Tuesday, 15 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Para não esquecer", copyright
Folha de S.Paulo, 14/4/02

"Compare os títulos no quadro à direita. Eles mostram como
se comportaram sexta-feira os principais jornais do país em relação
aos eventos ocorridos na Venezuela na noite anterior.

Com exceção da Folha, todos trocaram suas manchetes nas edições
que se encerravam mais tarde, noticiando a queda do presidente Hugo Chávez.

Nessas trocas, todos, menos a Folha, adotaram títulos mais fortes, em
seis colunas, ocupando todo o espaço superior da capa.

Perguntas óbvias: o que aconteceu com a Folha? Por que ela não
noticiou, como os demais, a histórica deposição de Chávez?

Algumas explicações imagináveis: 1) o jornal não
tinha as mesmas informações dos outros; 2) encerrou suas atividades
mais cedo, antes deles; 3) não considerava viável bancar a afirmação,
optando por uma saída ?cautelosa?; 4) julgou equivocadamente as notícias
de que dispunha.

Descarte-se o primeiro item: com a internet e a TV paga, todos os jornais têm
acesso, em princípio, às mesmas fontes internacionais.

A leitura dos textos publicados revela que reproduziram basicamente as mesmas
declarações de autoridades militares ou políticas venezuelanas.

Descarte-se, também, a segunda hipótese. A Folha não ?fechou?
mais cedo, por exemplo, do que seu concorrente local, ?O Estado de S.Paulo?
(em torno da meia-noite e meia). Além disso, como muitos leitores sabem,
em casos excepcionais é possível o jornal retardar um pouco a
sua impressão para tentar incluir informações.

A deposição de Chávez foi o ponto de chegada de uma sucessão
de eventos iniciados com uma paralisação de petroleiros, expandidos
numa greve geral (de empresários e trabalhadores) terça e quarta-feira,
culminando com uma mobilização de milhares de pessoas em frente
ao palácio presidencial, em Caracas, da qual resultaram ao menos 15 mortos
e mais de cem feridos.

Você se sentiu informado pela Folha a respeito desse ?clima? de crescente
radicalismo ao longo da semana? Certamente, não.

A crise recebeu no jornal apenas duas notas em pé de página (uma
na quarta, outra na quinta), afora registros nas reportagens sobre o preço
do petróleo.

Na prática, com a atenção voltada quase exclusivamente
para o gravíssimo conflito israelo-palestino, o jornal deixou de lado,
subestimou o que acontecia ao mesmo tempo a bem menos quilômetros daqui.
Por isso, foi pego de surpresa. É o que se pôde ver em suas páginas.

Prudência

A Secretaria de Redação pensa diferente, ainda que considere
?forçoso reconhecer que o enunciado da manchete de sexta, embora fiel
aos fatos, não ficou à altura dos eventos do dia anterior na Venezuela?.

Mas isso não decorreu, na sua visão, de uma ?subavaliação?:
o assunto foi manchete do jornal (?em três colunas porque, no dia, metade
da primeira página era coberta por anúncio?); recebeu uma página
e meia do caderno Mundo; ?no final da tarde da quinta-feira já havíamos
decidido enviar o correspondente em Washington para Caracas?.

Prossegue a argumentação da Secretaria, que tomo a liberdade
de resumir: ?As informações eram muito confusas e conflitantes…
muitos desmentidos… era preciso ser prudente… generais diziam que haviam
deposto Chávez; o presidente da Assembléia e o secretário
da Presidência negavam… até o fechamento da edição
não havia elementos que permitissem afirmar que Chávez havia sido
deposto… só se podia fazer alguma troca no jornal até pouco
mais das 2h… até as 2h15 da madrugada era impossível para qualquer
órgão de imprensa afirmar que Hugo Chávez tinha sido deposto….
o primeiro despacho de agência internacional que afirmava isso de forma
categórica chegou às 2h18… todas a informações
importantes estavam na primeira página e destacadas, pelo menos, na linha
fina…. analisando em retrospectiva, parece claro que teria sido melhor alçar
ao título principal a declaração do general que relatou
a queda de Chávez (naquele momento, negada pelo governo) e colocar a
informação sobre os protestos e as mortes na sobrelinha. Seria
a maneira mais direta de transmitir ao leitor o mais provável desfecho
da crise?.

A Secretaria de Redação menciona ainda ao ombudsman, como ?curiosidade?,
o fato de que o ?New York Times? deu um título na mesma linha da Folha.

Cortina de fumaça

O que se questiona não é o tamanho do noticiário da sexta-feira,
mas sim o seu conteúdo e o (não) acompanhamento dos eventos ao
longo da semana.

Claro que as informações eram confusas, conflitantes. Não
tenho dúvidas de que nos próprios jornais concorrentes, que souberam
avançar mais do que a Folha, houve receio e hesitação.

Mas, atenção: notícias não vêm prontas e
mastigadas, tampouco têm hora para chegar, ainda mais sobre eventos políticos
complexos. Por isso, nunca foi simples o ofício do jornalista.

É fácil se escorar na prudência. Mas, se esta é
indispensável, não deve servir como cortina de fumaça para
encobrir a ausência de aplicação de outras ferramentas básicas
do jornalismo: analisar com presteza os diversos dados e o histórico
recente de um país, cruzar versões, ponderar as diferentes declarações,
não burocraticamente, como se fossem entes matemáticos, mas em
razão da situação concreta (naquela noite, por exemplo,
diante das particularidades do regime chavista e de tudo o que acontecera ao
longo do dia, não parecia lógico que as seguidas declarações
de grupos importantes e centrais de militares tivessem peso bem maior do que
a de aliados civis isolados de Chávez?); pesquisar com rapidez; ouvir
especialistas a ?quente?.

E aqui não se trata do Afeganistão, mas de um país próximo,
sobre o qual a Folha já publicou, em passado recente, várias entrevistas
e reportagens.

(Registre-se que, conquanto não tenha extraído daí a devida
consequência editorial, o jornal publicou afirmação exclusiva
de um jornalista de Caracas que apontava para a derrocada presidencial: ?Parece
claro que está em desenvolvimento um golpe militar?.)

Essas tarefas não são para um indivíduo, nem mesmo apenas
para uma seção isolada de um jornal: implicam trabalho de equipe,
reciclagem, muita discussão, sensibilidade aguçada, troca permanente
de idéias. Eis o coração do problema. Sem o cultivo desses
hábitos, qualquer Redação de jornal tende a ficar com os
parafusos afrouxados, ou enferrujados.

A propósito disso, tão curioso quanto a coincidência entre
a linha da manchete da Folha e a do ?New York Times? é o desencontro
interno expresso no fato de que um texto colocado pela Folha em seu site na
internet à 1h11min da sexta-feira já tratava Chávez como
?ex-presidente?.

Se se sentia insegura ou se não conseguiu na hora reunir elementos suficientes
-por conta, a meu ver, de fragilidades que precisa enfrentar em vez de encobrir-
para afirmar que Chávez fora deposto, a Folha tinha a obrigação,
no mínimo, de realçar o anúncio de sua queda feito pelos
militares, numa manchete de primeira página digna do evento (mesmo com
o encarte publicitário destacável a encobri-la, como já
ocorreu em outras oportunidades).

Mais do que prudência, houve, creio, um claro erro de avaliação
-daqueles para se tirar lições, e não esquecer."