Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Algumas indagações sobre o futuro

TV DIGITAL

Valdecir Becker (*)

A discussão sobre a TV digital brasileira está avançando. Apesar das inúmeras dúvidas que ainda pairam sobre o desenvolvimento ou não de um novo padrão de transmissão, o enfoque nas tecnologias nacionais e a compreensão de aspectos sociais parece ser consenso. Se isso implica o desenvolvimento de um padrão nacional, respeitando as características e necessidades brasileiras, é outra questão, muito mais complexa.

As etapas do processo de digitalização da transmissão televisiva foram definidas num workshop realizado em Campinas no inicio de agosto. Nesse evento, do qual participaram Ministério das Comunicações (MC), CPqD, Genius, SBrT, SBC, SBMicro, SET, Anatel, Ministério da Cultura e professores de diversas universidades brasileiras, foram criados quatro grupos de trabalho: camada física; transporte, compressão e redes; middleware; serviços, aplicações e conteúdo. O desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) foi dividido nessas quatro subáreas, o que deve facilitar o estudo e o desenvolvimento do sistema como um todo.

Uma das atividades que merecem destaque é a chamada "pacotes de trabalho", realizados pelo CPqD no início de setembro. Com isso, a fundação levantou as demandas na área visando estabelecer metas e planos de trabalho inerentes a cada atividade. O próximo passo deve ser a destinação dos recursos, oriundos dos Funttel, para o efetivo início das pesquisas. Até o momento, os estudos na área se restringiam apenas a algumas iniciativas isoladas. A previsão do MC é que em no máximo um ano a questão sobre o desenvolvimento ou não de um sistema de transmissão nacional deva estar respondida. A inauguração aconteceria antes da copa de 2006, segundo as metas do governo federal.

Formatos e linguagens

Aqui uma explicação técnica se faz necessária. Quando falamos em padrão de TV digital estamos nos referindo ao sistema como um todo, desde a emissão do sinal até a recepção pelos telespectadores. Nesse sistema, temos várias tecnologias que podem ser desenvolvidas de forma isolada, respeitando as características do padrão adotado ou em desenvolvimento. Isso significa que mesmo que o país adote um dos três padrões (americano, europeu e japonês) que atualmente disputam o mercado os equipamentos podem ser desenvolvidos com tecnologias nacionais, exceto em acordos e negociações bilaterais de comércio. Portanto, as discussões referentes ao uso ou não de tecnologias nacionais podem ser, pelo menos parcialmente, dissociadas da definição do padrão de transmissão.

Como algumas áreas de pesquisa relevantes ao projeto (mais especificamente, as da produção de conteúdo) não podem ser financiadas pelo Funttel, a discussão está totalmente centrada no desenvolvimento da tecnologia. É nesse ponto que surgem os problemas. Como Nelson Hoineff já lembrou em artigo neste mesmo Observatório, a relevância do conteúdo ainda não foi compreendida adequadamente [ver remissão abaixo]. Precisamos inverter a discussão, começando pelo outro extremo: em vez da criação da tecnologia, seu uso e sua utilidade. Só dessa forma poderemos realmente desenvolver um SBTVD adaptado às necessidades brasileiras, sem limitações ou serviços desnecessários.

Nesse contexto, algumas perguntas devem ser respondidas antes da tomada de qualquer decisão, sob o risco de criarmos um sistema inadequado para o contexto nacional: qual TV digital queremos e para quê? Se a resposta realmente for, e tudo indica que sim, para levar a internet a toda sociedade, como isso será feito? A programação da TV permanecerá a mesma? Aqui não me refiro à qualidade, apenas a formatos e linguagens. Apenas vamos digitalizar a transmissão, sem fazer uso das inúmeras possibilidades que essa tecnologia oferece? Não há caminhos mais simples e baratos para disseminar a internet, como o PC popular, software livre e a tão sonhada democratização do acesso? Se a interatividade vai ser mesmo um ponto forte, como será essa interatividade? Vamos nos limitar a uma TV meramente reativa, como a européia ou a americana hoje, ou vamos aprofundar a questão a níveis mais avançados de interatividade? Essa última questão é crucial para a definição do tipo do canal de retorno. O MC fala em acesso em banda larga, mas até o momento poucos questionaram a viabilidade tecnológica e mercadológica dessa iniciativa.

Resolução, problema sério

Aqui vale ressaltar que o paradigma que norteou as discussões iniciais sobre TV interativa no mundo na década de 1980 e início dos anos 1990 já não faz mais sentido há tempos. TV interativa não é uma simples junção ou convergência da internet com a TV, nem a evolução de nenhuma das duas. É uma nova mídia que engloba ferramentas de várias outras, entre elas a TV como conhecemos hoje e a internet.

Além de implantar a TV digital no país, o MC aposta na interatividade como propulsora mercadológica do sistema. Isso inclui o acesso à internet por intermédio da TV. Na teoria é simples: a pessoa compra um adaptador (chamado de set top box, no jargão da informática), que permite o uso da TV analógica para receber o sinal digital, e pode acessar a internet pela TV. É uma idéia inédita, uma vez que nenhum dos três padrões que atualmente disputam o mercado compreende essa inclusão digital. A iniciativa pode resolver o problema da exclusão digital no país, do ponto de vista do ministro das Comunicações, Miro Teixeira.

Para nós, a solução do problema parece não ser tão simples assim. O primeiro obstáculo a ser enfrentado está na resolução dos atuais televisores, que praticamente impedem a leitura de qualquer texto digital. Há adaptadores que melhoram essa qualidade, mas nada que chegue perto dos monitores de computador aos quais estamos acostumados. Quem já tentou conectar uma TV de 14? na saída de vídeo do PC conhece as dificuldades de leitura.

Educação para inclusão

Mas isso pode ser apenas uma questão tecnológica a ser resolvida no próprio set top box. Há outro problema, do nosso ponto de vista, muito mais difícil de ser resolvido. Refere-se ao uso final dessa nova tecnologia. Como incluir digitalmente uma pessoa que sequer sabe regular o horário do videocassete? Pesquisas recentes mostram que o número de pessoas analfabetas e semi-analfabetas ainda é estarrecedor. Que interesse essas pessoas podem ter na internet? A não ser que elas possam aprender não só a ler e a escrever, mas também a resolver problemas enfrentados no dia-a-dia usando a TV interativa, a resposta é nenhum. Como se isso não bastasse, pesquisa publicada pela revista inglesa The Economist em 11 de abril do ano passado mostrou que o público inglês considera a TV interativa o quarto dispositivo mais difícil de operar, apenas duas posições abaixo de pilotar aviões.

Não é novidade que, infelizmente, haja vários níveis de conhecimento na sociedade brasileira. Se por um lado há parte da sociedade civil se organizado para elaborar um modelo de TV digital, por outro, há inúmeros profissionais lutando para achar uma saída econômica viável para tirar as TVEs de sua maior crise de todos os tempos. Enquanto algumas pessoas estão dispostas a mergulhar em linhas e mais linhas de códigos de programação para desenvolver a TV interativa, há milhões e milhões de pessoas cujo único entretenimento é o Domingão do Faustão, e a única fonte de informação, o Jornal Nacional, quando isso. Falar em inclusão digital para essas pessoas é demagogia. O que metade da sociedade brasileira quer é uma vida digna, é inclusão social. Se inclusão digital pode gerar inclusão social ? aí é uma outra questão que, penso ser prematuro analisar agora, mesmo porque faltaria embasamento empírico para sustentar qualquer opinião.

Essa reflexão nos leva à pergunta, talvez não final, mas sem dúvida mais importante: como e qual vai ser o conteúdo desse veículo que vai prover essa inclusão? Vamos usar ferramentas interativas para mensurar o avanço dos "alunos"? Nesse caso, o objetivo primordial da TV digital brasileira não passaria a ser a educação, em vez da simples inclusão digital? É possível incluir alguém na sociedade digitalizada sem ensiná-lo a ler e a escrever seu próprio nome, ou a entender um livro de Machado de Assis?

Exemplo europeu

Podemos ainda não ter todas essas respostas, mas uma conclusão parece clara: o conteúdo da TV digital deve ser diferente do da TV analógica, sob o risco de todo o investimento necessário ser em vão. Portanto, a programação vai sofrer mudanças. Talvez não seja necessariamente uma convergência da TV com a internet, como os maiores entusiastas da tecnologia alardeiam, mas uma seleção das melhores ferramentas e recursos de ambas, aliando ainda linguagens e formatos de interatividade até agora somente possíveis em mídias locais, como CD-ROM e DVD, e técnicas de bibliotecas digitais.

Além disso, não podemos nos esquecer que dois pilares da atual TV estão por cair: a unidirecionalidade e a passividade. Isso vai demandar nova teoria televisiva. Sem dar os primeiros passos em relação a ela fica difícil pensar num conteúdo novo, inovador, que agregue e ofereça soluções para quem está do outro lado da telinha. Sem essas melhoras, como justificar o investimento que será necessário, tanto das emissoras como dos telespectadores? Apenas a melhora da imagem do som é suficiente? Essas duas perguntas podem ser facilmente respondidas se considerarmos uma TV realmente interativa, que não se resuma a escolhas por parte do telespectador. Imaginamos que o objetivo do SBTVD deva ser atingir os níveis mais elevados de interatividade possíveis, pelos quais quem assiste se transforma em agente autônomo e com iniciativa, capaz de "fazer" sua própria programação televisiva. Isso obviamente vai supor perda de poder dos broadcasters; se estes vão se submeter a essa nova realidade é outra discussão.

Parece óbvio que temos pela frente a possibilidade de recriar, tanto a internet como a TV. Basta que saibamos como e para que fazer isso. E a hora de começar é agora, enquanto as discussões ainda estão aflorando. Uma boa idéia pode ser olhar para a Europa e aprender com os erros do Velho Continente, onde a tecnologia foi desenvolvida e até hoje se busca um conteúdo apropriado, que, no mínimo, não seja mercadologicamente deficitário.

(*) Jornalista, pesquisador do Projeto I2TV
http://www.i2tv.ufsc.br

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