Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Alberto Dines

ELEIÇÕES 2002

"A voz da ditadura", copyright Jornal do Brasil, 23/03/02

"O regime militar está enterrado há 17 anos, mas a retórica do cinismo foi ressuscitada na tarde de quarta-feira, no Senado da República, por aquele que foi o seu intérprete maior. A voz era de Sarney mas quem falou foi a ditadura. José Sarney, avalista dos casuísmos e fiador das trapaças, o coronel dos jagunços preferido pelos generais, emergiu do lodaçal onde está enfiado há mais de quatro décadas para, mais uma vez, solapar o processo democrático com pérfidas manobras.

A mesma voz esganiçada pela emoção barata que acusava o velho e bravo MDB cada vez que a Arena queria emascular o Congresso fez-se ouvir novamente. Agora o ?revolucionário? Sarney reaparece com o surrado uniforme do retrocesso político tentando desmoralizar o processo eleitoral antes mesmo de formalmente iniciado.

A sugestão de pedir fiscais da ONU e da OEA para acompanhar as próximas eleições é coisa de Robert Mugabe, o tirano do Zimbábue que faz da hipocrisia e da impostura as ferramentas para sua eternização no poder.

Se Sarney e os demais oligarcas manifestam tanto desprezo pela instituição republicana que construímos com tanto sacrifício, isso deve-se às suas biografias, onde imperam a trapaça e a vassalagem ao arbítrio.

A sociedade brasileira soube resistir aos 21 anos dos Sarneys, ACMs, Malufs com os respectivos mentores e agora está erigindo uma democracia moderna, onde os três poderes constituídos, acrescidos do indomável Ministério Público, estão perfeitamente aptos a fiscalizar e garantir o Estado de Direito, assim como a normalidade do processo eleitoral.

Essa tentativa de internacionalizar a política interna é uma jogada de lesa-pátria, antinacional e deletéria, solerte tentativa de desmoralizar a Justiça Eleitoral e a nossa capacidade de construir uma sociedade decente. É um voto de desconfiança na democracia, que começou a funcionar com plenitude exatamente quando o celebrado ficcionista deixou o poder.

Na lamentável catilinária do Senado, o pai-sogro daquele milhão e trezentos mil reais achados nos cofres da Lunus tratou do assunto uma única vez, e nela encampou vergonhosamente a criminosa sétima versão da filha-genro, alegando tratar-se de dinheiro da campanha. Mas, se a campanha ainda não começou, esse não é um caso de polícia? Ou Sarney prefere chamar o FBI? Melhor seria pedir conselho à oligarquia dos Bush, que controla o Texas e a Flórida, dobrou a Corte Suprema e agora abancou-se como dona do mundo.

O presidente FHC disse que não precisamos de observadores internacionais, basta a mídia. Trata-se de um wishfull thinking, idealização da realidade. Nossa mídia teve sua credibilidade maculada pela dupla Sarney-ACM e hoje não tem condições para desmascarar e desbaratar as oligarquias mediáticas regionais. A mídia faz o jogo do mercado, não tem responsabilidades públicas nem institucionais.

Convém notar que quarta-feira, no Maranhão, os canais de TV pertencentes à família Sarney transmitiram na íntegra e ao vivo o pronunciamiento do coronel-proprietário e não deram um minuto sequer à arrasadora resposta do senador Artur da Távola. Dia seguinte, quinta, a folha sarneisista de São Paulo dedicou duas páginas inteiras à patética arenga do senador muy amigo (inclusive com a íntegra) e menos de meia página à contestação. Na sexta-feira anterior, a mesma folha a serviço de Sarney, além do seu chocho artigo semanal, ofereceu na nobilíssima página de debates um complemento assinado pelo causídico Saulo Ramos, o mesmo que se encarregava de legalizar todas as ilegalidades do ex-presidente, inclusive a extensão do seu mandato.

Para desmascarar essa cumplicidade não precisamos importar a Press Complaints Comission (a comissão de queixas contra mídia da Inglaterra), basta ler o que escreve o ombudsman (ouvidor) da mesma folha sobre essa escancarada parcialidade.

Roseana Sarney ainda não se esborrachou nas sondagens eleitorais porque, nesse escândalo, grande parte dos editores e opinionistas preferiu priorizar o eventual vazamento de informações sobre a diligência policial e fechar os olhos ao colossal flagrante do botim apreendido. Miopia, oportunismo, partidarismo, relativismo moral – não importa o nome, a verdade é que essa quartelada midiática confronta a opinião do presidente da República: nossa mídia, apesar das honrosas exceções, ainda não tem isenção e/ou maturidade para arbitrar um processo eleitoral.

A prova disso está em outro dos tropeços de Lula quando, depois do longo silêncio, repetindo o que lera em alguns jornais e revistas, profetizou que estas eleições serão as mais sujas da história recente. Lula não tem o direito de esquecer-se de 1989, a não ser que pretenda compor-se com aqueles que na ocasião o prejudicaram. E como muito bem lembrou Ciro Gomes no último Roda Viva (TV Cultura), se Lula lidera as sondagens e anuncia uma temporada de baixaria está passando um atestado de tibieza e frouxidão.

A grande verdade é que Sarney e sua malta não confiam no Brasil e nos brasileiros. Olham-se no espelho e logo querem chamar os xerifes internacionais. Não carece, temos condições, sozinhos, de meter no xilindró os bandidos que há tanto tempo enxovalham nossa vida política."

 

"Baixarias da oligarquia", copyright Jornal da Tarde, 23/03/02

"Na quarta-feira, o ex-presidente José Sarney fez um discurso de mais de uma hora para defender a filha Roseana e desancar o governo. Sem apresentar uma mísera prova, mas despejando pencas de insinuações, o pai da pré-candidata do PFL disse que ela é vítima de uma armação para tirá-la do páreo presidencial. Nessa armação entrariam grampos telefônicos clandestinos, a disseminação de dossiês sobre a sua vida particular – e a devassa da Polícia Federal na Lunus, a empresa de que a governadora é dona, em sociedade com o marido Jorge Murad.

Por trás de tudo, como um satânico doutor No, estaria o candidato tucano José Serra, mancomunado com o ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira.

Sarney deu a entender que o procurador que pediu a busca e apreensão na Lunus, para investigar fraudes na Sudam, e o juiz que aceitou o pedido e mandou a PF executá-lo seriam peças dessa conspiração, a que não estaria alheio o presidente Fernando Henrique. Do R$ 1,34 milhão descoberto na firma, disse apenas que o genro Jorge ?recebeu doação de pré-campanha? e que ?a Justiça apure sua legalidade e tome as suas decisões?.

Para dar o troco, tomou a palavra o líder do PSDB no Senado, Artur da Távola. Ele reconstituiu, passo a passo, a história da operação na Lunus, informou que a Polícia Federal já fez ?mais de 70? buscas do gênero para descobrir quem passou a mão nas boladas de que a Sudam dispunha para desenvolver a Amazônia e explicou que, sendo o alvo do mandado judicial uma empresa e não ?a governadora?, como insistira Sarney, o juiz de primeira instância que o emitiu tinha competência para tanto, e nenhuma ?violência política? foi praticada contra o Estado do Maranhão.

Tudo bem. Quem acompanhou os discursos pelo rádio ou pela televisão tire as suas conclusões. Só que um certo número de brasileiros não teve essa oportunidade, porque a retransmissora da TV Bandeirantes no Maranhão, cujo concessionário é ligado ao clã Sarney, e a Rádio Mirante, a de maior audiência no Estado, da própria família do ex-presidente, cortaram a conexão com Brasília quando ele acabou de falar. É assim que a oligarquia Sarney promove os ?direitos individuais?, como o direito à informação, que o patriarca tanto acusou o governo de violar.

Isso ajuda a entender a posição de Roseana nas pesquisas. A mais recente sondagem do Ibope, que saiu nos jornais de ontem, dá 16% para Serra (queda de 3 pontos em relação à semana anterior) e 13% para Roseana (menos 4 pontos). Mas, enquanto a votação do tucano é praticamente a mesma em toda parte, a da pefelista mostra uma tremenda oscilação, variando de 21% no Nordeste a 9% no Sudeste. O eleitor típico da governadora é mulher, jovem, pobre, com poucos anos de estudo e nordestina – numa palavra, desinformada.

Essa é a reserva de caça das forças do atraso, dos Sarneys e dos ACMs.

As oligarquias estrebucham, mas ainda têm gás para queimar. Sempre há quem caia no conto com que os pefelês, mais a imprensa marrom, querem acobertar as maracutaias maranhenses que o Ministério Público vem levantando – e mesmo gente alfabetizada, que come três vezes por dia, engole a patranha de que foi Fernando Henrique quem soltou a polícia em cima de Roseana e que Serra montou uma central de espionagem no Ministério da Saúde. Na melhor das hipóteses, dizem que, ?nesse imbróglio todo, não tem um que preste; é tudo farinha do mesmo saco?.

As pesquisas indicam que a farsa consegue perturbar a cabeça do eleitor.

Segundo o Ibope, embora chocados com a dinheirama encontrada na Lunus e exposta em carne viva na televisão, sete em dez entrevistados acham que a investigação envolvendo o primeiro casal do Maranhão é ?política? – mas nem por isso concedem a Roseana o papel de Joana d’Arc que ela reclama: a sua rejeição já bateu nos 50%. Para a oligarquia, tudo é lucro. A esta altura do campeonato, dissipadas as esperanças de eleger a candidata que a publicidade fabricou, o seu negócio é fazer com Serra o que dizem que ele fez com Roseana – puxar-lhe o tapete.

Por isso, se os dois caem nas pesquisas, como acaba de acontecer, por causa do engodo de que ?não tem um que preste?, nem tudo parece perdido para os velhos coronéis. Como há muito chão pela frente, os pefelês e a sarneyzada não vão descansar enquanto não criarem um clima de opinião irrespirável para o tucano. Têm um par de aliados de ocasião: o PT, que sabe que o ex-ministro da Saúde é o pior adversário para Lula; e os setores da mídia e da intelectualidade que abominam FHC e topam tudo para não vê-lo fazer o sucessor.

A baixaria, que mal começou, vai ser daquelas de tirar as crianças da sala."

 

"De eleições e investigações", copyright Folha de S. Paulo, 23/03/02

"Considerando que há ?conotação eleitoral na exploração, pelos jornais, TVs e revistas, das denúncias de supostas irregularidades envolvendo Roseana Sarney? e levando em conta que ?há setores da comunicação que manipulam os fatos?, o candidato do PT à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sugeriu a criação, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de um ?comitê formado por partidos e entidades para fiscalizar a cobertura jornalística dos meios de comunicação? – segundo matéria de Gilse Guedes, no Estado de ontem. Jamais se ouvira de um político brasileiro – nem de Armando Falcão, em plena ditadura militar – uma manifestação tão explícita, em favor da censura à imprensa, como esta de Lula. E o que mais estranha é o fato de o Partido dos Trabalhadores, originado da luta da sociedade brasileira pela redemocratização – no que sempre foi essencial a garantia da liberdade de expressão -, não ter se preocupado em ensinar seu candidato a também ler a Constituição do País, que repudia, com a maior veemência institucional, qualquer tipo de censura prévia em território nacional. Mas a desastrada opinião do candidato petista é útil, para que se reflita sobre uma falta de entendimento que, certamente, não é só dele.

É natural, nas Democracias, que durante as disputas eleitorais, quando a sociedade tem que escolher seus governantes, os candidatos se submetam a avaliações e investigações – na vida pública e em suas atividades privadas – de maneira muito mais rigorosa e abrangente do que são avaliadas e investigadas as pessoas públicas, em outros períodos. A diferença se deve ao grau de interesse público. É preciso que a sociedade conheça a forma de atuação, os traços de personalidade e o comportamento habitual dos que pretendem governá-la. Mais necessárias se tornam essas informações, quando se considera o potencial de engodo público a que chegou o marketing político, via comunicação eletrônica de massas. Pois, graças aos efeitos especiais da camuflagem – ética ou estética -, biografias medíocres podem ser maquiadas e despreparos monumentais podem ser disfarçados, pelo uso de charmosos slogans, talentosos jingles e atrativos clipes.

É claro que a mídia, com a infinidade de assuntos e notícias que tem a tratar, não pode dar todo o destaque, durante todo o tempo, a todas as irregularidades, desvios de dinheiro público e falcatruas gerais, praticadas no vasto território nacional – pois não haveria espaço para transmissão nem capacidade de absorção de informações, nesse enorme volume. Sendo assim, terá mais destaque, nos veículos de comunicação – e nos períodos eleitorais – aquilo que denuncia um negativo estilo de conduta, que a sociedade corre o risco de ver generalizada, com a vitória de determinadas candidaturas. Uma oligarquia regional, por exemplo, pode ter seu sistema de atuação abafado pela mordaça comunicológica, imposta pelo coronelismo eletrônico que a sustenta. Mas, quando seus representantes pretendem estender seus domínios para uma comunidade muito mais ampla – o País inteiro, por exemplo -, não podem eles escapar da crítica, dos que têm a responsabilidade de informar a opinião pública.

Por outro lado, não é razoável supor que, por receio de hipotéticas suspeitas de parcialidade eleitoral, em favor do candidato do governo – conforme as acusações do clã Sarney, expressas na diatribe de seu ex-afável oligarca-chefe, proferida na tribuna do Senado -, o Ministério Público interrompa alguns de seus 70 processos de investigação, sobre desvios de recursos da Sudam, ou o Poder Judiciário se abstenha de despachos processuais – tais como a expedição de mandados de busca e apreensão – ou as autoridades policiais, encarregadas expressamente de cumpri-los, se omitam em sua função, correndo o risco de praticar crime de prevaricação. Por isso foi um outro disparate, do próprio Lula – pois não acreditamos que de sua parte aí houvesse um suspeito desejo de salvo-conduto de impunidade, para candidatos -, a tentativa de desqualificar um procedimento investigatório, dentro da estrita legalidade, sob a alegação de que ?deveria ter sido feito antes? (isto é, antes da candidatura da pessoa investigada). E só uma mentalidade incapaz de entender princípios elementares do Estado de Direito, como o que reza que ?todos são iguais perante a lei?, assim como a independência dos Poderes de Estado e a valiosa autonomia do Ministério Público, na defesa dos interesses da coletividade, imaginaria que uma ordem de qualquer escalão executivo – ministerial ou presidencial – haveria de obstar o cumprimento de uma clara decisão judicial, suscetível de ser alterada, tão-somente, por deliberação de instância superior, da própria Justiça.

De resto, acusações não comprovadas de grampo, ?revelações? – sem provas – de espionagem, comparações absurdas – com a polícia política do Estado Novo e até com a Gestapo hitlerista – lançadas contra pessoas públicas com respeitável currículo de resistência democrática devem ser apenas atribuídas ao jus sperniandi, dos que foram apanhados, escancaradamente, com a boca na botija, e, por isso, têm um milhão e trezentas e quarenta mil razões (e sete versões) para esbravejar. É claro que isso não justifica a ameaça de desmoralizar o processo eleitoral do Brasil, convidando representantes de organismos internacionais para fiscalizá-lo. Decerto o mais recomendável, para um ex-presidente da República, seria não comprometer a boa imagem internacional do País e tentar vencer o próprio stress paterno, retornando à natural e descontraída afabilidade – quem sabe ouvindo a talentosa Marron cantar o belo Sufoco (?Não sei se vou aturar…?).

Mas as avaliações e investigações de candidatos, no caso, dos que pretendem governar o Brasil, de maneira alguma devem se restringir a questões éticas, legais, ou relacionadas à probidade administrativa. É preciso que se investigue, também, a vida pregressa do candidato, para que se tenha uma idéia do volume de trabalho que dedicou à sociedade. Pois sua experiência concreta, as idéias que já elaborou – e, sobretudo, as que já viabilizou, pois é farto o estoque de ótimas idéias terceirizadas no disquete -, tudo isso serve de indício (seria exagero falar-se em garantia) de que a candidatura vitoriosa significará, por si, a execução do programa prometido aos eleitores. (Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor e produtor cultural. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net)"