rua. Daí vem a riqueza de dados da reportagem. É ela que sustenta o jornalismo naquilo que ele tem de melhor.

"Trabalho de rua" é tomado em sentido figurado, segundo Clóvis Rossi no prefácio do livro A aventura da reportagem (Dimenstein, Gilberto, e Kotscho, Ricardo, São Paulo, Summus, 1990): "Rua pode ser a rua propriamente dita, mas também pode ser um estádio de futebol, a favela da Rocinha, o palanque de um comício, o gabinete de uma autoridade, as selvas de El Salvador, os campos petrolíferos do Oriente Médio. Só não pode ser a redação de um jornal."

Entre os requisitos da reportagem destaca-se o aspecto humano. O repórter usa máquinas para coletar os dados; usa máquinas para redigir a matéria; o jornal usa máquinas para imprimir e distribuir suas edições; o leitor usa máquinas para ir até a banca comprar seu exemplar… mas ninguém escreve para máquinas. Escreve-se para pessoas de carne e osso, que se definem por variáveis de idade, sexo, classe social, aspirações, situação econômica, local de residência, escolaridade, opção política, formação cultural.

Essas pessoas se interessam pelo drama vivido por outras pessoas porque, de algum modo, sentem-se envolvidas com os fatos na imensa aldeia global onde tudo afeta a todos cada vez mais. Por isto as agências e os jornais exploram o lado humano de suas histórias, despertando o interesse dos leitores, apesar de serem acusadas de explorar a miséria alheia.

Segundo Clovis Rossi, "reportagem é uma coisa paradoxal, por se tratar, ao mesmo tempo, da mais fácil e da mais difícil maneira de viver a vida. Fácil porque, no fundo, reportagem é apenas a técnica de contar boas histórias. Todos sabem contar histórias. Se bem alfabetizado, pode-se até contá-las em português correto e pronto: está-se fazendo uma reportagem, até sem o saber. Difícil porque o repórter persegue esse ser chamado verdade, quase sempre inatingível ou inexistente ou tão repleto de rostos diferentes que se corre permanentemente o risco de não conseguir captá-los todos e passá-los todos para o leitor". Rossi cita um exemplo prático para ilustrar sua abordagem:


"Suponha que você esteja numa ponte sobre uma rodovia qualquer. De repente, um carro passa para a pista contrária e bate de frente num caminhão. Morre o motorista do carro. Qual é a verdade? O motorista atravessou a pista e, logo, foi o culpado. Mas a função do repórter é ir atrás das causas, e estas não ficam visíveis nem mesmo no exemplo simples usado. O motorista pode ter perdido a direção porque dormiu, porque estava bêbado, porque sofreu um colapso e morreu no ato, porque quebrou a barra de direção. Ou seja, mesmo que você seja testemunha ocular de um fato, nem por isso fica seguro de que sabe tudo a respeito dele. Ora, jornalistas quase nunca são testemunhas oculares de fatos menos corriqueiros. Em geral, eles se passam nas sombras dos gabinetes, no escurinho dos palácios, nos fundos dos morros e favelas e assim por diante. Logo, resgatar a ?melhor versão possível da verdade? ? como definiu em uma palestra em São Paulo o repórter do Washington Post Carl Bernstein, que, com Bob Woodward, desvendou o caso Watergate ? é uma tarefa ingrata. Para executá-la, sejamos francos, exige-se muito mais transpiração que inspiração. Mais esforço físico que intelectual. Exige que se gaste a ponta do dedo telefonando para todas as pessoas que possam dar ao menos um fragmento de informação. Exige que se gaste a bunda nos sofás das ante-salas de autoridades ou ?otôridades?, na espera de que elas atendam o repórter e lhes dêem mais um pedacinho da informação. Exige que se gastem as pernas e as solas dos sapatos andando atrás de passeatas, comícios ou fugindo da polícia. Exige, ainda, gastar a vista lendo livros, revistas, jornais, documentos, relatórios, certidões, o diabo, atrás de detalhes ou confirmações ou, no mínimo, como ponto de partida para se iniciar um trabalho com um mínimo de informações prévias. Gasta-se a vista também no simples exercício de olhar com olhos de ver. Tem muita gente que olha e não vê detalhes que acabam compondo pedaços por vezes vitais de uma reportagem."


2. Por que fazer

O livro-reportagem de Gilberto Dimenstein sobre meninos de rua (A guerra dos meninos ? Assassinatos de menores no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1990) não acabou com o problema do menor abandonado nas ruas do país e nem com o extermínio de menores. Mas, pela seriedade do trabalho, quem pode afirmar que esse texto não causou medidas positivas nos bastidores do poder ou mesmo na conduta interior das pessoas em relação ao menor? Uma das autoridades entrevistadas, que na época era senador, hoje está em condições de fazer alguma coisa para resolver esse problema social. Na época, o senador Fernando Henrique Cardoso propôs uma CPI para investigar os grupos de extermínio, após a publicação do livro-reportagem.

Caco Barcelos não acabou com as arbitrariedades da Polícia Militar de São Paulo ao denunciar os crimes da corporação em Rota 66 ? A polícia que mata, mas contribuiu para alertar a opinião pública sobre a impunidade dos policiais. Formar a consciência do cidadão e ajudá-lo a levantar a voz para que as autoridades cumpram o seu dever, colocando assassinos potenciais atrás das grades, e não atrás de uma arma paga com o dinheiro do povo, também é função da reportagem-denúncia.

Entendemos melhor, hoje, os bastidores da imprensa na Era Vargas depois de Chatô ? O rei do Brasil, de Fernando Morais. Só agora compreendemos o que se passou na colônia de imigrantes japoneses que vivia no Brasil no final da Segunda Guerra Mundial, depois de ler o livro-reportagem também de Fernando Morais Corações sujos. A boa reportagem revela a realidade em todos os seus detalhes, com todas as suas nuances. Por isso, muitas vezes ela permanece para sempre, não tem a vida efêmera de uma notícia factual, que é superada em 24 horas de circulação do jornal.

Os jornalistas devem ser estimulados a escrever mais porque têm sensibilidade para olhar os fatos a partir do interesse do leitor. "A nós, jornalistas, cabe a tarefa ? não tanto heróica, mas essencial ? de não deixar passar em branco as páginas que o acompanhamento do cotidiano nos impõe escrever", afirma Lúcio Flávio Pinto no livro Repórteres.

3. Como começar

Se a grande reportagem deve ser discutida com o editor por seu peso na edição do dia, a abertura da matéria não precisa levar ninguém ao sofrimento.

O importante, segundo Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (Técnica de reportagem ? Notas sobre a narrativa jornalística, São Paulo, Summus, 1986), é que o texto tenha uma boa narrativa, um relato humanizado, que cause impressão e que trate dos fatos objetivamente, tanto numa reportagem de ação (com o fato em andamento: uma votação importante, uma competição esportiva, uma ação policial), como numa reportagem de fatos (em que se dão todos os detalhes de um evento, como a morte de um presidente, a execução de um condenado famoso), ou numa reportagem documental (baseada em depoimentos, de cunho pedagógico, como numa matéria sobre o relacionamento homem-mulher em Cuba, por exemplo).

Na prática do dia-a-dia, é preciso que a abertura da matéria seja criativa e interessante para prender a atenção do leitor. Por isso, o conteúdo informativo das frases iniciais que vão introduzir os parágrafos não deve ser completo a ponto de esvaziar a seqüência do texto. É preciso faltar sempre um dado essencial para criar expectativa no leitor, a exemplo do que se faz nas chamadas da primeira página, despertando a curiosidade. Exemplo: "Foi um dia trágico. Logo pela manhã o tiroteio entre milicianos cristãos, sunitas, drusos e palestinos deixou em chamas todo um bairro de Beirute. À tarde vieram notícias de nova retaliação israelense no sul, com a morte de 43 pessoas…"; ou "O assassinato de um medíocre arquiduque, por terroristas que tinham motivação muito particular, mergulhou o mundo na primeira guerra mundial deste século…"

Também se pode abrir o texto com uma historinha que reflita o tom geral da matéria (alegria, tristeza,esperança) ou que defina os atores, como políticos, militares, guerrilheiros, ministros.

Algumas aberturas de matéria na Veja de 2/2/2000: "A Vasp está fazendo uma guerra para tentar recuperar alguns pontos no mercado de aviação." (No box, um quadro comparativo de preços com as demais companhias aéreas e um título relacionado com a abertura da matéria: "A guerra dos preços"); "A ousadia da senadora Heloísa Helena, do PT de Alagoas, aquela que deu voz de prisão ao ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes, acabou custando caro."; "Há um empresário no Piauí que atende pelo nome de Mazuca. Ele foi goleiro de um time de futebol do interior, depois comprou uma borracharia, um trio elétrico e uma distribuidora de refrigerante."; "Quem disse que felicidade não se compra? Compra-se, sim, como bem sabem os cidadãos daquela moderna terra prometida, os Estados Unidos da América."

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari dão outros exemplos de abertura criativa:

** "Lápis, papel e carbono. Com esses instrumentos, um contingente de 45 mil pessoas (apenas no Rio) movimenta a astronômica cifra de Cr$ 400 a Cr$ 500 milhões por dia, cerca de Cr$ 10 bilhões por mês… (segue matéria sobre o jogo do bicho).

** "Pouco antes da meia-noite de segunda-feira passada, o telefone tocou na casa do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Jair Meneghelli. Na outra ponta da linha, o empresário Roberto Della Manna, coordenador do Grupo 14, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), propunha um encontro entre os dois no dia seguinte, em horário a combinar."

** Oito horas da noite. O vento sopra, vindo do lago, e faz uma chuvinha miúda bater nas janelas da Avenida das Figueiras, na parte residencial de Lausanne, Suíça. Também afugenta o cortejo habitual de turistas que vêm, do mundo inteiro, ver a casa do escritor vivo mais popular do mundo, Georges Simenon."

** "Buenos Aires ? Silvia Mabel Isabela Valenzi era loura, tinha os olhos azuis e quem a conheceu diz que era linda. Tão bonita que a chamavam de ?A Gata?. Devia ter uns 25 anos quando deu à luz no Hospital Provincial de Quilmes, na Grande Buenos Aires."

** "À luz dos lampiões, numa noite de lua cheia, o casal de meia idade se levanta do banco em que estava conversando, de braços dados, para comprar pipocas…"

** "?Bem-vindos sejam todos à Pracinha de São Cosme, São Damião e do Um.? Um cartaz mal-escrito chama o povo à praça, onde existe um altar para a devoção aos santos meninos e um viveiro com mais de 20 passarinhos, o local mais freqüentado da favela do Rebu, em Senador Camará."

(*) Professor da Unesp-Bauru, SP

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