Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cidadãos, consumidores, acionistas e mercado

Betch Cleinman (*)

 

A

noção econômica que anda predominando nas mentes e nos salões globalitários é a de que o consumidor seria um dos novos monarcas da atualidade. Seu desejo de obter produtos e serviços cada vez mais baratos não pode ser contrariado. E o único meio de satisfazer sua vontade seria o corte de despesas inúteis, o aumento da produtividade. A partir dessa lógica, milhões de cidadãos no planeta estão sendo demitidos de seus empregos formais e jogados debaixo das pontes da exclusão. Em nome do enxugamento dos custos, de teorias novas de gerenciamento, como a de “pagar mais a menos pessoas”, cidadãos ainda integrados à sociedade formal vão sendo explorados de maneira inédita na história universal.

O progresso tecnológico, com a introdução dos telefones celulares, pagers, fax, acabou com a separação entre vida privada e mundo do trabalho. Agora, as empresas podem chupar de canudinho até os eventuais momentos de lazer e convivência com a família de seus funcionários. Os poucos sobreviventes empregados, para receber o mesmo salário, estão sendo obrigados a trabalhar cada vez mais para dar conta da ausência dos colegas jogados no olho da rua., para bem longe das conquistas da modernidade.

Cidadão e consumidor são a mesma
pessoa com objetivos diferentes

Enquanto vamos sendo bombardeados com mensagens imperativas de “coma”, “beba”, “compre”, “use”, “aproveite, é hoje só”, em um movimento constante de incitação ao consumo, uma outra mensagem surge das páginas da seção de economia: a falta de poupança interna. Segundo diversos economistas, os brasileiros não sabem poupar. Seriam as cigarras da fábula. Será que diante desse bombardeio algum dia chegaremos à percepção da senhora Nomura, jornaleira japonesa? Essa população é apresentada ao mundo como poupadora contumaz, não havendo meios nem pressões para que passem a gastar seu rico dinheirinho. Ao ser indagada sobre como recebia os anúncios governamentais de medidas para estimular o consumo no Japão, assim respondeu: “O problema para mim e para milhões de pessoas com renda média ou baixa é o da sobrevivência. Em nosso país, não há uma verdadeira política de previdência social. Nossa população envelhece rapidamente. Ninguém, além de mim, vai olhar por mim quando envelhecer. Quanto mais o desemprego aumentar, mais as pessoas economizarão. Além do mais, sabemos que os dados e números oficiais são falsos”.

E os cidadãos, o que querem? Para poder beber a loura estupidamente gelada nos fins de semana, ao som do techno ou do pagode, assistindo a um jogo de futebol, eles precisam, além da segurança patrimonial, a segurança da estabilidade no emprego, a certeza de que seus filhos terão boas escolas, a tranqüilidade de condições de saúde e saneamento básico, além de hospitais bem aparelhados. Nossa imprensa, no entanto, só ressalta a segurança em sua dimensão de caso de polícia. Até mesmo no debate entre candidatos ao governo de São Paulo, a ficha em que constava o tema segurança a ser proposto para a sabatina era identificada pelo desenho de um policial.

A partir do momento em que se enfatizam idéias de que “bandido bom é bandido morto”, totalmente em desacordo com os princípios constitucionais que regem o país, continuaremos a assistir, impotentes, a dramas como o que atingiu a família do mecânico Sidney Vieira Lima: o assassinato por policiais militares de sua esposa, do seu bebê que ia nascer e do filho de 4 anos. Quando há poucos meses atrás, um possível assaltante de banco foi morto em Ipanema por um PM diante dos telespectadores, a população vibrou, pois foi-lhes transmitida a noção de que a justiça fora feita. Agora, um primo da mais nova vítima assim reage ante a sua morte inesperada: “Em vez de esse pessoal estar matando bandido, eles estão matando inocentes. Eles têm de ser punidos.” Mas como poderiam no calor da ação separar o joio do trigo? Sem um devido preparo tanto dos policiais e seus comandantes como da população em geral para noções essenciais de um Estado democrático de direito, como a de presunção de inocência, a necessidade de um devido processo legal, o direito de todo acusado submeter-se ao contraditório, “fatalidades”, de acordo com o jargão policial, como essa continuarão a ocorrer com muita freqüência.

Acionistas e mercado têm legitimidade democrática? Além do consumidor, outros atores políticos vão tentando afastar o cidadão do centro do palco da arena decisória: os acionistas e o mercado. Mas qual seria sua legitimidade democrática? Sem discutir esse ponto, os meios de comunicação insistem em mostra-los como atores políticos de pleno direito. Em um jornal carioca, um editor escreveu: “O que interessa ao acionista não é o favor político, a sinecura, e nem mesmo o controle gerencial, mas a pura e simples capacidade das empresas para gerar lucros e pagar dividendos”.

Se esses são os legítimos interesses dos acionistas, o que os cidadãos têm a ver com o processo de privatização e entrega do patrimônio público? Fica claro que a meta é gerar lucros e dividendos privados, e não distribuir parcelas cada vez maiores de bem-estar coletivo, aumentando os espaços de exercício de cidadania. Essa lógica econômica, tão martelada em nossos corações e mentes pela imprensa como verdade absoluta e única, nos transforma a nós, cidadãos, em “estômagos avariados”. A nós só caberia o papel de encher o bucho com água e farinha salgada. Nesse jogo, decidir, escolher, pensar, refletir, almejar o absoluto, seriam cartas fora do baralho.

(*) Durante um ano e meio Betch Cleinman manteve no Globo, aos sábados, uma página de defesa da cidadania.