Tuesday, 15 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Na onda da pedofilia", copyright Folha de S.Paulo, 28/4/02

"Nenhum pecado mortal contra a Igreja Católica foi cometido pela imprensa nos últimos dias, a meu ver, na cobertura sobre os religiosos pedófilos e seus eventuais acobertadores.

O acúmulo de casos desde a década de 80, em especial nos EUA, acabou estourando com tamanha dimensão, a ponto de seus cardeais e arcebispos terem sido chamados às pressas ao Vaticano, em grande parte por responsabilidade da própria instituição, que, em vez de tratar do assunto abertamente, com transparência, desde o início, procurou conduzi-lo a portas fechadas. Estas, agora, como aconteceria cedo ou tarde, estouraram.
Eis um escândalo de ampla repercussão, envolvendo milhões de pessoas que seguem os seus dogmas, além de outros milhões, em dinheiro, sob a forma de possíveis indenizações. É, portanto, notícia, lá fora e aqui.

Isso posto, não quer dizer que a mídia tenha dado ao delicado tema a cobertura mais exemplar.

Ao contrário, mesclando indevidamente aspectos diversos que o tangenciam, acabou formando uma onda que por pouco não atingiu o patamar de campanha aberta contra a Igreja ou alguns de seus princípios.

Misturas

De início, não se exibiram estatísticas que pudessem demonstrar ser maior, proporcionalmente, a incidência de pedófilos entre os sacerdotes católicos do que entre religiosos de outras ?correntes? ou credos, ou entre pediatras e professores, por exemplo -apenas para mencionar categorias em que a autoridade interpessoal e o relacionamento com crianças também ocorrem por força do ofício.

Provavelmente porque essas estatísticas simplesmente inexistem.

Misturou-se à questão, também, a obrigatoriedade do celibato e da castidade, como se a pedofilia tivesse relação automática, de causa e efeito, com essas polêmicas imposições da Igreja àqueles que exercem o sacerdócio.

O colunista Contardo Calligaris, na Folha de quinta-feira, resumiu bem a situação:
?Parece que, se os padres pudessem casar-se, não haveria pedófilos entre eles. Para defender o celibato facultativo, há ótimas razões, mas não essa. Mesmo uma mulher dedicada a produzir duas ou três ejaculações por dia em seu marido pedófilo, no melhor dos casos, conseguiria distraí-lo, eventualmente cansá-lo, mas não transformá-lo?.

O jornal abordara a questão na edição de domingo passado, mas de forma um tanto desequilibrada: houve, por exemplo, um artigo contrário ao princípio do celibato obrigatório, enquanto as opiniões favoráveis se limitaram a declarações dispersas em alguns textos.

Se era para acoplar o tema à cobertura dos casos de pedofilia, à imprensa caberia ao menos dar espaço para um debate mais amplo e promovido de modo imparcial.

Trampolim

Outra mistura que ficou ?no ar? e nas entrelinhas diz respeito a uma suposta relação direta entre pedofilia e homossexualismo -jamais comprovada, ao que se saiba, cientificamente.

De novo, não vi veículo de comunicação que a tivesse feito abertamente, mas a simples edição de reportagens sobre casos de padres gays com aids em conjunto com os casos de pedofilia se encarrega, aos olhos do leitor médio, de promover o embraralhamento de tudo num único saco.

Reuniu alhos com bugalhos, também, o noticiário de quinta-feira sobre o padre suspenso pela Diocese de Franca (SP) por ter, conforme afirma o bispo local, engravidado uma moça de 16 anos de idade.

O Jornal do Brasil chegou a dar à matéria o título de ?Bispo confirma caso de pedofilia em SP?.

Ora, a julgar pelos próprios fatos reportados, trata-se de um caso que poderia ser enquadrado como corrupção de menor. Mas, até que surja fato novo ou prova em contrário, não há nele marcas típicas de pedofilia, distúrbio que pressupõe ações repetidas, ao longo do tempo, de abuso sexual contra crianças até 14 anos de idade.
A Folha não chamou o padre de pedófilo, mas involuntariamente deu margem para a confusão ao editar um quadro, sob o título ?Relações perigosas da Igreja no Brasil?, que junta este caso a outros três notoriamente de pedofilia.

O editor de Cotidiano, Nilson de Oliveira, entende que não houve distorção.

?A informação é de que esse padre mantinha relações sexuais com a menina desde quando ela tinha 13 anos de idade?, argumenta. ?Se isso se confirma, o caso poderá ser tipificado, tecnicamente, como pedofilia?.

De fato, o texto da Folha afirma que ?boatos? sobre o relacionamento entre os dois começaram quando a garota tinha aquela idade. Mas faltava, até sexta-feira, comprovar a boataria.

Mais uma vez: as diferenças na prática entre uma coisa e outra podem ser sutis, pequenas, talvez insignificantes diante do quanto ambas são abjetas, mas elas existem e devem ser consideradas com clareza nos jornais.

Que os meios de comunicação devam dar muita importância, com cobertura crítica, aos casos de pedofilia na Igreja, não resta a menor dúvida.

Que, assim como qualquer instituição religiosa ou não, a Igreja deveria adotar atitudes mais consequentes de modo a inibir esse desvio entre seus membros, é óbvio.

Mas todo cuidado também precisa ser tomado pela imprensa para não transformar o noticiário sobre essas graves revelações em trampolim privilegiado para a alimentação de preconceitos ou para a pregação de uma ou outra ala entre as inúmeras que proliferam na Igreja católica, em seu entorno ou até mesmo do lado de fora, contra ela.

***

Participo de hoje a quarta-feira do encontro da Organization of News Ombudsmen (ONO), realizado desta vez em Salt Lake City (EUA).

A reunião, constituída por dezenas de ouvidores de órgãos de imprensa de vários países, acontece todos os anos.

Durante a semana que entra, o atendimento aos leitores permanecerá, aos cuidados da secretária do departamento de Ombudsman, Rosângela, que dará encaminhamento aos casos de maior urgência.

Retomarei a correspondência, normalmente, a partir da segunda-feira, dia 6 de maio.

A coluna volta a ser publicada no dia 12. Até lá."