Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Clóvis Rossi

TIM LOPES, ASSASSINADO

"Os limites do presidente", copyright Folha de S. Paulo, 11/06/02

"O presidente Fernando Henrique Cardoso aceitou dar uma palavrinha à Globo, no domingo à noite, a propósito do assassinato do jornalista Tim Lopes. Melhor seria ter ficado quieto.

O presidente começou dizendo que as coisas haviam ?passado do limite?. Exatamente o mesmo que dissera meses atrás, quando do sequestro e posterior assassinato do prefeito Celso Daniel (Santo André, PT).

Não, presidente, a violência no Brasil não passou do limite agora ou no início do ano. Já havia passado quando o senhor se candidatou, tanto que um dos cinco dedos de sua mão espalmada na campanha de 1994, simbolizando as prioridades, representava a segurança.

De lá para cá, a situação nesse terreno só fez piorar. Como já não há mais tempo para que seu governo faça alguma coisa de realmente significativo em matéria de segurança pública, seria mais honesto se, em vez de dizer ?passou do limite?, o senhor dissesse: ?Fracassei?.

Na grande maioria das outras áreas, o seu governo pode ser definido com a surrada imagem do copo meio cheio, meio vazio. Na segurança, não. É um copo definitivamente cheio, mas cheio de veneno. É uma área em que as coisas estão hoje piores do que estavam em 1994.

O veneno é tão corrosivo que Constança Guimarães, assessora de imprensa do Sebrae-SP, escreve para contar que foi roubada (dinheiro e celular) ao sair para trabalhar ontem cedo no ex-tranquilo bairro da Aclimação. Pergunta se conseguirá ensinar à filha que ?a vida dela não passará dentro de portões e de carros?.

Pois é, presidente, no seu governo, em vez de reduzir a violência, como prometeu na campanha, o senhor, com inestimável ajuda dos governos estaduais, permitiu que a violência reduzisse o direito sagrado e constitucional de ir e vir dos brasileiros.

Pode haver mais redondo fracasso?"

 

"Onde está Elias Maluco?,", copyright Folha de S. Paulo, 14/06/02

"Na semana passada, ainda atônitos, nós nos perguntávamos onde estava Tim Lopes, repórter da TV Globo desaparecido desde o domingo, dia 2, quando subiu à Vila Cruzeiro, no subúrbio do Rio, para fazer uma reportagem sobre o uso dos bailes funk pelo narcotráfico.

No último domingo, com a prisão de dois traficantes do terceiro escalão, vieram a confirmação da morte do jornalista e os detalhes do seu assassinato depois de ter sido espancado, torturado, julgado, condenado, esquartejado e queimado.

Desde o dia 3, é do conhecimento geral que o assassino de Tim Lopes é, entre outros, Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, chefe do tráfico de vários morros do Rio, entre eles o complexo do Alemão, onde está a Vila Cruzeiro. Até ontem à noite, passados dez dias do crime, a polícia não tinha sido capaz de prendê-lo.

É certo que, mais dia, menos dia, vai conseguir, até porque o próprio chefe de polícia já disse que a prisão é uma questão de honra. Mas a demora é reveladora, mais do que da força do tráfico, da fragilidade da nossa polícia. Mesmo quando se esforça, ela tem dificuldades, porque seus recursos e métodos são poucos e obsoletos.

Com a morte do Tim, a polícia subiu o morro e encontrou um cemitério clandestino. Já foram desenterradas ossadas, arcadas dentárias e objetos pessoais que comprovam que o morro tem um dono, e não são seus moradores. O domínio do tráfico cresceu às claras, o que faz crer que recebeu alguma proteção por parte da banda podre da polícia. Agora, a mesma polícia trabalha observada e ameaçada de longe pelos traficantes.

O fracasso das políticas de segurança adotadas até agora no Rio e a fragilidade da polícia podem ser constatados no noticiário policial da semana. Centenas de favelas continuam ocupadas pelo tráfico, dezenas de Tim desapareceram anonimamente nas mãos dos comandos, o comércio de drogas e armas funciona normalmente. E nos sentimos todos, a cada dia, mais inseguros e acuados."

 

"O jornalista, o Estado de Direito e o assassino", copyright Jornal do Braisl, 11/06/02

"A confirmação da morte de Tim Lopes, repórter da Rede Globo, abre uma temporada de luto e de reflexão. Tim estava desaparecido desde o dia 2. Sumiu na Vila Cruzeiro, Penha, onde pretendia realizar uma reportagem sobre um baile funk no qual, suspeita-se, haveria consumo de drogas e espetáculos de sexo explícito com a participação de adolescentes. Tim usava câmeras ocultas em seus trabalhos. Fazia apurações sensacionais, mas estava longe disso que todos aprendemos infelizmente a conhecer como sensacionalismo. Participou da equipe que ganhou o Prêmio Esso Especial de Telejornalismo em 2001 por ter mostrado o comércio de drogas na Rocinha, que acontecia em espaços abertos sem o menor constrangimento. Fazia um trabalho de utilidade pública. Sua morte põe todos os jornalistas de luto, mesmo aqueles que não o conheciam pessoalmente, porque caiu no cumprimento do dever. Foi assassinado por traficantes contrariados. Tinha 51 anos. É um mártir.

Além do luto, está aberto o desafio da reflexão para os jornalistas. Essa reflexão diz respeito aos métodos aceitáveis na captação de informações e também às relações entre as atribuições do repórter e as atribuições da polícia. Tim Lopes encarnou uma espécie de fronteira entre esses dois territórios, o do jornalismo e o do policial, e se valia de expedientes às vezes mais adequados a uma investigação de delegacia que a uma reportagem clássica. A começar pelo emprego da câmera oculta. A rigor, a ética do profissional de imprensa exige que ele sempre se identifique como tal e que não adote dissimulações na apuração. Quem fala para uma reportagem tem o direito de saber que está falando para uma reportagem. Quem aparece numa gravação em vídeo que depois será exibida na TV tem o direito de saber do que é que está participando. A câmera oculta atropela esse direito das fontes. A câmera oculta tapeia as fontes e aqueles que são objeto da reportagem. Embora não constitua obrigatoriamente um crime como a violação de correspondência (art. 194 do Código Penal), é uma forma grave de invasão de privacidade. É análoga, em termos éticos, à escuta clandestina de ligações telefônicas (que também é crime). Ou seja: constitui um método que pode até ser empregado por espiões ou detetives (numa prática extremamente discutível, é verdade), mas nunca por um jornalista. A não ser…

A não ser em situações excepcionais. E quais são as situações excepcionais? Certamente não são aquelas em que só o que se pretende é fazer fofoca ou intriga de quinta categoria. São aquelas em que o acesso aos fatos, necessariamente de altíssima relevância pública, é impraticável caso o jornalista se apresente como jornalista. Essas situações excepcionais se apresentam quando os fatos investigados constituem crimes graves ou a premeditação de crimes graves contra cidadãos, contra o Estado de Direito ou simplesmente contra a ordem, ameaçando diretamente um grande número de pessoas. Venda de drogas à luz do dia e a céu aberto, por exemplo. Isso não pode ser fotografado por um repórter que, uma vez no local, anuncie placidamente seus propósitos. E, no entanto, isso é um fato de alta relevância, que o público tem o direito de conhecer. Por isso, o jornalista tem o dever de registrar, apurar, investigar e publicar. Ele precisa aparecer ali mais ou menos disfarçado. Não há outro modo de trabalhar."

"Aplausos no ?Jornal Nacional?", copyright Folha de S. Paulo, 16/06/02

"Na segunda-feira , o ?Jornal Nacional? dedicou sua edição à memória do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, assassinado por traficantes. Foi uma edição arriscada: por pouco, não virou um show lacrimoso. Sobretudo no final, quando William Bonner leu um texto em que fazia de conta que conversava com o morto. Fiquei paralisado de constrangimento: não vai dar certo, pensei. Palavra por palavra, no entanto, o texto foi me convencendo, como se falasse em meu nome. E, de certo modo, falava. Defendia, num tom acima do habitual, o jornalismo, a democracia e os direitos humanos. Parecem expressões vagas, mas são indispensáveis na afirmação de independência do jornalismo. Para mim, soaram como um compromisso autêntico.

Naquela noite, o ?Jornal Nacional? me pareceu naturalmente compungido, mas um pouco mais verdadeiro. Falou da falência do poder público. Falou do que todos estamos cansados de saber, vá lá, mas, finalmente, falou. Falou das zonas urbanas que são territórios conflagrados pelo banditismo, onde as autoridades não entram. Falou das favelas e dos pequenos bairros em que o tráfico é, ao mesmo tempo, o poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Não esqueçamos que, segundo informações da polícia, Tim Lopes foi preso, julgado sumariamente, condenado à morte e executado pelos traficantes, passando, portanto, por um processo tipicamente estatal. Isso nas palavras do jurista Miguel Reale Jr., atual ministro da Justiça. O próprio ministro admite que há um Estado paralelo instalado no Brasil.

É verdade que foi preciso que um ministro declarasse o caos para que o ?JN? se dignasse a mostrar o caos. É verdade, também, que outros telejornais já vinham insistindo no tema há tempos. A novidade, porém, é que agora essa dolorosa discussão atinge o âmago da esfera pública no Brasil. E com ênfase. É um avanço: somente assim, em horário nobre, o descalabro da segurança pública pode ser enfrentado.

O telejornal da Globo também demonstrou, e bem, que nem mesmo os correspondentes de guerra enfrentam tantos riscos de vida como os repórteres que investigam o tráfico na América Latina. Tim Lopes era um destes. Caminhando além do alcance e da proteção da polícia, só conseguia registrar a barbárie usando câmeras ocultas. A Globo se beneficiou enormemente desse recurso de alto risco, e até contribuiu para banalizá-lo. Sim, é um recurso condenável, mas, em situações extremas, em que a ausência do poder público é absoluta, pode ser inevitável. Sem ele, algumas excelentes reportagens de Tim Lopes, como a que mostra a venda drogas aos gritos nas ruas da Rocinha (matéria que lhe rendeu o Prêmio Esso em 2001), não teriam sido possíveis. A vulgarização da câmera oculta é, sem dúvida, um drama ético do telejornalismo no Brasil, mas o desgoverno que a tornou um equipamento necessário ao jornalismo investigativo é a nossa verdadeira tragédia. E o ?JN? expôs a ferida.

Por fim, Bonner avisou que, em vez dizer ?boa noite?, fecharia aquela edição com aplauso. E abriu os braços para começar a bater palmas. Eu gelei, pressentindo o patético. Mas não foi patético. Não era só o apresentador quem aplaudia. Atrás dele, ao fundo, a câmera buscou toda a equipe do programa. Todos, de preto, em pé, batiam palmas. Ao centro, a foto de Tim. Talvez tudo não tenha passado de mais um teatro melodramático da Globo, mas, vendo aquilo, na hora, enxerguei outra coisa: enxerguei jornalistas se levantando, dignos. E acreditei que aqueles profissionais faziam ali um juramento, acima de qualquer outro interesse, de encontrar e mostrar os responsáveis pela falência do Estado e pela impunidade. Naquela noite, naquela única noite, eu, que só vejo defeitos, bati palmas para o ?Jornal Nacional?. Palmas sinceras. Agora, enquanto escrevo, apenas torço para não me arrepender."