Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Amor em tempos bulímicos

BIG BROTHER BRASIL
(*)

Gilson Caroni Filho (**)

O desenvolvimento recente do capitalismo prenuncia tempos plenos de ausência. Desde que a redefinição de sua lógica acumulativa passou a prescindir de unidades precisas de produção e circulação de mercadorias, o capital começou a criar o não-lugar como campo das representações possíveis. À colossal transformação da base produtiva do período pós- industrial correspondeu o debilitamento do corpo como força de trabalho. Trata-se de redefini-lo como produto a ser esculpido para novos consumos ou exterminá-lo como emblema de uma linha de montagem que ficou para trás. Se a grande sátira cinematográfica do velho taylorismo foi brilhantemente elaborada por Chaplin, em Tempos modernos, quem sabe a estética do vazio contemporâneo não seja contemplada pelos elementos constitutivos de reality shows como Big Brother: ausência conceitual, fragmentação discursiva, profusão de clichês e atomização de todo e qualquer processo interativo.

Com certeza não é casual que, mundo afora, o sucesso se repita a partir de adaptações locais do formato originalmente holandês. A globalização neoliberal precisa de novos processos identitários. Forjados a partir de subjetividades vazias de uma história própria ?unificação mundial de memórias coletivas locais ?, despidos de veleidades utópicas ou projetos coletivos que ameacem a miséria da sociabilidade requerida. É nesse marco que julgamos apropriado qualquer esforço de leitura do mais recente sucesso global.

Seis semanas após sua estréia já é possível delinear as linhas mestras da trama e o que representam alguns dos personagens "sobreviventes". Do casal "enamorado" ao marombeiro afásico, mais que objetos de um falso voyeurismo, podemos falar de tipos emblemáticos com os quais a emissora quer que o público estabeleça identificação imediata. Importante destacar que a "casa" não é um local privado ou público. Pura e simplesmente é um não-lugar em que não-individualidades "jogam" (o termo é recorrente na fala dos participantes) sua permanência para telespectadores que, semanalmente, são solicitados a "detonar" (verbo empregado nas chamadas da emissora e claramente oriundo de registro cinegético) um deles. Ludicamente são oferecidos dois números para quem quiser brincar de exclusão. Não é preciso ser pedagogo para lembrar que todo jogo embute um processo de socialização desejado pela ordem dominante. A "interatividade" dá à emissora o controle de tendências comportamentais que fazem-na o sucedâneo pós- industrial do velho confessionário cristão.

Outro dado relevante, para não repisarmos a surrada tese de voyeurismo televisivo, é a natureza mesma do que é ofertado pelo programa. O voyeur solicita, para sua satisfação, duas situações fundamentais: uma intimidade a ser devassada e o desconhecimento dos sujeitos observados: ora, o íntimo é algo inexistente em simulações adrede preparadas para edição e os personagens se movem no pressuposto do olhar indulgente do telespectador. Ao nosso "espião desejante" só restou a fechadura como consolo e um edredom como lembrança. Que lhe sirva de lição: os tempos contemporâneos não se prestam a qualquer tipo de fantasia. Por menor que seja a transgressão que ela anuncie.

Duplamente tolerantes

O painel composto pelos que se mantêm no programa é por demais significativo para que dele não tratemos no espaço deste pequeno artigo. Pouco importa se a seleção foi feita de fato pelo "público" ou manipulada pela emissora. Discussão vazia de propósitos. Se há algo que não pode ser negado à TV Globo é sua arguta percepção do que move o imaginário do senso comum. Essa fina sintonia, que não pode ser confundida com manipulação, é o principal fator que explica a audiência que obtém em empreendimentos do gênero. A identificação com o sentimento médio do telespectador e sua reelaboração estética são as chaves que lhe asseguram a cumplicidade do consumidor dos produtos que apresenta. Seu êxito está na inversão do surrado slogan. Sem sombra de dúvida, o que lhe garante os louros do Ibope é evitar de todas as formas que o "que pinte de novo o faça na tela da Globo"

O casal do programa assegura a redenção da má-consciência do brasileiro e desfaz qualquer suspeita de segregacionismo étnico e classista que, volta e meia, são imputados à emissora. Sérgio, o cabeleireiro franco-angolano, prova viva de nosso cosmopolitismo, e Vanessa, a modelo negra, formam a dupla que nos torna politicamente corretos e tolerantes. Ao primeiro se acena com o visto de permanência, à segunda com a alforria midiática, 114 anos depois da Lei Áurea. E pouco importa se o mestre de cerimônias, o jornalista Pedro Bial, tenha dito que "foi assim que o português inventou a mulata". Afinal, cada época tem o Gilberto Freyre que merece. E se a casa não existe, decerto a senzala não surgirá no cenário.

Mais que o marombeiro Kleber, com reais dificuldades de articular duas frases, dificilmente alguém poderia ser tão representativo de expressiva parcela da juventude. Não está lá para simbolizar algo indesejável ou que, se possível, deva ser evitado. Muito pelo contrário. Sua permanência simboliza um modelo identificatório perfeitamente aceito. Sua presença, per si, o legitima como algo apreciado pela ordem social. É o corpo esculpido, quiçá anabolizado e que, amanhã ou depois, poderá ser siliconizado para agregar aberrações que a natureza, em sua imperfeição, não ousou fazer. Prótese que Baudrillard, em Transparência do Mal, sinalizou como embrião de não-corpo. De Kleber não são solicitadas formulações mais elaboradas. Seu jeito bronco e jovial dificilmente demandará algo que transcenda um supino e três halteres. Pouco lerá além da série elaborada na academia, mas é alguém perfeitamente integrado. Que o sigam os sensatos.

Outro personagem emblemático seria o músico, negro e homossexual, André. Nesse caso, nós e a Globo estaríamos sendo duplamente tolerantes. E se o mestre de cerimônias e o grupo humorista da emissora gostam de lhe fazer insinuações jocosas, adicione-se à tolerância nossa inegável espirituosidade.

Projeto de poder, promessa de futuro

As duas moças restantes mereceriam um texto bem mais extenso não fosse a nossa macunaímica e providencial preguiça. Estela, a "feiosa papo cabeça", é a prova inequívoca de que os critérios de seleção não excluem os desprovidos de corpos esculturais. Capaz de articular sete frases enquanto fuma um cigarro atrás do outro, é a referência cartesiana do grupo. Tem certeza de que o "público perceberá sua beleza interior" se "o programa estiver sendo editado com honestidade". Afinal, julga-se a única da fauna a permanecer no mundo da linguagem. É o primeiro caso de alma sensível que necessita de um bom arte-finalista.

Por fim, a bela Alessandra, a doce e vomitadora "Leca". Bulímica assumida, tem como sonho um corpo perfeito e como projeto "muito vômito e uma colossal diarréia". A espetacularização de um distúrbio psíquico tem pretensões pedagógicas. Mostra às jovens portadoras do mesmo problema que ao assumi-lo não só serão aceitas como selecionadas. Talvez enfiar o dedo na garganta seja a estratégia acertada contra o corpo inimigo. Quem sabe, um substituto protético não lhe assegure a imaterialidade eterna dos jovens corpos imolados em oferenda ao mercado disfarçado de Narciso.

Podemos concluir que, mais que um programa de entretenimento, Big Brother talvez seja um projeto de poder, uma promessa de futuro. Ou, mais provável, um retrato acabado do presente. Sintonizado com as demandas societárias do capitalismo neoliberal, não-corpos vivem felizes, sem qualquer intimidade possível, em lugar-nenhum. Sem projetos coletivos, deleitam-se com as exclusões semanais e, na ausência de afetividade autêntica, plasmam sua coesão em sucessivos vômitos. A diarréia ainda é promessa futura. Nunca o devir, se ainda existe, foi tão "belo e apetitoso".

(*) Quando este texto for publicado, um dos participantes nele citado terá sido eliminado, o que não invalidará qualquer observação feita.

(**) Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro