Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Agilidade sem responsabilidade

UOL COM PRESSA

A busca voraz do chamado "furo" se tornou a marca registrada do mercantilismo da imprensa nacional. Uma voracidade que, muitas vezes, não respeita famílias em estado de pesar pela iminente perda de uma pessoa estimada. A ânsia por veicular a notícia em primeira mão teima em perdurar em diversos canais, em lugar da profundidade aliada a uma saudável agilidade como ferramenta de trabalho. No jornalismo impresso, de uma forma geral, percebe-se a tendência à exploração mais bem fundamentada do fato, exigindo do elenco rapidez não pela manchete superficial bombástica, mas sim os elementos factuais com sua contextualização e suas implicações, para proporcionar ao leitor uma gama mais segura de dados para a construção do seu ponto de vista. É uma inclinação atual muito tímida, é verdade, mas tem-se tentado praticar algo que se aproxima mais do verdadeiro jornalismo.

Infelizmente, as exceções ainda existem e devem ser constantemente ressaltadas com a finalidade de dizimá-las. Uma delas aconteceu nesta semana, no terreno minado, na grande aldeia sem lei que é a internet, atingindo um assunto que por sua própria natureza deixa clara a necessidade de cuidados e certezas bem calçadas: o acidente grave e a perspectiva de morte de uma personalidade de grande repercussão.

Na página de abertura de terça-feira do UOL, o provedor mais acessado do país, sempre é posto em destaque um título chamativo do principal acontecimento do momento. Na referida abertura, estava estampada: "Marcelo Fromer tem morte cerebral, diz amiga do músico." O internauta é levado a ler o conteúdo e constata, em leitura e interpretação emotivas, o falecimento do artista, ídolo de toda uma geração, sem perceber que não há o referendo técnico de médicos. Horas depois, após vários leitores supostamente terem sentido a comoção da perda, eis que surge a correção: "Médicos não confirmam morte cerebral de Marcelo Fromer".

A diferença é justamente o chamariz atribuído: enquanto a primeira manchete abre a home page do provedor, a segunda foi inserida embaixo de uma fotografia, quase parecendo uma legenda.

Para nossa tristeza, houve a confirmação e o país lamentou a morte do guitarrista dos Titãs, mas essa não é a questão central. Houve delitos éticos por todos os lados. Aproveitar-se da fragilidade dos sentimentos de uma pessoa próxima à vítima para alimentar o deleite do furo foi o mais revoltante. A amiga em questão ouviu de um médico a notícia da morte cerebral, pode-se argumentar em defesa, justificativa que cai em ruínas se for considerada a possibilidade de o repórter ouvir o próprio médico. Se ele não confirmasse, então não há a notícia. E se Deus agraciasse o músico com uma nova chance de viver, quem seriam os culpados? O provedor ou a amiga? Os dois, caso houvesse necessidade de prévia autorização para veiculação da afirmação.

Mesmo com o consentimento, há de se levar em conta que o estado emocional desta amiga não permitia um julgamento mais apurado de seus atos. A saúde é uma pauta muito séria para ser submetida a aventuras no labirinto do "furo" irresponsável. A tecnologia está disponível, há maior liberdade de acesso a documentos e outros instrumentais para tornar públicos os fatos. A "notícia em primeira mão" deve ser a conseqüência salutar de um casamento entre a agilidade, a fundamentação, a profundidade e a responsabilidade. Do contrário, mais vidas poderão ser ceifadas mesmo antes de realmente chegarem a seu destino inexorável.

(*) Jornalista, Campo Grande, MS

 

  

                     

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