Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Ciro Marcondes Filho

REALITY SHOWS

"A devoração da telinha", copyright Folha de S.Paulo, 31/3/02

"Depois da publicidade e da propaganda política, a pornografia e a hiperviolência midiática abriram o caminho a um conformismo da abjeção. Paul Virilio

Big Brother? é o primeiro programa genuinamente mundial de televisão. Criado na Holanda pela firma Endemol, foi rapidamente vendido a 25 países que adotaram sua fórmula básica e ganharam minas de ouro com ele. Nem os resultados das transmissões de finais de campeonatos de futebol nem os festivais de cinema nem os shows de grande audiência bateram-lhe o sucesso. Na França virou ?um verdadeiro assunto de Estado?. A fórmula do programa é banal (?volta ao básico?) e, sem dúvida, não está aí a razão de seu sucesso. Os heróis devem ser pessoas ?normais? (o que não foi bem o caso na TV Globo), não representar nenhum papel nem encenar emoções: tudo muito real. O total isolamento dos participantes e a impossibilidade de não ser observado devem, na concepção original do programa, traduzir sentimentos verdadeiros: não dá para adiar nem para recalcar emoções ou indisposições com os companheiros de cela. O curioso é que o atrativo não está no sexo nem na nudez, mas nas conversas; são estas que prendem o telespectador nessa encenação do cotidiano, que, via de regra, é muito chato.

A idéia de ?Big Brother? amadureceu nos últimos anos. Seu precursor mais direto são as webcams, pequenas câmeras acopladas no computador que emitem imagens diretamente dos domicílios via internet para qualquer um. Mas ?Big Brother? supera essas iniciativas pontuais ou precárias e cria um pacote em que a invasão da intimidade do outro se acopla a um sistema técnico sofisticado, acrescentando regras de concorrência e exclusão e receitas banais de televisão. O intrigante é que o formato emplacou bem e surpreendeu até os mais céticos. Algo mudou na vida das pessoas nestes tempos de novo século.

Processo cultural

A crítica clássica ao programa fala de desprezo humano, de pessoas fracas das idéias, de pornô social; outros fazem uma salada de voyeurismo, exibicionismo, vigilância e submissão. Sucesso do sórdido, histórias de amor desenvolvidas in vitro, fase canibal da cultura de massa, isso e aquilo. Mas perde, com essa verborragia toda, a dimensão do que está de fato acontecendo. E isso não é pouco. Como pode uma emissão tão cansativa (?Big Brother Brasil? só não consegue ser mais chato e insuportável que ?Casa dos Artistas 2?), que não tem muito de ?vida verdadeira?, chegar tão longe? Não há de ser somente estímulo endógeno, ou seja, por força da própria presença e publicidade da televisão (se bem que isso o ajude a alavancar audiência). É preciso uma perspectiva um pouco mais ampla.

A internet não surgiu do nada. Ela já desbancou a televisão, assim como o cinema, no começo da hegemonia da TV, ficou reduzido a seu quintal de produção de séries semanais. Um meio devora o outro, já dizia Victor Hugo, e não há como escapar: a selva tecnológica não tem clemência, e dessa vez a TV foi canibalizada e seu futuro não será melhor do que o de seus antecessores: uma vivência marginal no cenário do entretenimento.

Mas, para captar o sentido atual das transformações, é preciso pegar ainda mais fundo: o da mudança das sensibilidades que provocou o fenômeno atual da corrosão das intimidades. De cento e poucos anos para cá estamos assistindo a um processo cultural interessante: o cinema, quando surgiu, ocupou o espaço das festas e quermesses populares, condensando numa tela o universo possível do prazer e do sonho. Em meados dos anos 50, a televisão recolheu as pessoas das ruas e levou esse mesmo cinema para dentro das casas, acrescentando informação, esporte, humor etc. Hoje a internet avança mais nesse trabalho, trazendo bancos, bibliotecas, órgãos públicos, todo um universo para o interior dos domicílios. Algo está se passando: o mundo, a vida, está deixando as ruas e se condensando cada vez mais nas telas. A realidade externa está evaporando. Mas acontece ainda outro fenômeno.

No passado, as pessoas possuíam vida social e comunitária, mas havia um forte controle da religião. O ascetismo, a moral, a pressão do grupo impediam (e criminalizavam) dissidências. Mas esse poder foi se dissolvendo. Hoje ninguém mais leva muito a sério a religião, as tecnologias ocuparam seu lugar. O controle da vida e dos passos das pessoas séculos atrás era ao mesmo tempo opressor e tranquilizante, ninguém precisava decidir muita coisa, já estava tudo pronto. Com as novas tecnologias -a ?nova metafísica?- todos ficaram livres e, ao mesmo tempo, um pouco baratas tontas, sem rumo, sem direção. ?Big Brother? recoloca algumas coisas no lugar e restitui aos telespectadores o sentimento de onipotência diante de personagens frágeis, fáceis de ler (na Alemanha, o vitorioso da série 2 foi Zlatko, um rapaz tipo proletário, sem leitura ou formação, incapaz de elaborar uma frase inteira. Ele sugeria autenticidade. A emissora aprendeu com ele a substituir as meninas bonitas e os ideais de beleza por formas mais rudes, como a de Sabrina, ou um pouco idiotizadas, como Verena). Além do mais, reinventa o sentido de comunidade entre os fãs de ?Big Brother?. Os fuxicos, as especulações, os boatos se tornam -e isso é notável- mais interessantes que a própria série.

Pulsão de se mostrar

O incrível é que o formato capturou outra mudança de atitude: as pessoas não desejam mais tanto ver, como no voyeurismo; hoje elas precisam mais ser vistas. A fantasia de ser o objeto do sonho de outra pessoa é bem mais forte. Por isso o reforço à pulsão de se mostrar. A tragédia do mundo atual é não ser observado. Homens e mulheres necessitam mais do que nunca do olhar da câmera para provar sua existência. Por isso de nada adianta discutir o conteúdo na série. Críticas teóricas, análises de conteúdo, tudo inútil. O segredo está na superfície. Nessa pulsão do se mostrar, do abrir sua intimidade ao outro, que a internet hoje multiplica infinitamente, a intimidade exposta parece ser hoje a resposta ao vazio criado pelo desaparecimento das crenças e das religiões e pelo branco total que vem junto com a cultura tecnológica.

O íntimo outrora era o segredo de cada um, seu ?tesouro?. Havia boa demanda para isso, as pessoas se marcavam pelo seu mistério. Era a alma do romantismo. Hoje, com a massificação e a impessoalização, terminou a demanda do íntimo, seu preço de mercado despencou. As pessoas entregam-no facilmente. A miséria se desmaterializou, chegou ao espírito. Diários íntimos multiplicam-se na internet, pessoas expõem seus pensamentos mais interiores, seus sentimentos mais escondidos. É a era da TV ?trash?, em que platéias deliram com confidências escandalosas, com criminosos detalhando seus crimes hediondos, com revelações inacreditáveis da vida privada. E na fila há mais 4.000 ou 5.000 pessoas, a cada semana, esperando a sua vez de falar. No programa ?Jerry Springer? [?talk show? da TV americana?], uma mulher, em meio a revelações de prostituição e incesto, com respectivos parentes presentes, assassinou a ex-mulher do marido, fato assistido por 8 milhões de telespectadores extasiados. É o efeito internet. A facilidade de exposição, aliada a uma alta sensação de insignificância (não há mais Deus, nenhum valor é mais alto que a própria prova de existência), escancarou as comportas da subjetividade. Vale provar que, se existe a qualquer preço, é porque ninguém está mais aí para comprová-lo.

Mostrar-se na tela

Mostrar-se, mas principalmente mostrar-se na tela, já que o outro mundo dissolveu-se no ar, torna-se a meta mais alta e a única.

A internet incorporou a televisão e esvaziou seus conteúdos, deixou-nos essa aridez da transparência técnica. Já assistimos a isso no passado. A era da alta política grega, com seus debates e suas questões do cidadão e da participação, cedeu lugar, no helenismo, a um materialismo frívolo, centrado no indivíduo, meramente pragmático, indiferente a tudo e a todos. Sinais de declínio. Na época, emergiu disso um cristianismo ascético, marcado pela culpa, o ressentimento, a não-vida. Hoje a religião é a tela, e dessa metafísica não se pode esperar uma salvação do niilista perdido; quando muito, o retorno do recalcado a reivindicar um pouco de vida nesta morte branda e indolor."

 

"A comunidade imaginária", copyright Folha de S.Paulo, 31/3/02

"Para além das páginas de jornal e dos índices de audiência, teóricos da comunicação polemizam sobre o significado dos ?reality shows?, relacionando o formato televisivo a novos paradigmas de sociabilidade e produção do conhecimento.

John Hartley, diretor da Faculdade de Indústrias Criativas da Universidade de Tecnologia de Queensland (Austrália), defende que esses programas realizam o que ele chama de mudança da ?audiência de massas? para a ?audiência interativa?.

Nesta entrevista, o professor, autor de inúmeros livros como ?Uses of Television?, ?Popular Reality: Journalism, Modernity, Popular Culture? e ?The Politics of Pictures: The Creation of the Public in the Age of Popular Media? (ed. Routledge), expõe idéias desenvolvidas no contexto dos ?estudos culturais?, inicialmente no Reino Unido, onde lecionou, e atualmente na Austrália, país que vem se notabilizando pela produção e formulação teórica na área do audiovisual.

Como definiria os “reality shows?”?

Os ?reality shows? consistem em programas de TV com pessoas comuns como personagens principais em formatos não-ficcionais, que frequentemente expõem os participantes a testes ou a situações extremas. Esses programas ajudam a forjar-vincular espectadores em ?comunidades imaginárias? e, portanto, consistem em parte no que denomino ?democratenimento?.

O que seria “democratenimento”?

Parafraseando meu próprio trabalho, no contexto das novas tecnologias, comunicações de consumo, indústrias do entretenimento e realidade virtual, a formação da vontade democrática, o drama e a educação pública convergem. Mas, simultaneamente, há um retorno a um conceito de cidadania, derivado da teoria política da cidade-Estado grega, onde democracia, drama e didática eram uma coisa só, praticada no mesmo local e pelas mesmas pessoas, cuja assembléia face-a-face constituía a pólis e cuja ação coletiva de ouvir oradores, atores e líderes constituía a audiência.

A desarticulação dessas funções de governo, educação e mídia é recente e pode ser associada à modernidade. Ao reunir esses elementos, a TV se constitui num meio potencialmente a um só tempo democrático, de entretenimento e educativo.

Por que esses programas atraem tanta atenção nas mais diversas parte do mundo?

Desde sua formação nos anos 40, as audiências de TV vêm mostrando uma tendência bem marcada a dar preferência a conteúdos de não-ficção com manipulação mínima por profissionais. Isto é, audiências não gostam de propaganda e não gostam de especialistas, a não ser que esses especialistas estejam a serviço da pessoa comum, como em programas de jardinagem, culinária, moda ou estilo de vida. Então a ?TV realidade? possui apelo porque ela promove a transparência entre o espectador e a pessoa na tela. Todas os ingredientes pertencentes às relações familiares, como emoções, tolerância, duplicidade, podem ser vistos diretamente, sem mediações.

Esses programas são os mesmos nos diversos países em que ocorrem?

Em todos os lugares há o mesmo formato e diferentes pessoas. Para dar certo, é necessário que as pessoas na tela façam parte da ?nossa comunidade? -em alguns casos esse conceito se expande para incluir norte-americanos, como no caso do ?Survivor?, na Austrália. Mas não é possível incluir pessoas que falem línguas estrangeiras.

Em sua opinião, quais são os mecanismos de produção do significado em jogo nos “reality shows”?

Os ?reality shows? situam a fonte de significado na relação com o leitor/audiência, em vez de situá-la no texto -como no modernismo- ou no autor -como no catolicismo. Esses programas são parte de uma tendência geral que se afasta da epistemologia modernista em direção a formas pós-modernas que valorizam o privado, feminizado, ?comum? e ?desprezado? em oposição ao mundo oficial do governo, dos negócios, dos processos de decisão e da democracia. Eles promovem identidade, estilos de vida, consumo, celebridade, que é onde nos tempos que correm devemos procurar a esfera pública.

É possível pensar “reality shows” como uma rede que conecta domicílios com mídia interativa?

Sim. Eles se constituem em parte na mudança de audiências de ?massa? para ?interativas?. ?Big Brother? foi um evento enorme aqui na Austrália, envolveu o fato de estar na TV como estrelas populares, com espectadores votando, participando no estúdio, cobertura multimídia, em revistas de fofoca, programas de notícia, shopping centers. A audiência é agora como que um ?personagem? no show.

Seria possível pensar que o apelo desses programas se encontra nesse caráter de rede, e não em seu conteúdo dramático, que é fraco?

E quem disse que o conteúdo dramático é fraco?!

O sr. conhece algo da TV brasileira?

Muitas coisas. Quando morava na Inglaterra assistia novelas brasileiras que passavam no Channel 4."

 

"Com os miolos ao léu", copyright NO., 22/3/02

"Estou entrando de férias e vocês vão me desculpar se o texto já está de bermudas, dando chinelada nas vírgulas e esparramando caipirinha entre o sujeito e o verbo.

Acho que a Vanessa, coitada, tão caladinha e pudica, leva o Big Brother Brasil porque, parodiando o Millôr, como são corretas e decentes essas pessoas que a gente não conhece bem! Mas cuidado com o Kleber, neguinha. É, ?no meu modo de vista?, Brasil em estado bruto. Desarticulado, ?elegido? pela educação miserável que se dá nas escolas, Kleber ? se me permitem o cruzamento de Jabor com Glauber ? sinaliza a revolta instintiva do interior caipira lutando sozinho contra os sulistas urbanóides que dominaram a casa-país. Se perder, Kleber ameaça cometer um auto-froticídio, detonando na sala do Bial todas as bombas que implantou nos bíceps e deltóides.

De qualquer maneira, sorry, me pouparei da cena. Cansei de malhar o cérebro vendo essa gente malhar o corpo e, 92 semanas e meia depois de começar meu reality-show particular, em que fui obrigado pelo no. a me trancafiar e me ?entretenir? exclusivamente com Luciana Gimenez e suas colegas de távola redonda, saúdo o grande Getúlio Vargas, reverencio as leis trabalhistas e fujo para zerar o QI. Serão 30 dias de miolos ao léu. De férias, talvez numa piscina de água natural em Porto de Galinhas, talvez encharcado de pastel de nata numa padaria de Portugal, onde estiver espero não ser alcançado pela notícia do vencedor e sua opinião se Romário sim, se Romário não. Também não me interessa a declaração sobre o que faria com o dinheiro do Murad.

Que vença o pior! Que Silvio Santos mude as regras de novo, que a Estela permaneça feliz com os seis mil mortos do World Trade Center, a Leka realize seu sonho de ?uma diarréia seguida de vômito? ? e esse modelo de programa se desgaste definitivamente, obrigando relâmpagos mais criativos na tempestade de idéias dos gênios televisivos. Tenho esperança que a coisa melhore. Por mais que o Sarney suba à tribuna, por mais que os deputados gastem R$ 300 mil na missão Casamento de Jade, por mais que o mosquito mate ? tenho esperança. Um país capaz de fazer o gol que o Alex fez na quarta-feira contra o São Paulo é capaz de tudo.

A televisão pirou com a brincadeira do voyeurismo e parece que vai ficar nisso o ano todo. Promete-se a estréia de vários programas desse tipo em abril, alguns para escolher músicos de uma banda pop, outros para juntar-e-separar casais numa ilha paradisíaca de corpos idem ? mas infelizmente, nada pessoal, estarei em alguma outra ilha bem distante. Contem-me fora. É um dos momentos mais aborrecidos da televisão nos últimos tempos e, para quem passou os últimos dias ouvindo Ricardo Macchi explicar a teoria da relatividade, as férias me cabem justas. As emissoras que não têm esses shows passam o tempo entrevistando e fofocando sobre os personagens desses shows. O da poltrona, que não desgruda de nenhum deles, completa a maluquice reclamando do baixo nível geral. Espero que não me acusem de ser um novo Sérgio, o português que vive fugindo das questões polêmicas no BBB, mas ouço ao longe a chamada para o meu vôo.

Volto em maio. Espero que o tempo e a boa consciência ajudem a Marluce, o Silvio e até o Mion a optarem por uma televisão que construa alguma coisa. Uma televisão que melhore as pessoas, privilegie os bons princípios, dignifique os gestos de civilidade e permita que a família possa se juntar de novo na sala para ver o mesmo programa, sem que ninguém fique ofendido com o rabo dos ararutas e dos baralhos aparecendo por trás do apito dos bips.

Uma programação que não esconda os barracos atrás dos tapumes, como se fez tempos atrás na visita de uma rainha da Inglaterra ao Rio, mas que mostre o resto do país ? de casas decentes e pias limpas. Xuxa pediu modos aos big brothers. O público não se cansa de pedir emprestado um pouquinho do sangue azul Bic que corre nas veias da condessa Scarpa para assinar embaixo, concorde de nojo com a porcaria que ela viu espalhada pela casa dos artistas. Pode parecer complicado reformar o prédio da televisão brasileira, mas mirem-se nos rabiscos que Niemeyer faz para iniciar seus palácios ? haverá coisa mais simples? Tenho esperança. Em caso de dúvida, passem de novo o vídeo do gol do Alex. É por ali, com inteligência, elegância e bom humor, que se constrói um país.

Sem mais, me despeço. Sigo já saudoso, mas vou ser sincero: de televisão, nas férias, lembrarei apenas do bordão-conselho da dona Odete no Clone. Em cada mergulho, um grande splash."