Tuesday, 10 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

A volta de Dona Benta

AUTORES & LIVROS

Deonísio da Silva

Depois da Bíblia, este livro de receitas culinárias já foi o mais vendido no Brasil em várias décadas. Antes de narrativas esotéricas ou mágicas, sobrepondo-se a documentos políticos e superando romances de larga aceitação, Dona Benta chegou a mais de um milhão de exemplares.

A revista Veja desta semana dedica-lhe quase duas páginas, não na seção de livros, mas na de comida. O título é Dona Benta sem rugas. O texto de Bel Moherdaui adota um tom leve e informativo, bem ao gosto do leitor interessado nas linhas gerais de um livro.

A autora diz que o historiador de gastronomia Ricardo Maranhão (professor da PUC de São Paulo) exagera ao dizer que “até os anos 70, ninguém cozinhava no Brasil sem ter o Dona Benta por perto”. Mas é um exagero que soa a figura de linguagem que expressa a ternura e a receptividade com que o livro foi acolhido de geração em geração.

As atuais 1.120 páginas que levam o livro a pesar 2,5 quilos custam R$ 80 e trazem mais de 1.500 receitas, duas centenas delas até então inéditas. A edição é da Companhia Editora Nacional, cuja diretora de projetos, Beatriz Yunes Guarita, brinca: “na capa, fizemos um lifting no rosto da velhinha”.

As receitas são populares. Há trinta delas de pratos em que o arroz domina absoluto e apenas cinco de risotos.

Apesar de algumas exclusões indispensáveis ? mudaram, não apenas alguns ingredientes, mas também evoluíram certas designações que lhe eram próprias ? o livro mantém o sabor narrativo das antigas explicações, de que é exemplo o trecho transcrito, que ensina como matar um peru:

“Pouco antes de matar o peru, dê-lhe, às colheradas, um bom copo de pinga e, quando ele ficar bem bêbado, caído, mate-o”. Quantos poderão fazer isso hoje, depois de consultar esta 75? edição? O peru chega aos lares devidamente congelado e nenhuma aguardente haverá de aquecê-lo. A pobre ave chega morta e sabe-se lá como foi dolorosa a triste hora de sua partida. Os vegetarianos não deixam de alertar-nos para a violência que praticamos contra aves e animais.

Dona Benta sobreviveu ao forno de microondas e à panela de pressão. Suas receitas foram adaptadas, mas as suas grandes marcas continuam sendo as mesmas. São literárias. Dona Benta e Tia Nastácia estão presentes no imaginário de multidões de leitores, sobretudo daqueles que depois se tornaram também escritores e que mantiveram os olhos postos no exemplo de Monteiro Lobato, o criador dos tipos inesquecíveis do Sítio do Picapau Amarelo.

O melhor de livros na Veja desta semana estava em “comida”. Lembrei-me de algumas metáforas. “Devorar um livro” continua sendo sacada para designar o gosto por leitura. A revista já estava nas bancas quando o escritor Rubem Fonseca, devorado por multidões de leitores, no Brasil e no exterior, ganhou manchetes de vários jornais hispano-americanos ao receber o Prêmio Juan Rulfo e, surpreendentemente, falar na solenidade da entrega, ao lado do Prêmio Nobel Gabriel García Márquez. Fotografado de cabeça inteiramente raspada, ele ganhou a primeira página da Folha de S. Paulo no domingo.

Mas não deu tempo de figurar ao lado de Dona Benta ou de Harry Potter e a Ordem da Fênix, de J. K. Rowling, na tradução de Lia Wyler (Editora Rocco), a nova coqueluche literária do mundo.

Por uma dessas ironias da diagramação, ao lado desta última resenha, o escritor e jornalista Diogo Mainardi, com seu habitual e polêmico pessimismo, celebrado pela liderança de mensagens enviadas à revista, escreve sobre a propaganda política, “o maior problema do Brasil”, que no título virou “a maior praga brasileira”. Se não apenas os escritores brasileiros, mas os autores de um modo geral, pudessem invadir o latifúndio dos políticos na mídia, muitos livros alcançariam êxito semelhante ao de Dona Benta.