FOLHA DE S.PAULO
Said Barbosa Dib (*)
A elaboração, a investigação ou a edição de uma notícia de forma dirigida, parcial ou preconcebida, para atender a determinados objetivos e interesses de repórteres e jornais, é algo já bastante estudado e debatido. Há mesmo quem afirme que, entre os grandes veículos, antes que uma falha individual de conduta ética por parte do repórter, isso é uma prática não só normal, mas imprescindível para o funcionamento de redações e editorias. Quem é da área sabe do que estou falando. É a velha e eficiente manipulação, o que os próprios profissionais da imprensa chamam de "plantar notícias", ou seja, determinadas informações não necessariamente verdadeiras, propositadamente publicadas para serem desmentidas depois ou, pelo menos, comentadas, quando o estrago já foi feito. A notícia "plantada" não segue a tramitação normal de apuração. É forjada na própria redação do órgão de imprensa, para provocar questionamentos que propiciem novas informações jornalísticas importantes. Uma espécie de catalisador noticioso.
A despeito da questão ética que uma coisa dessas implica ou da discussão sobre a influência do "quarto poder" na vida política e coisas do gênero (assuntos já analisados à exaustão), o que merece uma reflexão agora é quando, curiosa e comicamente, isso tudo é feito de uma forma desastrada e incompetente, como foi o caso da "entrevista" assinada pela jornalista da Folha Eliane Cantanhêde com o presidente em exercício do Senado, Edison Lobão (PFL- MA), no dia 22 de julho. Entrevista pobre, mal planejada, mal realizada, tendenciosa e que não soube aproveitar a importância, a disponibilidade, a boa vontade e a inteligência do entrevistado. Uma coisa é ser perigosamente mal-intencionado, outra, mais grave ainda, é ser um mal-intencionado incompetente.
A trapalhada, assassinando os conselhos da maioria dos principais manuais de redação e estilo e os cânones da boa imprensa, já se revelava no título capcioso e leviano da matéria, onde lemos a preciosidade em negrito: "Aliança no escuro". Escuro, por definição, já conota algo espúrio, ilegal, proibido, portanto, expressando juízo de valor por parte da entrevistadora, que não justifica as informações dadas pelo entrevistado ao longo do texto. Começar com um comentário ou interpretação incompatível com as declarações exatas do entrevistado e só identificar a fonte nos diálogos ao longo da entrevista é, no mínimo, mau jornalismo, pois o leitor que se limita a ler as primeiras linhas pode imaginar que é do entrevistado o que foi expresso na abertura.
Logo depois, temos o destaque em itálico, onde se lê: Presidente interino do Senado diz que nome de peemedebista ?agrada a todos?…" A jornalista não informa ainda que o "peemedebista" é Sarney, deixando isso apenas para depois. E continua o subtítulo: "… e que ?clima é de terror? na Casa", colocando a afirmativa de uma forma tal que faz crer ao leitor desatento que aquela proposição inteira, colocada maliciosamente de uma forma ininterrupta, com meias aspas intercaladas estrategicamente, seria uma representação integral, acabada e perfeita da opinião do senador maranhense. Percebam, também, que o título não informa em que contexto essas afirmações foram feitas pelo entrevistado, sonegando ao leitor a perfeita compreensão do fato.
Premissas e conclusões
Já na apresentação do entrevistado, ela dispara a seguinte preciosidade: "Com pouca visibilidade nacional, mas longa experiência política, o presidente interino do Senado, Edison Lobão, 64, não faz questão de esconder: se o senador Jader Barbalho não reassumir o cargo após a licença de 60 dias, o melhor substituto será José Sarney, que tem ?densidade e envergadura?". Percebam que a partir dos dois pontos é colocada uma afirmativa atribuída ao entrevistado mas sem estar entre aspas. As aspas só foram usadas nas três palavras finais. Depois de ler toda a entrevista, curiosamente, verificamos que o contexto em que a declaração do senador foi feita no diálogo não avalizava em absoluto a proposição forçada feita pela repórter, como qualquer pessoa pode constatar nos dois últimos diálogos, quando o nome Sarney não havia sido citado ainda em toda a entrevista, onde se lia literalmente:
Folha ? Se o Jader não voltar, o PFL vai disputar a vaga com o PMDB?
Lobão ? Não vai, não. Se ele não voltar, convoco nova eleição em cinco dias. A tradição é que o presidente seja do maior partido e, portanto, o cargo é do PMDB. Eu sou a favor da ordem, da tradição, senão sai tudo do eixo.
Folha ? O sr. fala isso porque o seu candidato é o ex-presidente José Sarney?
Lobão ? O presidente Sarney é um nome que agrada a todos, pela densidade, pela envergadura, mas não sou eu quem vou indicar o candidato do PMDB, hein? Olha lá, eu não vou repetir o erro do ACM (que era contra a eleição do Jader)…
Vejamos o que qualquer símio mais atento pode perceber: quando a jornalista perguntou pelo Sarney, fez isso induzindo a resposta por saber da natural fidelidade de Lobão com o amigo, tentando tirar a fórceps um fato político: "O senhor fala isso (apoio óbvio de Lobão a um candidato do PMDB, como reza a tradição no Congresso) porque o seu candidato é o ex-presidente Sarney?" Lobão não teve outra saída, e somente aí respondeu: "O presidente Sarney é um nome que agrada a todos, pela densidade, pela envergadura, mas não sou eu quem vou indicar…" Estas declarações, portanto, não foram declarações propriamente ditas, como o lead fazia crer, mas resposta à insistência da jornalista em comprometer o senador, com uma pauta que partia de um silogismo falacioso, simplista e desonesto com o leitor, para criar um fato noticioso, se promover, vender jornais e detonar a integridade de um político.
Premissa maior: todo político que estiver sentado na Presidência do Senado depois de ACM e Jader é, por definição, corrupto (contanto que venda jornais).
Premissa menor: Lobão é o presidente em exercício do Senado.
Conclusão: logo, Lobão é corrupto (mesmo que não tenhamos nada contra ele, vamos cair matando!).
Incompetência jornalística
Portanto, o que seria o diálogo que confirmaria a afirmação expressa no título da reportagem, somente foi feito quando a entrevista já estava no fim, num momento em que o entrevistado foi, sorrateiramente, pego de surpresa e, mesmo assim, em momento nenhum afirmou o que a repórter disse que ele afirmou. Isso é mais um discurso político do que o trabalho de quem tem a obrigação ético-profissional de informar os fatos aos leitores.
Depois de "Aliança no escuro", não satisfeita com tanta "criatividade", insensível à indução imposta a seus leitores e invertendo as coisas, aí, sim, "Lobão lança Sarney e teme ser bola da vez". A "criativa" repórter não teve a hombridade de avisar ao leitor que essa afirmativa feita com tanto destaque não existiu nos diálogos que o próprio jornal publicou.
Folha ? Depois de ACM e Jader, o sr. teme ser a bola da vez?
Lobão ? Deus me livre! O Jader falou isso há uns três dias, e eu nem durmo mais. Sabe que eu nem sentei na cadeira? Vou ficar no gabinete de vice, para ver se me esquecem." (Claro e educado recado à provocação inconveniente da repórter).
De duas, uma: ou a senhora Eliane é uma completa alienada sem "desconfiômetro", não percebendo o claro tom brincalhão do senador diante de uma pergunta tão agressiva, pois, se respondida positivamente, por definição, implicaria a situação ridícula de Lobão se incriminar, ou é mesmo, como tudo indica, uma jornalista sem a menor ética jornalística.
O comentário do entrevistado foi em resposta a uma indagação provocativa, quando o senador foi inquirido se não temia ser a "bola da vez". Algo totalmente diferente da proposição absoluta e fechada da chamada que dava a impressão ao leitor apressado a certeza irrevogável de que o senador Lobão tinha declarado aquilo espontaneamente, sem qualquer intervenção da criatividade noticiosa da jornalista num contexto específico.
Confesso que, para min, leitor assíduo e relativamente atento, chato mesmo, num primeiro momento aquilo soou como um fato, uma opinião de um eminente senador que ocupa um cargo importante para a República e que tinha algo a declarar à nação, não o comentário de um entrevistado que, provocado por perguntas obviamente estabelecidas a priori e com o intuito de "plantar" um fato noticioso, tivesse ainda a educação e a tolerância em responder à insistência de uma repórter aparentemente iniciante que, pelo nível apresentado, é quase uma estagiária .
Imaginemos então aquela grande parcela da população que quase sempre só tem tempo para ler as chamadas e as manchetes? Com certeza, todos eles viram aquilo como um fato. Isso tem nome e sobrenome: incompetência jornalística, manipulação, irresponsabilidade, má-fé ou qualquer adjetivação que se queira fazer para demonstrar a irritação contra uma entrevista que, no mínimo, coloca em dúvida todo um trabalho coletivo dos profissionais da Folha, um verdadeiro desrespeito àquela instituição, mas, principalmente, à inteligência e à cidadania dos leitores.
Armadilha e factóide
Ao ler finalmente a "entrevista" propriamente dita, sentimos que o senador, homem educado e atencioso com a mídia, com larga experiência tanto como jornalista como congressista, uma das 10 figuras mais importantes e influentes do Congresso, logo percebeu as limitações profissionais e as más intenções da entrevistadora. Mesmo agredido com perguntas desonestas e covardes teve a delicadeza de respondê-las todas.
Se realmente a jornalista tinha informações que comprometessem o político Lobão, que justificassem a indagação se ele seria a "bola da vez", por que não as revelou para a sociedade antes de ele se tornar presidente do Senado? Por que sonegou informações ao país? Que tipo de jornalismo é esse? Respondo: a falta de ética não é uma prerrogativa de alguns políticos, mas grassa também entre alguns representantes da mídia, maus profissionais que prejudicam a credibilidade dos jornais e dos colegas. Também porque esses maus jornalistas gostam mesmo é de políticos deseducados, agressivos e pedantes como ACM, não pessoas normais como Lobão. Valorizam aqueles que são arrogantes como eles. Não daquela arrogância de quem sabe das próprias forças e limites, mas a arrogância cínica e imprudente de meã sem relevo que coloca em risco a credibilidade da própria instituição em que trabalha.
O senador errou, portanto, quando, confiando na jornalista, levou a coisa na brincadeira e na ironia, pois não esperava que a entrevista fosse, na verdade, uma armadilha, um factóide preparado pela senhora Cantanhêde. Errou porque confiou na credibilidade de uma repórter menor. Provavelmente, tinha coisas mais importantes para se preocupar e outros jornalistas mais profissionais para atender.
(*) Professor de História, Brasília