Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Augusto Nunes

TUDO BEM

“Meditações de agosto”, copyright no mínimo (www.nominimo.ibest.com.br ), 30/08/03

“Quando o ano ia chegando ao fim, o editor Victor Civita costumava discorrer com entusiasmo sobre um dos seus mais inventivos projetos: a revista Tudo Bem. Concebida para circular a cada 31 de dezembro, a revista contemplaria os fatos ocorridos no ano através das lentes do otimismo. Preferiria sempre a luz à sombra, o claro ao escuro, a vida à morte.

Em 1980, exemplificava o criador da Editora Abril, o título da reportagem de capa de Tudo Bem poderia ter sido ?Três Beatles estão vivos?. Naturalmente, algumas linhas seriam reservadas ao registro (tão discreto quanto possível) do assassinato de John Lennon. Os leitores também saberiam o número exato de veículos que não se envolveram em acidentes de trânsito, confinando-se num parágrafo a contabilidade dos desastres. E seriam informados sobre quantos aviões cruzaram sem sobressaltos os céus do planeta – informação completada pela ressalva de que, lastimavelmente, a queda de alguns deles havia provocado punhados de mortes.

O projeto irrealizado de Victor Civita sugere aos jornalistas reflexões bem-vindas. Leitores também se interessam por boas notícias. Mais que isso, precisam delas, quando nada para seguir acreditando que a vida vale a pena. A tese de que noticiar tragédias aumenta a venda de jornais é duvidosa. É equivocada a teoria segundo a qual apenas o lado dramático das coisas induz à leitura.

Mas não custa reiterar que notícias são quase invariavelmente associadas à novidade, ao invulgar, ao incomum. A primeira edição de Tudo Bem certamente seria um sucesso (graças à singularidade da idéia). A segunda, talvez não: publicações que se limitam a registrar a normalidade e a rotina não vão longe. O normal, no fim de 1980, era que todos os quatro Beatles, ainda jovens, estivessem vivos. Anormal – e portanto notícia, e notícia de enorme impacto – foi a morte de Lennon.

Eventualmente, produz-se o avesso das coisas, e o que foi até então rotineiro se torna incomum, e o que não era notícia passa a sê-lo. Nos tempos em que o normal era ser honesto, não faria sentido transformar em tema de reportagem um punhado de brasileiros que devotam rigoroso respeito à lei e à ética. Hoje, o fato de que ainda existe gente honesta já é notícia. Histórias protagonizadas por figuras decentes podem virar grande notícia. Teria fortes chances de figurar na capa Tudo Bem de Victor Civita.

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A doença do corporativismo, espécie de miopia intelectual que leva a confundir companheirismo com cumplicidade, contribuiu historicamente para induzir jornalistas brasileiros a contemplar com excessiva indulgência os porões da imprensa. Seria oportuno denunciar colegas? Valeria a pena estender o fio da suspeita às redações em momentos nos quais jornais e revistas denunciam negociatas de calibre muito mais grosso?

Essas interrogações são só sintomas de corporativismo. Se há quem aceita suborno, deve ser desmascarado pelos que se mantêm honestos. Carteirinha de jornalista não transforma ladrões em homens de bem.

Preservar delinqüentes simulando preservar-se a instituição ou entidade na qual está enquistado é apenas pretexto para quem tem interesse em proteger bandidos. Cabe à imprensa, em qualquer circunstância, divulgar a verdade. Cabe aos jornalistas, sempre, agir com isenção – mesmo quando os personagens do fato estiveram ou estão na mesa ao lado.

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A objetividade jornalística é possível? Não, porque a ninguém é dado subtrair-se a sentimentos e emoções inseparáveis da condição humana. Profissionais de imprensa amam e odeiam, cultivam amizades e antipatias, têm preferências e idiossincrasias, protagonizam histórias de medo e coragem.

A imparcialidade jornalística é possível? Sim, porque nenhum fator subjetivo pode sobrepor-se ao dever de informar corretamente. Para agir com isenção não é preciso reduzir-se a uma espécie de máquina que fabrica palavras. Basta ser provido de independência intelectual, e recusar a falácia segundo a qual existiria a verdade de cada um. A verdade factual é uma só.

O Aurélio define com limpidez, em seus dois sentidos, o termo imparcial. Primeiro: ?que julga desapaixonadamente; reto, justo?. Segundo: ?que não sacrifica a sua opinião à própria conveniência, nem às de outrem?. O mesmo Aurélio resume o significado de parcial: ?que não julga ou não opina com isenção; injusto, partidário, apaixonado?. Os dicionaristas, por sinal, configuram um bom exemplo de que é possível ser imparcial ao lidar com palavras.

A virtude da isenção, ressalve-se, não vale como antídoto para todos os tipos de erro – apenas para os que resultam da má-fé. Jornalistas imparciais procuram, essencialmente, contar o caso como o caso foi. E recorrem aos critérios do bom senso e da honestidade, além de normas técnicas que vêm sendo aperfeiçoadas

desde Gutemberg, no esforço para selecionar informações, distribui-las hierarquicamente pelas páginas e apresentá-las ao leitor de forma atraente. Mas não são imunes a equívocos, até pela interferência inevitável de fatores subjetivos.

Acreditar que é impossível ser imparcial equivale a decretar a morte da honestidade intelectual.”

 

LÍNGUA PORTUGUESA

“De meia-tigela a joão-sem-braço”, copyright Jornal do Brasil, 1/08/03

“Nome muito popular, João está presente em numerosas palavras e expressões de nossa língua, de que são exemplos joão-ninguém (indivíduo sem importância), joão-de-barro (pássaro), joão-correia (árvore), joão-grande (ave) e joão-teimoso (boneco feito de tal maneira que sempre volta à posição original quando empurrado). Às vezes, aparece disfarçado, como em joanete (deformação crônica de dedos do pé). Como fossem agricultores pobres e descalços a apresentar tal problema nos pés, foram tomados como joões. A denominação aproveitou ainda um termo náutico, pois joanete designa um dos mastaréus da gávea nos navios.

João-sem-braço provavelmente surgiu de comentários de homens anônimos que alegavam nada poder fazer, quando solicitados a trabalhar, disfarçando a preguiça, pois ao nobre era dado o direito de não trabalhar, de manter os braços livres para nada fazer, a não ser dar ordens para que outros fizessem todos os trabalhos, estando os simples absolutamente impedidos de fazer a mesma coisa.

Trabalhar a terra consolidou-se na herança cultural portuguesa como ignomínia, castigo imposto a quem não podia fazer mais nada, a não ser viver da lavoura.

De outra parte, os condenados tinham os braços amarrados e nada podiam fazer para evitar o suplício, fosse a forca ou a decapitação. Há ainda mais uma hipótese que vincula a expressão às Santas Casas de Misericórdia, curiosa e criativa forma que o Estado português inventou para deixar de tratar da saúde, atribuindo tal obrigação a ordens religiosas e a organizações civis, sem custos para o erário.

Como Portugal formou-se a partir de sucessivas guerras travadas em seu próprio território, eram muitos os feridos e aleijados que, por sua condição, estavam impedidos de trabalhar, os primeiros temporariamente, e os outros para o resto de suas vidas, em muitos casos. Simular não ter um ou os dois braços constituiu-se em escusa para fugir ao trabalho e a outras obrigações. Não demorou e a expressão ?dar uma de joão-sem-braço? migrou para o rico, sutil e complexo reino da metáfora, aplicando-se a diversas situações em que a pessoa se omite, alegando razão insustentável.

Outra expressão que integra o nosso arsenal de significações é a conhecida ?gente de meia-tigela?. Em Portugal, nos tempos monárquicos, havia vários tipos de nobreza, entre os quais ganhavam destaque a nobreza territorial e a de títulos. Habitavam os palácios, porém, diversos rapazes que, dados os serviços domésticos que executavam para autoridades, tinham direito a rações, prescritas no Livro da Cozinha del Rei. Tão logo chegavam à corte, em busca de trabalho, moços vindos do interior eram tratados com desprezo pelos que já moravam no palácio. Fidalgos de meia-tigela jamais quebrariam a tigela, não porque somente dispusessem da metade dela, mas porque apenas os grandes fidalgos podiam quebrar a tigela por ocasião de ritos importantes.

Ocorre também que uma expressão popular migre dos livros para as ruas, volte aos livros e vá outra vez às ruas. ?Navegar é preciso, viver não é preciso?, por exemplo, já foi creditada a Caetano Veloso, que já admitiu tê-la lido em Fernando Pessoa.

A frase, entretanto, já existia quando o general romano Pompeu (106-48 a.C.) a tornou célebre ao persuadir marinheiros a zarpar com os navios carregados de alimentos, mesmo em meio a uma tempestade, porque havia muita fome em Roma. Somente o circo, como sabiam os imperadores, não era suficiente para conter rebeliões, se faltasse o pão. Pompeu a pronunciou num latim desjeitoso, segundo nos informa Plutarco: navigare necesse, vivere non necesse, mas a frase já existia também em grego.”

 

JORNALISMO ECONÔMICO

“As fontes na economia”, copyright Folha de S. Paulo, 31/08/03

“Nos últimos meses me empenhei em uma cruzada contra os ?cabeças de planilha?. Dou a tarefa por provisoriamente encerrada.

A intenção não foi atacar este ou aquele economista nem investir contra a categoria dos economistas de mercado, mas denunciar um tipo de cobertura jornalística extraordinariamente mediocrizante, que acabou privilegiando o palpite em lugar da análise e aceitou como verdades slogans que não resistiriam a nenhuma prova de consistência.

É hora de começar a avaliar melhor a qualidade do que é entregue ao público, principalmente porque a proliferação de palpites inconsequentes, quando ecoado por grandes meios de comunicação, acabam tendo peso político relevante.

Um dos vícios da cobertura é supor que todo economista está apto a falar de todos os temas econômicos e a fazer análise de conjuntura. Não é assim. A análise de conjuntura é um exercício intrincado, em que o analista precisa pesar muitos fatores, nem todos quantificáveis. Assemelha-se muito ao raciocínio desenvolvido no jogo do xadrez, no qual cada movimento de peça provoca um novo equilíbrio (ou desequilíbrio) no tabuleiro, implicando tantas variáveis que a intuição passa a ser elemento relevante de decisão.

É preciso entender as diversas classes de economistas. No topo da pirâmide há os formuladores, os economistas de visão geral, que sabem mesclar conhecimento de macroeconomia com mercado, agricultura, indústria etc. São poucos os que se enquadram nessa categoria -e não são os mais ouvidos.

Abaixo deles há os especialistas. O próprio mercado financeiro tem analistas com trabalhos relevantes sobre pontos específicos da economia e do mercado. Alguns deles até têm visão bastante crítica sobre o cabeça de planilha -que continua apostando em tendências já superadas pelos centros avançados de pensamento econômico.

Abaixo deles vêm os ?arrumadinhos-detalhistas?. São economistas especializados em levantar bancos de dados, indicadores, com especial apego aos detalhes e pouco empenho em teses inovadoras, sem nenhuma espécie de visão sistêmica.

Num quarto nível vêm os economistas de slogan, aqueles que cheiram a idéia que está na moda e se limitam a despejar conceitos sem conseguir amarrá-los a modelos de pensamento. São os economistas padrão ?Caras? -para eles, as idéias econômicas se dividem entre as ?in? (que estão na moda) e as ?out?. Diria que são os mais ouvidos pela mídia, inclusive por colegas seniores.

Alguns deles até conseguem destaque em áreas específicas da economia, mas se põem a chutar sobre conjuntura porque o mercado demanda.

Seja qual for o nível do economista, ele não se pode furtar a ser questionado sobre a lógica do que propõe. A virtude maior da nossa profissão é a capacidade e a obrigação do jornalista de arrancar do especialista o raciocínio despido dos conceitos fechados, definir o objetivo a ser alcançado por determinada proposta e detalhar todas as consequências de cada passo, para conferir se há lógica ou não.”