Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Alerta aos que vão chegar

FOCAS & DROMEDÁRIOS

Luciano Martins Costa (*)

Aconteceu comigo. Minha filha, de 17 anos, se inscreveu para o vestibular de Comunicação, especialização em Jornalismo. Aos 15 anos ela já havia lido 780 livros, adora teatro e bom cinema, ouve boa música, alegra nossos dias com seus chorinhos ao teclado, sabe pensar e revela profunda consciência dos problemas da nossa sociedade.

Uma amiga da família, jornalista talentosa, experiente e desempregada, ficou indignada com a escolha e desandou a falar mal da profissão, dizendo que ela estava desperdiçando seu talento com uma carreira sem futuro et cetera e tal. Minha filha balançou, mas manteve firme a convicção. Diz que com ela vai ser diferente.

E eu? Eu, que passei quase trinta anos dentro de redações, que fiz de quase tudo em jornais e revistas e depois me bandeei para o outro lado do balcão, inconformado com as mazelas da imprensa? Que digo a ela? Que também sonhei muito com palavras que mudassem o mundo para melhor? Que um dia eu li um livro de John Langshaw Austin sobre como fazer coisas com palavras e realmente acreditei que a palavra poderia mudar a realidade?

Digo que antes de ter meu nome impresso num jornal tive de pisar muita lama, ver muito cadáver e conversar com muita gente desqualificada cheia de poder? Que muitos canalhas usaram minha profissão para melhorar seu patrimônio por vias tortas, que tantos outros a prostituíram para obter vantagens políticas? Que tenho na gaveta um monte de currículos de jovens jornalistas, sem qualquer perspectiva de poder ajudá-los a ingressar na carreira? Que vi muitos talentos se perderem pela falta de oportunidade ou pela desilusão final? Que alguns amigos se suicidaram, outros morreram de câncer e problemas cardíacos, estressados pelas horas excessivas de trabalho nos "pescoções", pelos baixos salários e pela insegurança? Que algumas empresas impuseram aos seus melhores talentos o jugo de chefes desonestos, incompetentes ou simplesmente insanos? Que ainda hoje há jornalistas trabalhando sem receber salários?

Ou confesso que ainda me faz falta o espírito sagaz, a iconoclastia e a eterna disposição para o otimismo que caracterizavam todas as redações por onde passei? Que os melhores momentos da minha vida foram gozados no exercício dessa profissão visceral, que só se pratica com a medida exata de razão e emoção sobre uma massa rica de espírito? Conto como é boa para o ego a sensação de uma edição bem resolvida antes do deadline, como é gostoso olhar uma página bem feita e dizer: "maravilha!"; ou bater no ombro de um repórter e confessar que gostaria de ter feito aquela matéria?

Amar a profissão

Digo a ela que tanto faz ser repórter ou diretor de redação quando se ama o jornalismo? Que vi um diretor de redação presentear um jornal concorrente com uma bela pauta porque o acionista do seu jornal se negava a publicar a matéria que contrariava os interesses da sua empresa? Que um amigo rejeitou a vice-presidência de uma grande empresa por não concordar com a linha editorial? Que muitos repórteres, nos anos duros, ofereceram suas vidas pela verdade?

Conto como é gostoso ver um foca virar jornalista de verdade, sacar o brilho no olhar, o orgulho do trabalho bem-feito? Como era bom o barulho das teclas antes do computador, como é bom o barulho das vozes na era do computador, como foi um privilégio ver essa mudança acontecer, como a brava gente das redações, muitos já em fim de carreira, encarou o desafio de aprender um novo jeito de fazer a coisa? Que, afinal, a eterna disposição para aprender é o segredo do bom jornalismo?

Digo para ela como meus colegas executivos da indústria onde trabalho mal conseguem disfarçar a inveja pela delícia das histórias que pude viver nas redações? Confesso que me considero em parte ? minúscula parte ? responsável por muitas, muitas histórias com final feliz? Conto que sofremos e que nos divertimos muito nesses anos todos? Admito que minha tristeza pelo estado da imprensa não me autoriza a atalhar seu sonho? Que me sinto orgulhoso por sua escolha? Que a amo muito e adoro a idéia de que ela ame esta profissão?

Que mais posso dizer a ela?

(*) Jornalista; jornalista, sim.