Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

"22/4/2002

Três lições da derrota de Jospin

Primeira lição: embora mais votada do que nas eleições anteriores, somando 43,5% dos votos, segundo dados preliminares, a esquerda foi desclassificada porque foi às urnas fragmentada em sete diferentes partidos. É o que mostra Alcino Leite Neto, em ?Socialistas tentam entender resultado?, na página A12 da Folha de hoje.

Segunda lição: o discurso moderado demais da esquerda abriu caminho ao avanço das forças mais extremas, tanto da direita quanto da própria esquerda, ameaçando as vertentes clássicas desses dois campos – e não só na França, como mostra Gilles Lapouge no Estadão de hoje.

Terceira lição: as pesquisa de opinião são pouco confiáveis em situações de aceleração do tempo político numa reta final. Até a véspera, previam Jospin em segundo, com 18%, e Le Pen em terceiro, com apenas 12%. Deu Le Pen na frente de Jospin por um ponto, com 17%.

A posição de Lula

Nessa hora os repórteres deixam de ser preguiçosos. Já procuraram Lula com perguntas sobre a derrota de Jospin no domingo. Os comentaristas chapa-branca devem deitar e rolara partir de amanhã – talvez até digam que Jospin perdeu porque Lula é um pé frio. Lula tem mais é que se orgulhar por ter ido à França estender seu apoio a Jospin, e lamentar que outros políticos progressistas não tenham dado a mesma força ao candidato socialista para derrotar o racismo, o anti-semitismo e o fascismo. Não conseguiram barrar Le Pen, mas levaram uma boa luta, por uma boa causa, e isso é o que importa.

De repente, Lula ficou bonito

Os principais veículos do sistema deram tratamento principesco a Lula neste final de semana. Época traz uma reportagem um pouco fraca de conteúdo, mas bonita, com fotos promocionais de Lula e sem jogadas maliciosas. As idéias centrais são de que Lula pode virar governo, de que ele amadureceu (leia-se está menos radical) e que já não há medo do que possa acontecer se ele vencer. Não bastasse a capa, há os outdoors da revista, propaganda gratuita de Lula. Na mesma linha, Veja produz reportagem sobre ?O brilho da Estrela?. A ênfase é no marketing de Lula, ao qual é atribuído seu sucesso.

O ajuste fino da manipulação

Não se iludam os petistas. É tudo de combinação com Serra. O comando da campanha de Serra trabalha em regime de ajuste fino, sempre corrigindo ordens de batalha, na guerra para lhe assegurar um lugar no segundo turno. Garotinho tornou-se a principal ameaça. A nova diretiva é poupar Lula, até mesmo o emular, para que ele tire os votos de Garotinho que o próprio Serra não consegue tirar. Ao mesmo tempo, agem contra Garotinho, já chamado de ?A próxima vítima? na IstoÉ desta semana.

Mas Serra desespera

Outro recurso de Serra foi o de adotar parte do discurso de Lula, tentando se descolar do governo FHC. Serra criticou em público a extinção da Sudam e da Sudene, posições defendidas por Lula. Em conversas com repórteres, critica a equipe econômica, que não ajudaria em nada sua campanha. Especialmente os aumentos da gasolina. Isso tudo está explicado na reportagem de Raymundo Costa na Folha de domingo, que, no entanto, tenta nos vender o peixe de que a candidatura vai de vento em popa. A reportagem é quase um boletim oficial do comitê Serra. Se a candidatura estivesse indo tão bem, Serra não precisaria dar razão a Lula.

Ordem do dia: Alca

Começa hoje na Venezuela uma reunião decisiva dos vice-ministros de comércio exterior latino-americanos para discutir a Alca. A questão central é a pressão das multinacionais para que países periféricos abram totalmente suas áreas de serviços, inclusive serviços bancários, ao capital estrangeiro. A Gazeta Mercantil dedica a página A4 inteira a essa reunião. Notável é o editorial do Estadão de hoje, chamando a atenção para um documento divulgado inicialmente pelo The Guardian, de Londres, em que as multinacionais européias colocam suas exigências de abertura do setor de serviços.Até o tradicionalmente entreguista Estadão critica essa abertura indiscriminada.

MST: a importância da boa comunicação

Três boas reportagens sobre o MST, na Folha e no Estadão, mostram que uma grande comunicação pode se mais importante hoje na política do que uma grande mobilização. No Estadão do domingo, Luiz Maklouf descreve o belo projeto da escola do MST, erguida em Guararema. Na Folha do mesmo dia, ficamos sabendo que o governo falseou os números de assentamentos da reforma agrária, sabia dos planos de invasão em Buritis e que fez corpo mole.

O falseamento dos dados da reforma agrária já provocou reações fortes: ?Pela primeira vez uma reportagem da grande imprensa desvenda o que na minha opinião é a maior fraude do governo Fernando Henrique?, disse à Folha o presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária, Gerson Teixeira.

Retrato do Brasil

Desde 1999, quando houve mudança do regime cambial, o rendimento médio real do trabalho caiu 10,6% nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE. Como nesse período os impostos e tarifas aumentaram, a renda disponível para os outros gastos caiu tanto que já se tornou no principal freio à expansão econômica. Nessa pesquisa, retratada na página B8 do Estadão de domingo, a parcela 1% mais rica da população ficou em 1999 com uma fatia da renda nacional praticamente igual à dos 50% mais pobres ( 13,1% contra 14%). Essa proporção é a mesma de 1992. Ou seja, nada mudou na distribuição de renda do Brasil, uma das mais concentradas do mundo.Não deixe de ler o editorial do Estadão: ?O capital estrangeiro e os serviços?.

19/04/02

O golpe da verticalização

Foi um dos mais sórdidos da história do casuísmo eleitoral. Só perde para o pacote de abril, baixado por Geisel em 1977 que entre outras barbaridades criou o senador ?biônico?.A mídia admite que Serra foi o grande beneficiado, mas sem colocar isso nas manchetes, justamente para não o prejudicar. Está tudo nas entrelinhas. O relato do Estadão mostra como Nelson Jobim, um dos articuladores do golpe ficou nervoso com o voto de Sydney Sanches e nem queria deixar ele falar. ?Conforme funcionários do supremo, o presidente do TSE e ministro do STE, Nelson Jobim, foi a peça importante na reviravolta.?. E no painel de hoje a Folha reitera sua denúncia anterior, de que o articulador mor foi FHC: ?emissários de FHC falaram diversas vezes ao telefone nesta semana com os ministros Celso de Mello e Moreira Alves,que votaram a favor a verticalização e cuja posição era considerada incerta.? Jânio de Freitas põe o dedo na ferida: o uso político da mais alta corte de justiça do país.

Tucanos querem ganhar no tapetão

Ainda desesperados com a situação de Serra, os tucanos preparam outro golpe: impedir Ciro Gomes de usar horários gratuitos dos dois outros partidos que o apóiam. Está no final de uma notícia discreta no Estadão de ontem: Serra tomará pelo menos a metade dos 20 minutos do programa do partido, que será exibido em todo o Brasil no dia 6 de maio. O drama é que o adversário Ciro Gomes, do PPS, tem 50 minutos de campanha eletrônica pela frente… usando o horário gratuito destinado aos pardos que compõe a aliança PTB e PDT.. : ?isso é ilegal?, concluíram, os tucanos durante o almoço com o candidato nesta quarta-feira. Mas como a punição para os infratores pode resumir-se apenas á cassação do horário gratuito do ano seguinte, o estrago estará feito. Para evitá-lo os tucanos decidiram consultar a Justiça.?

De consulta em consulta, os tucanos querem ganhar no tapetão.

O problema é o governo

Na mesma reunião os tucanos decidiram que Serra só vai falar em problemas regionais. Nada de questões nacionais. Márcia Peltier, no JB de hoje, sem saber dessa reunião, explica que: ? não há tatu que resista, nem Serra?, às políticas desse governo que aliviou os bancos via Proer , fez o povo pagar a conta do apagão e agora quer fazer pagar a conta da telefonia.

Cover up

A notinha saiu bem pequena no Estadão de quinta: ?Auditoria não pé autorizada.? Trecho principal: ? Uma manobra dos governistas impediu ontem a aprovação de auditoria apara investigar se a Fence Consultoria Empresarial teria feito espionagem a pedido do Ministério da Saúde.?

O PFL suspeita que a Fence espionou Roseana, e foi paga para fazer isso com dinheiro do Ministério da Saúde de Serra. Os tucanos conseguiram esvaziar o pedido de auditoria, com o artifício de estender a investigação a todos os contratos da empresa com o serviço público.

Manchete enganosa

A Folha deu manchete oposta ao significado dos fatos: ?Comissão aprova pedido de auditoria em contratos da União com a Fence?. Esse é um caso interessante no qual a manchete não é falsa em si mesma. De fato a comissão aprovou o pedido de auditoria nos termos reportados. Mas o significado do fato é exatamente o oposto do que se infere da manchete como mostra muito bem a reportagem do Estadão e a própria reportagem da Folha, no corpo da matéria. Ingenuidade do editor ou conluio com Serra?

Os juros mais altos do mundo

No mesmo dia em que o Copom decidiu manter a absurda taxa do juro básico, a Global Invest divulgou seu estudo que compara taxas de juro real em mais de 40 países, como faz todos os meses. Os jornais de referência nacional ignoraram o estudo da Global Invest, como ignoram todos os meses. Mas a Globo News deu ontem a noite um resumo, mostrando que o juro real do Brasil continua entre os mais altos do mundo: Polônia: 17,2%; Argentina: 13,2%, Brasil: 9,5%. Nos países centrais os juros reais estão na casa do meio a 1%.Com os nossos juros, como pode o FMI dizer que a economia brasileira vai bem? Isso é juro de doente terminal. Febre de 42graus.

Na entrelinhas

Comentário na página B2 do caderno de economia do Estadão de ontem revela que os empréstimos do FMI que Malan esta devolvendo antes do prazo, custam mais barato do que o dinheiro que ele diz que vai tomar no mercado para substituir esses empréstimos.?Pode parecer estranho que se antecipe o reembolso de um empréstimo cujo custo é ligeiramente menor do que o custo dos recursos captados através da emissão de bônus.? O jornal, constrangido, tenta explicar com a hipótese de que o governo depois pegaria dinheiro de outro tipo de linha de crédito do FMI, que é ainda mais barata ainda. Ora isso não justifica, porque o governo já está pegando dinheiro no mercado pagando o dobro do que cobra o FMI.

O mau cheiro que exala de Jenin

Os palestinos falam em até 500 mortos. Os israelenses em 188, (contados até ontem). Os números são importantes e deveria se exigir um inquérito independente desde já para determinar os fatos. Mais reveladoras do que números são as imagens dos cadáveres embrulhados em lençóis brancos, como a da página A12 da Folha de hoje. A TV, tanto CNN como BBC, rompendo o padrão de simulacro consagrado do telejornalismo convencional ao mostrar os corpos embrulhados em lençóis brancos sendo colocados em caminhões. Ou árabes abrindo pequenas frestas nos lenços para identificar seus mortos. Um realismo só comparável pela força comunicativa de seu próprio despojamento, ao documentário feito por John Ford nos primeiros dias do desembarque aliado na Itália, por encomenda do exercito americano, em que ele mostrava em silêncio os corpos de soldados americanos sendo colocados em sacos com zíperes, que depois eram lentamente fechados. Os takes de John Ford, descobertos recentemente pela RAI italiana, nunca haviam sido exibidas devido ao seu realismo. Na página A18 do Estadão de hoje, em ?árabes aprendem a usar o poder da mídia?, Max Rodenbek, do New York atribui um papel central às imagens na fase atual da luta palestina e avalia a influência dos novos aparato de comunicação de imagens na região. Na página A15 Folha de ontem em ?Soldado que atuou em Jenin nega massacre?, temos a versão israelense dos fatos na forma escrita. A entrevista de Marcelo Starobinas com o soldado é forte. Mas prevalece na percepção do leitor a imagem que a acompanha e que nega o teor da narrativa: a foto de dois soldados israelenses em Jenin tapando os narizes devido ao mau cheiro que exala dos cadáveres.O mau cheiro sai da foto, como se estivéssemos ali.

Não deixe de ler

Os ?Desacertos do modelo elétrico?, primeiro de uma série de dois artigos de Luís Nassif, na página B3 da Folha de hoje que mostra o colapso do modelo elétrico. Uma importante virada de Nassif, antes defensor das privatizações.

17/04/02

Americanos insistem no golpe

A reação despropositada do governo americano, retirando famílias e diplomatas da Venezuela, pode ser um truque para desviar a atenção do seu fiasco. Mas mostra também que Bush continua alimentando a crise, fazendo pressão para inverter o jogo de combinação com os empresários golpistas, que estão adotando a mesma estratégia. A manchete interna da Folha de hoje é sugestiva: ?Oposição questiona legitimidade de Chávez?. Ou seja, questionam justamente o único ponto inquestionável e que levou à derrota do golpe, o de que ele é presidente legítimo da Venezuela. Pela lei e pela força dos fatos.

E mentem à opinião pública

Dá para acreditar que altos funcionários do governo americano tiveram encontros secretos com os golpistas da Venezuela para dizer a eles que não dessem um golpe? Foi disso que tentou nos convencer o porta-voz de Bush , Ari Fleischer, ontem á noite. A mídia reproduziu sua fala constrangida com doses variadas de ironia. Nos Estados Unidos é feio mentir. É mais grave do que roubar. O porta-voz fez o que pôde para salvar a cara do governo Bush, dizendo só metade das verdades. A metade menos importante.

Deu no New York Times

A outra metade saiu nos jornais. Fleischer só falou porque foi forçado pela mídia. Primeiro a Newsweek, e depois o New York Times: noticiaram que funcionários norte-americanos tiveram vários encontros com os golpistas, inclusive com o golpista-mor, o empresário Pedro Carmona. Ou seja; estavam conspirando o tempo todo. Alguns funcionários disseram que nessas conversas insistiram que Chaves deveria ser removido dentro da lei. Outros disseram que não foi posta tanta insistência assim no respeito à lei. A insistência foi na necessidade de remover Chávez. O New York Times é um jornal único, como referencial da mídia de qualidade. O que sai no New York Times pauta a mídia de todo o mundo.

E o jornal faz o mea culpa

O New York Times desculpou-se perante os leitores e a opinião pública por ter festejado a queda de Chávez: ?Essa reação desconsiderou a maneira não democrática como ele foi removido. Depor à força um líder eleito democraticamente, não importa quão mal ele tenha se saído, é algo que não deveria jamais ser comemorado.? Está certo. Grandes jornais são dotados de um núcleo ético que sobrevive às suas próprias malandragens. A palavra agora está com o Estadão e o JB, que também comemoraram a derrubada de Chávez em editoriais. Por que nesse caso eles não se desculpam perante os leitores, seguindo o padrão do New York Times?

Empresários golpistas?

Os proprietários dos jornais brasileiros não pediram desculpas porque vestem a camisa de um empresariado geneticamente golpista, e não a do jornalismo democrático. Foi o que fizeram em 1964, quando aderiram à conspiração golpista e alguns, como Júlio Mesquita, até ofereceram seus escritórios no jornal para as reuniões conspiratórias. Elio Gaspari destaca na sua coluna de hoje a simbologia de Pedro Carmona, como exemplar típico do empresário golpista latino-americano. Acha que seu fiasco foi emblemático do fim do ciclo dos golpes na América Latina. Agora ele precisa convencer disso os donos do jornais em que sai sua coluna. Julio Mesquita morreu arrependido de ter participado do golpe de 64, mas seus descendentes parecem não se arrepender nem um pouco.

No discurso, os golpistas estão isolados

Nos Estados Unidos também há esse fenômeno de filhos serem menos democratas do que seus pais. Paulo Sotero cita em seu despacho de hoje, no Estadão, um artigo de Arturo Valenzuela, no Washington Post, em que o ex-assessor de Bush pai diz que o Bush filho ?traiu a democracia?.

Essas falas, artigos e discursos são muito bons. Mesmo sem endossar a tese de que a democracia é o fim da história, podemos entendê-la como uma conquista dos povos e um valor universal. Paul Krugman escreve hoje que mesmo que o golpe tivesse sido bem sucedido, a atitude do governo americano foi tola. E que, ao apostar num bando de incompetentes, o governo americano se desmoralizou e se isolou.

Não deixe de ler

Três artigo interessantes: Delfim Neto, na sua coluna de hoje na Folha, ataca o mito de que a agricultura francesa é ineficiente, sobrevivendo graças apenas a subsídios. Ele mostra com números como a política de subsídios levou à continua modernização agrícola e aumento da sua produtividade. Explica também a força política dos agricultores franceses. Seu artigo dá razão à defesa que Lula fez da agricultura francesa, ridicularizada na ocasião pela mídia. Vamos ver agora se os colunistas chapa-branca terão a coragem de ridicularizar Delfim.

Dois outros artigos devem ser lidos: o de Paul Krugman, que está em quase todos os jornais, e o de Guilherme Barros, na página B12 da Folha, sobre o escândalo do documento dos lobistas pela quebra das regras da telefonia, endossada por Armínio Fraga.