Tuesday, 07 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Briga de big brothers

GLOBO vs. SBT

Nelson Hoineff (*)

O episódio Casa dos Artistas expõe as diversas falhas da proteção à propriedade cultural e comercial no Brasil. É quase um compêndio da selva instalada neste setor: numa visão superficial, o programa copia acintosamente o Big Brother, do qual a Globo é legítima detentora dos direitos; expõe o nome de uma instituição filantrópica séria que doravante terá seu nome associado a uma atração de TV, com claros prejuízos para sua credibilidade; e por aí vai, numa sucessão interminável de transgressões jurídicas.

Mas o que esse imbróglio traz de mais emblemático é a refrescada que dá na discussão de um componente do produto televisão que deveria ser sua essência e que, ironicamente, no Brasil, tem se tornado um acessório residual: a programação.

Qualquer produto industrial, seja um automóvel ou uma lata de cerveja, tem seu desenvolvimento estimulado pela qualidade do que está sendo oferecido ao mercado. Distribuição, marketing, publicidade, tudo isso é essencial para as vendas, mas tem como base a qualidade do produto. Não há notícia de cervejarias que não se preocupem pelo sabor da cerveja que fabricam.

A televisão comercial vende dois produtos: programação para o público e espaço publicitário para os anunciantes. Vive da segunda venda, mas tem no sucesso da primeira o pré-requisito.

Ou melhor: deveria tê-lo, num ambiente competitivo. Como na maioria dos casos a competição não existe, a equação se resume em vender os espaços comerciais a custos ligeiramente maiores que os do conteúdo que eles abrigam. Levando-se em conta que nesta equação o preço é uma constante e não pode aumentar, a solução está em encontrar conteúdo mais barato ? o que pode ser feito em qualquer mercado internacional ou por meio de distribuidoras que oferecem enlatados (americanos, mexicanos, venezuelanos) a um custo geralmente 15 vezes menor que o de uma produção local. O que vale não é a diferença de desempenho que pode haver entre um e outro ? todos estão disputando um espaço em torno de 5%, tanto da participação quanto do bolo publicitário, de maneira que 10% sobre os 5% não representam quase nada ?, mas a certeza de que o custo do conteúdo é suficientemente baixo para fazer face a uma receita muito pequena.

Questões éticas

Há raros casos na televisão brasileira em que a competição aflora. Casos em que tanto a receita publicitária quanto a participação na audiência podem ser divididas entre duas ou mais concorrentes. Um destes casos de exceção é a tarde-noite de domingo.

As razões para isso são complexas e começam na extraordinária empatia de um ex-camelô que se tornou em pouco tempo um dos maiores astros e empresários da televisão brasileira. O fato é que os domingos passaram a exigir o que poderia ser exigido em todos os outros horários, mas acabou sendo negligenciado pela inércia acomodatória da televisão no Brasil: o cuidadoso desenho de estratégias de programação.

Neste sentido, e não considerando as implicações jurídicas do caso, Silvio Santos comandou na última semana uma extraordinária batalha de estratégias de programação. Seus méritos podem ser divididos em várias etapas: 1) a idéia de imitar o reality show Big Brother, mesmo sabendo que não era detentor dos seus direitos; 2) a adaptação do programa para o cotidiano de artistas no limiar entre a fama e o ostracismo, quase todos capazes de construir seus barracos pessoais sem grandes constrangimentos; 3) o sigilo com que o projeto foi desenvolvido; 4) a divertida ironia de fazer tudo isso ao lado da própria casa do apresentador, que semanas antes havia sido objeto de intensa vigilância por parte da mídia; 5) o lançamento planejado para bater de frente com a terceira série do Sem Limite, na Globo ? levando-se em conta sobretudo que o original do Sem Limite ? o Survivor ? começou a dar mostras de esgotamento justamente no momento em que Big Brother despontava como seu sucessor.

A reação da Globo foi correta ? tanto na ação jurídica quanto na redação da nota posterior, onde alertava para o futuro da propriedade intelectual no Brasil. Mas ao anunciar o Big Brother brasileiro para abril do ano que vem a emissora fazia o jogo de sua concorrente, admitindo que ela chegara cinco meses na frente.

E por que o SBT foi capaz de chegar cinco meses na frente da estrutura muito maior de sua rival? Justamente pelas razões que lançam sérias questões éticas sobre o enfrentamento jurídico.

Capítulo raro

Mesmo detentora dos direitos de um programa como Big Brother, por exemplo, a Globo dificilmente se arriscaria a colocá-lo no ar pelo simples fato de que o programa não possui o seu perfil. Se não possui, por que o comprou? Para evitar que outros o fizessem. Isso é novidade para alguém? A mesma prática é regularmente adotada tanto pela Globo quanto pelo SBT e outras emissoras, em relação a artistas sob contrato mas fora do ar para que não trabalhem nas outras. Qual o fundamento ético de atitudes dessa natureza?

A resposta a essa pergunta passa por outra questão essencial. A da importância da definição e cristalização dos perfis das emissoras para os seus próprios desempenhos.

No Brasil, emissoras de TV trocam de perfil como quem troca de camisa. Isto se deve na melhor das hipóteses à crença de que a conquista de fatias residuais de mercados já abertos é mais importante do que a redefinição da maneira pela qual este bolo é dividido. A outra hipótese, a pior, é que na maioria das vezes não haja simplesmente, por parte das emissoras, a manifestação da vontade ou a competência para o desenho e busca de perfis próprios, que deverão ser confrontados com os mecanismos existentes de produção mas que sirvam ao diálogo com públicos novos e desatendidos.

Das duas hipóteses resulta o caráter imitativo da televisão brasileira, a intrigante ausência de atendimento a uma fatia muito grande (talvez até majoritária) do mercado e à crise de pluralização, donc de qualidade, que é o corolário natural dessa situação.

Globo e SBT, com todos os seus problemas de identidade, são ainda assim as exceções mais visíveis. Pode-se ao menos identificar, numa e noutra, a construção metódica de perfis que solenemente inexistem em todas as demais. Só isso já permitiria que o SBT clamasse o seu direito ético de utilizar a versão canhestra do Big Brother que, se exibida pela outra, causaria mais danos ao seu perfil do que benefícios numéricos (ainda que não necessariamente financeiros) imediatos. Em outras palavras, levar ao ar o Big Brother (sobre o qual a Globo tem direitos legais) seria para a Globo um risco muito maior do que para o SBT o é simplesmente pirateá-lo.

O que remete, por sua vez, a uma questão ainda mais complicada. O pirateamento é neste momento um conceito que vale (ainda que de maneira rudimentar) para a propriedade intelectual das grandes distribuidoras estrangeiras, mas permanece um completo estranho à propriedade intelectual de autores brasileiros. Ainda que esparsamente a imprensa noticie uma ou outra ação judicial neste sentido, na prática o que vale é o que a emissora quer. A defesa intransigente de um estado de direito intelectual é portanto bastante nobre quando os prejudicados são grandes redes de televisão, ou distribuidoras internacionais de programas, mas deveria sê-lo também quando os lesados são autores sem poder de fogo semelhante.

A guerra do Big Brother, de qualquer forma, transcende em muito a própria vida útil do programa ? que, como os demais reality shows, a começar pelo Survivor, são desenhados para serem tão efêmeros quanto a curiosidade do espectador pelo momento da primeira transgressão. Essa guerra escreve um raro capítulo na televisão brasileira de confrontação de estratégias de programação. Lembra que televisão é, em resumo, o embate permanente entre programação e contra-programação.

A inexistência desse embate é que revela fraqueza, desinteresse e acima de tudo incompetência. No fundo, Globo e SBT estão chamando atenção para as diferenças, numa atividade em que todas as outras acreditam só haver semelhanças.

(*) Jornalista, diretor e produtor de televisão