Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Collor, Lula e a bola fora do articulista

ECOS DE 1989

Mônica Bergamo (*)

Há várias formas de fazer mau jornalismo: editar um debate de forma a prejudicar um candidato à Presidência é uma delas. Colher a versão de uma única pessoa e publicá-la como verdade é outra.?

Na semana passada, no Observatório da Imprensa e na revista CartaCapital, Juca Kfouri publicou [remissão abaixo] como verdade a versão do jornalista Ronald Carvalho sobre a célebre edição do debate entre Collor e Lula exibida no Jornal Nacional no dia 15 de dezembro de 1989, na antevéspera do segundo turno da eleição presidencial.

Por essa versão, Ronald é o único responsável pela edição. Alberico Souza Cruz, que era seu chefe na TV Globo, nada tem a ver com o peixe. Segundo Kfouri, ele "estava na ponte aérea quando o debate foi editado!".

Kfouri conclui que eu publiquei uma "inverdade" na coluna que assino na Folha de S.Paulo ao escrever que Alberico "não consegue se livrar do fantasma de ter sido o responsável direto, em 89, pela famosa edição do debate entre Lula e Collor na TV Globo".

Há informações, além daquelas que Ronald lhe deu, que, não tenho a menor dúvida, Kfouri desconhece. Vamos a elas:

** Ronald já deu o mesmo depoimento para outros jornalistas. Nem todos, como Kfouri, se contentaram apenas com sua versão. Foram apurar os fatos.

** Uma dessas investigações jornalísticas foi feita por Fernando de Barros e Silva, hoje editor de política da Folha. Ele colheu as versões de 13 pessoas ? entre elas, as de Alberico, Ronald e João Roberto Marinho.

Em 11 de dezembro de 99, escreveu Barros e Silva na Folha:


"Ronald Carvalho foi um dos responsáveis diretos, mas não o único, nem o principal, por uma das edições mais controvertidas da história do Jornal Nacional. Alberico Souza Cruz, na época diretor de telejornais da emissora, superior hierárquico de Carvalho, participou diretamente da confecção da reportagem que foi ao ar, fato que nega até hoje".


** Participei dessa reportagem. Com Barros e Silva, entrevistei Alberico sobre o episódio.

** No livro Notícias do Planalto, o jornalista Mario Sérgio Conti também relata o que apurou sobre o debate. Conti entrevistou Roberto Marinho, João Roberto Marinho, Roberto Irineu Marinho, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Armando Nogueira e Francisco Vianey Pinheiro (chefe de jornalismo da Globo em São Paulo). E, também, Alberico. Diz Conti, na pág. 270:

"A responsabilidade pela edição foi de Alberico Souza Cruz e Ronald Carvalho (…)".

E, na pág. 328:


"Alberico Souza Cruz era o jornalista mais querido do presidente [Collor], que sabia de seu papel na edição do debate com Lula".


Collor foi fonte de Conti no livro.

** E o que repetiu Ronald a Kfouri? Que a primeira versão do debate foi ao ar na tarde do dia 15, no telejornal Hoje, da Globo. Alice Maria, diretora da Central Globo de Jornalismo, chamou Ronald, editor de política, e ordenou que ela fosse refeita para o Jornal Nacional. "Eu mesmo tratei de refazer a edição, porque sabia que era uma missão delicada e não quis expor ninguém." Nenhum de seus chefes ? Armando Nogueira, Alice Maria e Alberico ? quis ver a nova versão para o JN.

** O que conta Barros e Silva? Que Otávio Tostes, que operava as reportagens sobre política nas ilhas de edição da Globo, teria recebido "quatro orientações bem precisas, duas partidas de Ronald e duas de Alberico, todas as quatro para favorecer Collor". Isso tudo, repita-se, na ilha de edição, onde Alberico afirma não ter pisado. "(…) Alberico foi o último a assistir à edição, 15 minutos antes que a fita fosse ao ar." Tostes não contestou Barros e Silva.

** O que conta Conti em seu livro? Que Roberto Marinho não gostou da versão do debate do Hoje e ordenou a Alberico: "Faça a matéria correta".

Pouco antes de o JN ir ao ar, Vianey Pinheiro flagrou Otávio Tostes finalizando a nova edição. Ao perguntar a Tostes "o que você está fazendo?", ele ouviu como resposta: "O Ronald e o Alberico mandaram refazer tudo".

Marinho nunca contestou o livro de Conti. Nem Tostes. Nem Pinheiro. Só Ronald, que reclamou de não ter sido ouvido. Conti disse que se contentou com entrevistas anteriores de Ronald e que sua versão "não corresponde à verdade".

Que Alberico tenha amigos é natural, para quem ocupou cargos de chefia e por tanto tempo. Que haja quem goste de seu estilo, é também natural. Mas que, com base em um único depoimento, seja isentado de toda responsabilidade pela edição do debate, feita numa redação sob sua chefia, a dois dias da eleição… me parece um pouco demais.

(*) Repórter e colunista da Folha de S.Paulo

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