Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Crônica de uma morte anunciada

DOCUMENTÁRIOS

Antônio Brasil (*)

Assim como existe universidade para analfabetos também existe televisão para quem não sabe ler, escrever e pensar. Todos conhecemos bem os exemplos. Mas também existe um gênero de programas que proporciona qualidade para seus telespectadores, prestígio para os seus anunciantes e para os donos das redes de televisão, além de alcançar excelentes índices de audiência, premiações internacionais e até um certo número de boas críticas. São os programas de documentários para TV.

Sempre adorei esse tipo de filmes que insiste em privilegiar a "realidade" ainda mais do que a ficção. Mas, ao contrário de muitos, aprendi a gostar dos documentários ? o primeiro dos gêneros cinematográficos ? não no cinema, mas assistindo a televisão. Ainda na infância, clássicos como Expedições famosas e tantas outras ótimas séries descreviam lugares e culturas estranhas. Preenchiam a curiosidade de toda uma geração de jovens que sonhavam com um mundo um pouco maior do que o noticiário e o entretenimento da TV ou os limites impostos pela ditadura.

Os documentários sempre foram os meus programas favoritos na televisão. Mas nunca fiquei satisfeito em apenas assistir, pesquisar e comentar suas propostas em reuniões assíduas nos cineclubes. Queria aprender a produzi-los. E foi em busca da realização de um sonho que um dia, ainda estudante da PUC-RJ, realizador precoce com algumas participações irreverentes em festivais de cine-amador então promovidos pelo Jornal do Brasil ? e muita cara-de-pau ? me dispus a bater na porta da antiga TV Globo, no Jardim Botânico, e tentar a minha sorte. Queria trabalhar no melhor programa de documentários da época, o histórico Globo Shell.

Consegui o emprego, ou melhor dizendo, o estágio não-remunerado, mas a série, como tantas outras boas coisas na TV brasileira, não sobreviveria por muito tempo. Mal sabia eu que naquela mesma época, estava sendo lançado o mais longo, bem-sucedido e ousado capítulo da história dos documentários brasileiros. Apesar do clima de repressão e desconfiança, sem muito planejamento, de forma improvisada, como quase tudo em nosso país, estava sendo criada uma principais escolas de formação profissional e realização de documentários no Brasil. Março de 1973: era o início do Globo Repórter, um dos programas jornalísticos mais antigos da nossa TV. Para mim, era a reafirmação de uma paixão e o começo de uma grande aventura.

Temas óbvios

Tal como muitos estudantes de hoje, sonhava com a oportunidade de produzir o melhor do jornalismo para TV. Não me interessava nem me contentava com as matérias do dia-a-dia que preenchem os nossos telejornais. Sonhava com os grandes temas que encontram no documentário o seu mais importante meio e linguagem. Buscava um jornalismo mais investigativo, ousado, que aprofundasse temas políticos e sociais em tempos que, como hoje, limitavam as idéias e as transformações sempre tão urgentes.

Com uma origem nobre, os documentários possuem raizes diretas nos grandes nomes da história do gênero cinematográfico como Flaherty, Grierson, Vertov, Jean Rouch e tantos outros que venerávamos silenciosamente em sessões concorridas no MAM ou, ruidosamente, em debates políticos apaixonados. Naqueles mesmos tempos conturbados, além de tantas discussões sobre o cinema novo ou velho, dava-se início a um dos projetos mais ousados e criativos da televisão brasileira. O modelo original deveria ser o Sixty Minutes, da CBS ? programa que ainda hoje lidera a audiência na televisão americana. Mas a idéia original se transformou muito: o mais importante era a ousadia da proposta de combinar a sofisticação da linguagem e da tecnologia cinematográfica com o poder massivo da televisão aberta na realização de filmes sobre a nossa realidade. Era um projeto ambicioso que deu certo.

Mas que fim levaram esses documentários jornalísticos em nossa televisão? O que aconteceu com os herdeiros de nomes como Paulo Gil Soares, Eduardo Coutinho, Walter Lima Júnior, Mauricio Capovilla, Luís Carlos Maciel e tantos outros? Todos grandes profissionais da imagem, do som e do texto refinado que criaram alguns dos melhores documentários já produzidos em nosso país. E o mais incrível é terem conseguido este verdadeiro feito na Globo durante o pior período da ditadura.

Hoje vivemos um clima de ressurreição dos documentários. Só que, agora, restrito às televisões segmentadas como a GNT, a BBC, o Discovery Channel e o National Geographic. Muitos estudantes e apreciadores dos bons documentários não conseguem acreditar que um dia o Globo Repórter tenha sido um programa ousado e que, apesar do nome, não tinha nem repórter nem estilo ou formato definidos. Como dizia o seu criador, Paulo Gil Soares, "era um programa autoral" com diretores convidados que traziam na sua bagagem cinematográfica toda uma experiência de experimentação de linguagem e irreverência profissional para o mundo restrito e conservador do telejornalismo.

E aquele foi realmente um convívio subversivo, no bom sentido. Como todo bom documentário esta relação incomodava muita gente, inclusive os militares e censores de plantão. Mas para todos nós, jovens sonhadores e idealistas que acreditavam que, apesar de todas as restrições, era pela televisão que alcançaríamos o grande público e as grandes mudanças, o convívio como os novos cineastas era emocionante. Hoje, tudo isso soa pretensioso e utópico. Mas creio que muitos de nós nunca deixaram de acreditar no verdadeiro potencial da televisão no Brasil para fazer alguma coisa boa ? não somente para uma minoria, mas para muitos. Produzir qualidade na TV aberta sem o elitismo de uma boa programação voltada somente para o público pagante estimado e estagnado em meros 3,8 milhões de assinantes da "quase falida" (vide os problemas enfrentados com a holding Globopar) TV segmentada no Brasil. Produzir bons documentários para o grande público já foi mais do que um sonho, no Brasil.

Era isso que representava o Globo Repórter. Além de oferecer a oportunidade de conviver, mesmo de longe, com o ritmo cinematográfico da produção de uma televisão de qualidade eram realizados documentários sobre temas importantes. Para quem estava acostumado a produzir matérias de alguns minutos em poucas horas para os telejornais, ver como se lapidavam verdadeiras obras-primas durante semanas e que, ainda por cima, abordavam temas fortes, coerentes e perigosos era mais do que uma simples oportunidade ? era uma verdadeira escola de "cinema verdade" para TV. Pela primeira vez, os profissionais de telejornalismo estavam convivendo com uma nova realidade. Essa nova relação com o mundo do cinema influenciou durante muito tempo de forma positiva toda uma geração de jornalistas de TV. Era instigante ver como os "cineastas" lidavam com a maior intimidade com a película, a luz, o enquadramento e, principalmente, com os personagens. Nas mão de diretores como Eduardo Coutinho, eles falavam além das mínimas declarações "objetivas" e das distorções editoriais do famigerado "povo fala". Os jornalistas de TV ofereciam em troca a experiência voltada para a agilidade das notícias e a criatividade nas soluções imediatas. Era um casamento difícil e delicado mas muito produtivo.

O Globo Repórter viveu a sua melhor fase até 1983. Com as novas pressões para que o programa se tornasse "mais jornalístico" (ou seja lá o que isso significava), além das restrições às experimentações de linguagem, consideradas onerosas e até mesmo perigosas, o programa foi se descaracterizando, afastando-se da proposta original, até se tornar o que é hoje. Estabeleceu-se um novo modelo econômico e político para o país e para o programa. O projeto pioneiro do Globo Repórter sobreviveu à ditadura mas não sobreviveu ao peso da sua própria história de sucesso, criatividade e inovação. Foi aos poucos se tornando num programa cada vez mais "telejornalístico" e menos "cinematográfico". Passou a ser mais um programa com reportagens longas sobre temas óbvios e abandonou definitivamente a experimentação de novas linguagens audiovisuais. Os cineastas também se foram, alguns para carreiras de muito sucesso, longe da TV.

Discutidos e prestigiados

No modelo atual do Globo Repórter, a presença cada vez mais insistente e persistente dos repórteres aproximou o gênero do que há de pior no telejornalismo moderno. Os temas passaram a privilegiar, com raras exceções, a vida dos animais estranhos e o turismo em locais exóticos, em programas burocráticos e pouco criativos. Os temas sociais e as denúncias de um jornalismo mais investigativo e impessoal, características fundamentais do gênero documental, foram substituídos pela produção institucional tímida e bem comportada.

Em outros países, apesar das dificuldades os documentários para TV continuam a ser exibidos, discutidos e prestigiados. Recentemente a Universidade de Columbia apresentou um debate intitulado "Documentary Journalism: Uncovering the Why" (documentários jornalísticos: descobrindo o porquê). Produtores de dois dos mais importantes programas de documentários da TV americana ? Martin Smith da ABC News e Tom Yellin, do prestigioso Frontline da rede pública PBS ?, vieram ao encontro dos estudantes e pesquisadores do gênero para mostrar e discutir suas mais recentes produções sobre a guerra no Afeganistão. A televisão americana não parece ter medo nem desprezo pela academia. Em contrapartida, também não existe um preconceito estabelecido e irreconciliável por parte dos universitários contra tudo que as grandes redes produzam. Existe, sim, uma parceria que busca avaliações e soluções.

A principal discussão contemplava a necessidade ou não da presença constante das estrelas do telejornalismo ? como o âncora da ABC Peter Jennings ? num documentário para TV como garantia de audiência. O Frontline contrastava apostando no modelo tradicional do documentário impessoal e sempre produzido durante um período considerado longo para os novos tempos de orçamentos apertados. Ficou claro que mesmo neste segmento tão importante e tradicional do telejornalismo americano existe, cada vez mais, a preocupação com a audiência e os problemas judiciais provocados pelo jornalismo investigativo. Mas as soluções não são únicas, unânimes ou uniformes. Ainda subsiste a crença na discussão, na pesquisa e experimentação de novas fórmulas para os documentários jornalísticos para TV.

Interesses do lucro

O grande consenso, no entanto, foi de que todos os estudantes que se interessam por documentários deveriam se dedicar menos ao jornalismo que, segundo os produtores das redes, é fácil de fazer! O difícil mesmo é aprender a contar uma boa história. Ele deveriam, sim, dedicar-se mais às técnicas de narrativa dramática dentro dos documentários para TV. Uma verdadeira blasfêmia numa das principais escolas de jornalismo do mundo!

Hoje, o espaço reservado nas TVs abertas brasileiras à velha tradição dos documentários e suas diversas formas de narrativas dramáticas está restrito a poucos espaços ? como as mostras na heróica TV Cultura, de São Paulo. Por outro lado, o pequeno mas crescente espaço oferecido pelos canais segmentados ajuda a elitizar e pasteurizar ainda mais o gênero pioneiro do cinema. A maioria das novas séries (como o National Geographic e o Discovery) insiste no apelo fácil ao exótico e se afasta dos temas considerados demasiadamente sociais ou políticos ? ou seja, os temas delicados.

E pensar que já tivemos, no Brasil, grandes experiências temáticas e ousadias de linguagem como as séries primorosas produzidas por Nelson Hoineff (Documento Especial, para a Rede Manchete), as séries premiadas de Washington Novaes e mesmo alguns outros exemplos de jovens realizadores talentosos, como os irmãos João e Walter Moreira Salles. Todos eram projetos ambiciosos para o meio televisivo, pois voltados para o grande público.

Devemos sempre relembrar que os filmes documentários possuem uma longa tradição de questionamento, mobilização e conscientização política. Eles se tornam referência do passado para o presente. Mas ao contrário do cinema, a televisão não tem memória. Vive-se o momento e não se valorizam os arquivos e a reflexão crítica. Seria muito bom incentivar e facilitar o acesso dos jovens aos bons documentários que já foram produzidos pela nossa televisão.

O historiador dos filmes documentários Eric Barnouw, em artigo recente para Television Quarterly, alerta para a importância da preservação do gênero. Ele se caracteriza por uma "necessidade de subversão que tende a enfocar aqueles fatos nem sempre bem-vindos mas que podem vir a ser exatamente os fatos e idéias que a cultura mais precisa para sobreviver". Em épocas de universalização e padronização da informação e da verdade, voltadas somente para os interesses do lucro e do consumo, não chega a ser novidade anunciar a morte dos documentários na televisão de massa no Brasil. Pena! Eles talvez ajudassem nossos telespectadores a pensar mais criticamente o conteúdo não só dos nossos telejornais mas, principalmente os caminhos do país onde vivemos.

(*) Jornalista, coordenador do laboratório de televisão, professor de telejornalismo da UERJ e doutorando em Ciência da informação pelo IBICT / UFRJ.