Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Crise continental e a imprensa local

AMÉRICA LATINA

Ivo Lucchesi (*)

Não é de todo desconhecida para a maioria letrada (e, menos ainda, o é para jornalistas) a frase de Rudyard Kipling (1865-1936): "Tenho seis criados honestos, que me ensinaram tudo o que sei: O Quê, Por Quê, Quando, Como, Onde e Quem". Qualquer profissional de comunicação sabe que os rudimentos da técnica jornalística elementar exigidos para a construção de uma notícia passam obrigatoriamente pelo lead, ou seja, um texto capaz de revelar os seis aspectos acima mencionados. É curioso perceber que Kipling classificou de "criados" os fornecedores de informação.

Kipling, que, como escritor inglês, foi o detentor do Prêmio Nobel de Literatura (1907) e, como jornalista, trabalhou, por longos anos, na Índia, não teve intenções maiores quanto a menosprezar os "ingredientes", tampouco as fontes, até porque ele próprio exercia a profissão. Por outro lado, é igualmente verdade que Kipling deixa claro quanto se faz imprescindível ao entendimento de uma notícia o cumprimento mínimo das seis proposições, sob pena de comprometer a clareza e a eficiência comunicativa do que se está a informar. Qualquer omissão de uma delas deixa a matéria jornalística enfraquecida ou descaracterizada, em relação ao papel que lhe cabe desempenhar.

A leitura sistemática de periódicos brasileiros revela claramente que as coberturas, principalmente no campo político, de modo sistemático, fingem ignorar o "Como" e o "Por Quê" e, por vezes, quando conveniente, também "Quem". Sobra, portanto, para o leitor comum, nada além da metade da informação, com o agravante de faltar a metade mais substancial. Ao segregarem-se as razões e os modos operacionais que envolvem dada situação, impede-se a compreensão da trama, para tão-somente ficar o registro de um fato, desvinculado de uma "cadeia lógica de significados". Isto é manipulação. Se os "criados" de Kipling assim com ele procedessem, o dono estaria permanentemente sendo alvo de uma atmosfera golpista e traiçoeira dentro de sua própria casa. Assim, portanto, pode sentir-se o "leitor brasileiro": um ser traído pela "criadagem midiática" de seu próprio país.

As ameaças no Continente Sul

Em artigos já publicados neste Observatório (em especial "O colapso pelas lentes do jornalismo" e "As limitações do jornalismo e da política" ? remissões abaixo), tenho feito pontuações críticas quanto ao procedimento acrítico assumido por grande parte da imprensa brasileira. Igualmente, não me tenho furtado em declinar sérias preocupações no tocante ao destino da América Latina e, em especial, a América do Sul que, notoriamente, se faz palco de sucessivos conflitos cujos desdobramentos e gravidade podem vir a tornar-se um "cenário de horror" sem precedentes na história de seus povos. Instala-se, passo a passo, o cinturão da miséria, parceiro da insurreição dos segregados, adquirindo contornos sistêmicos:

** levantes urbanos na Argentina, seguidos de crescentes estados de tensão psíquica nos diferentes segmentos da população, sem a mínima tentativa de um esforço externo, sob a forma de amparo econômico, no sentido de conter o fluxo dos dramas que lá se avolumam;

** focos de guerrilha na Colômbia, Bolívia e Peru;

** a rede de narcotráfico plantada e disseminada em diversas regiões do Brasil, afora conexões em rede com demais países sul-americanos;

** incremento da pirataria econômica (falsificação industrial) como base do sistema financeiro do Paraguai;

** proliferação de bolsões de excluídos e desempregados em todos os países do Continente;

** instabilidade política na Venezuela e Argentina;

** invasões de propriedade, entremeadas por práticas de violência da parte de proprietários e de violação da parte de errantes famílias marginalizadas;

** aumento progressivo de impostos sobre setores estratégicos da economia e segmentos populacionais assalariados, inibindo numa ponta a produção e, na outra, o consumo, além de deteriorar a massa salarial do país, o que, reunindo os três vetores, inviabiliza a própria fórmula do capitalismo e qualquer política de desenvolvimento da nação;

** crescimento da "economia informal", afetando, em cascata, a arrecadação pela União, o que acarreta crises crescentes na implementação de projetos sociais e no setor da previdência pública;

** fragilização dos sistemas educacionais, com a oferta de modelos cada vez mais empobrecedores, sob o ponto de vista da qualidade intelectual, de modo a contribuir para a brutalização cultural;

** constantes agressões ao ecossistema, gerando sérios problemas de caráter ambiental, o que repercute diretamente nas saúde precária de populações majoritárias;

** indícios de conflitos e de violência contra segmentos minoritários, envolvendo questões raciais e sexuais;

** aumento de diferenças entre ricos e pobres, fato verificável em todos os países do Continente, em razão da falta de programas governamentais, à altura de redefinirem as políticas tributária e fiscal;

** impossibilidade de, em meio a tantos impasses, dificuldades, disparidade de recursos e de problemas entre os países, promover-se, no Continente Sul, a homogeneidade monetária. A Europa, por conta de muito menos, adiou em quase uma década a fixação do euro. No caso do Continente Sul, o horizonte desse projeto está cada vez mais distante, para não classificá-lo de impossível;

** as principais riquezas patrimoniais de que alguns países dispunham já foram sucateadas em privatizações voltadas para repasse de pagamentos da dívida externa, sem nenhum benefício revertido para as respectivas populações, principalmente as carentes em tudo.

A imprensa provinciana

Os 15 temas arrolados (e poderiam ser mais) traduzem o quadro de um Continente à deriva e inteiramente ignorado pela sua própria imprensa cuja tarefa tem sido, aqui e ali, pontuar notícias desvinculadas de um olhar sistêmico, impedindo que o leitor médio tenha a possibilidade de realizar criticamente mínimo exercício crítico quanto àquilo que decisivamente diz respeito à sua vida. A mídia oficial insiste na "política do avestruz", omitindo do lead de seu noticiário o "Por Quê", o "Como" e, não raro, o "Quem". Sem tais elementos fundamentais à compreensão dos problemas que atravessam o mundo, o leitor médio se torna refém da consciência do outro, o que avilta o pressuposto básico da democracia.

Mesmo quando a mídia oficial faz o registro de questões locais, subtrai delas o enredamento do que as faz existirem, deixando no ar um provincianismo da fofoca com que a maioria das pessoas tem a ilusão de estar tematizando sua realidade. Isto também é manipulação contra o exercício da democracia no que ela tem de virtuosa. Provavelmente, estava correto o terceiro Presidente dos Estados Unidos e fundador do Partido Democrata, Thomas Jefferson (1743 ? 1826), ao afirmar: "Leio apenas um jornal, e assim mesmo mais pelos anúncios que pelo noticiário". Jefferson só não podia imaginar que, séculos após, sua sentença teria de ser realinhada aos acontecimentos dos novos tempos. Nesses, a oposição por ele fixada não parece fazer muito sentido, visto que, na maioria dos casos, o noticiário também foi convertido em "anúncios".

Em face das tramas históricas construídas pela ordem do capital, nas últimas décadas (vale dizer que não há nisso nenhum tom alusivo a "conspirações" e sim mera conseqüência na lógica processual do próprio capitalismo, algo já devidamente pensado por Marx, Weber e Hobsbawm), cada vez mais os acontecimentos perderam o caráter de ocorrência singular e localista. Tudo se dá em "rede" que, em seu livro Ética e poder na sociedade da informação (Ed. Unesp, 2000), Gilberto Dupas, inspirado em Manuel Castells, bem define como "um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma ou mais curvas ou fluxos se encontram"(pág. 42). Nessa trança de uma economia mundial globalizada, as demais expressões humanas e societárias (política, arte, pesquisa, etc) ? queiram ou não ? sofrem contaminações, interferências e limitações, o que ampliaria enormemente a responsabilidade dos profissionais atuantes no espaço público. Todavia, como outros setores, também o campo da comunicação "caiu" na "rede". É o que Gilberto Dupas explicita em trecho adiante:


"São redes os fluxos financeiros globais; a teia de relações políticas e institucionais que governa a União Européia; o tráfico de drogas que comanda pedaços de economia, sociedades e Estados no mundo inteiro; a rede global das novas mídias, que define a essência da expressão cultural e da opinião pública" . (op. cit., pág. 42)


Na linha de raciocínio de Dupas, menos ainda terá lugar e sentido a perpetuação de uma imprensa provinciana, a menos que o propósito seja mesmo o de focar situações de cunho macroestrutural em versões microespaciais, o que atende a interesses múltiplos e obscuros. Ainda há tempo para mudar rotas perigosas. Pelo menos que assim se faça em nome do abrandamento de um pesado fardo que ronda os destinos do Continente Sul. Afinal de contas, é onde nós estamos.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.

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I.L.