Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Deonísio da Silva

FUTEBOL & LITERATURA

“As letras do maior esporte nacional”, copyright Jornal do Brasil, 25/5/02

“O futebol está para a literatura brasileira assim como o camelo para o Alcorão. Ninguém nega a importância de cada um dos temas nos respectivos domínios, mas se não encontramos o camelo em nenhuma das suratas (as divisões do Alcorão), também o futebol tem sido evitado por nossos poetas e prosadores. Isto é, até o presente quem se aventurou escreveu bem. Por escrever bem, entendamos mais o estilo do que o conteúdo, ainda que tal separação seja complicada, porque a forma influencia o conteúdo e vice-versa, mas escrever é fingir e no mentiroso admiramos mais o seu modo de narrar do que o narrado.

Vamos a uns poucos exemplos. Graciliano Ramos deu o pontapé inicial. Escreveu um texto lindo, triste e pessimista, prevendo que o futebol, como do cinema disseram os Irmãos Lumière, seria uma invenção sem futuro entre nós. O ofício de prever impõe alguns tributos aos profetas, sendo o mais devastador o erro puro e simples. Os fatos desmentiram nosso grande ficcionista. Décadas depois, Edilberto Coutinho arrebatou o prestigioso Prêmio Casa de Las Américas com Maracanã, adeus, em que futebol, jogadores e domínios conexos compõem os cenários dos contos. Ignácio de Loyola Brandão escreveu um premiado conto sobre o boxe, Pega ele, silêncio.Mas seu livro É gol somente saiu da gaveta para atender a um pedido especial.

Rubem Fonseca, em Feliz ano novo, o livro que a ditadura militar mais abominou porque foi obrigada a mostrar como funcionavam as proibições e a censura, apresenta-nos uma história de amor repleta de compaixão, intitulada ?Abril, no Rio, em 1970?. Zezinho namora Nely, que não é de jogar fora, mas sonha com a ascensão social pelo futebol: ”eu tinha que comer a bola no domingo, do Madureira para a seleção, bola com Zezinho, é goool! A multidão gritava dentro de minha cabeça”. No campo, derrota anunciada é combatida assim pelo personagem: ?vamos virar esse placar, pessoal, eu disse para os companheiros, botando a bola debaixo do braço e correndo para o meio do campo, pra dar a saída, igual o Didi na final da copa de sessenta e dois?. O vascaíno Rubem Fonseca enganou-se. gesto de Didi ocorrera na final da copa de 58, quando a Suécia fez 1 x 0 diante de atônitos brasileiros que então reagiram. Em 1998, a França fez três e ninguém reagiu, talvez porque não houvesse nenhum Didi em campo.

Carlos Drummond de Andrade dedicou vários poemas e crônicas ao futebol, provavelmente porque sua sensibilidade poética e perspicácia tenham sido fertilizadas pela atuação constante na imprensa. João Cabral de Melo Neto fez uma verdadeira ode a Ademir da Guia, enaltecendo justamente seu estilo. Também Affonso Romano de Sant?Anna escreveu vários poemas e crônicas sobre futebol e é autor de uma façanha até agora insuperável. Na Copa de 1986, terminada cada partida do Brasil, escolhia um lance e fazia sobre ele um poema às pressas, declamado no mesmo dia na televisão.

No romance, quem mais ousou foi o fluminense Ewelson Soares Pinto com A crônica do valente Parintins, em que as tramas passam pela Era Vargas, pela Segunda Guerra Mundial, mas os cenários mais fascinantes estão em peladas e jogos memoráveis. Contudo, entre esses poucos exemplos, que tiveram principalmente o mérito de evitar o alheamento a tema tão apaixonante, nenhum poeta, contista ou romancista deu ao futebol a transcendência que lhe conferiram os irmãos Mário Rodrigues e Nelson Rodrigues, embora seja mais conhecido o segundo, autor dessas frases memoráveis: ?qualquer técnico tem a torva e atra vaidade de uma prima-dona gagá, cheia de pelancas e varizes; quem ganha e perde as partidas é a alma; a arbitragem normal e honesta confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável?.

O Alcorão omite o camelo, mas inclui a vaca, as formigas, a aranha, o elefante, o cavalo. Os escritores brasileiros, em sua maioria, têm evitado o futebol. Tal lacuna não empobrece nossas letras, mas nos desconcerta e sugere certas sobrenaturalidades nessa falta. Será que o vôlei, o basquete, o beisebol, o tênis e o xadrez não oferecem as mesmas assimetrias para quem escreve? Talvez seja porque o esporte, à semelhança da guerra e do amor, seja tão grandioso que é simplesmente impossível aumentá-lo. Com efeito, autor vem do latim auctor, o que aumenta, faz crescer. Na Roma Antiga, antes de designar quem escrevia, indicou os generais conquistadores.”

 

BAO CHI, BAO CHI

“A aula e a lição de Luís Edgar de Andrade”, copyright Folha de S.Paulo, 24/3/02

“Não esperava que fosse para os meus dias. Sou de um tempo em que a literatura brasileira, tirante os nossos monstros sagrados, como Machado de Assis, Lima Barreto e os regionalistas dos anos 30 até Guimarães Rosa, era uma sucessão de coronéis, bezerros e vacas roubadas ou a serem roubadas, futricas de gado e terra, enfim, um cenário que poderia ser pastoral, mas era apenas chato e repetitivo.

Jamais poderia imaginar que um cearense que até hoje cultiva o sotaque de seus pagos poderia escrever um romance numa locação internacional tanto na geografia como na cronologia de uma época. Sim, trata-se de um jornalista, essencialmente um jornalista, mas leitor voraz do que de melhor sempre teve a literatura universal, de Tucidides a Wittgenstein.

??Bao Chi Bao Chi?, de Luís Edgar de Andrade, certamente não será o melhor romance de nosso tempo, mas é de longe o mais bem escrito, tão bem escrito que dá raiva naqueles que, como eu, insistem em continuar escrevendo. Poderão argumentar que o livro de Luís Edgar é uma reportagem romanceada -acusação feita a Hemingway, Orwell e Malraux- para ficar em autores recentes que escolheram a guerra como cenário.

Pode ser inclusive isso, uma reportagem bem romanceada, mas é, antes, um romance cujo pretexto é a reportagem, o cenário é uma guerra, mas a verdadeira ação é a própria condição humana que deu título à obra de Malraux, mas que ficou mais para o ensaio do que para o romance.

Não há bem nem mal em ??Bao Chi Bao Chi?. Os personagens se movimentam para fazer o que deles se espera, todos são inocentes e culpados ao mesmo tempo, não há mocinhos nem bandidos, mundo livre e mundo escravo, a guerra é a estupidez consentida -pior do que consentida, elaborada pela própria estupidez humana.

A sonoplastia da guerra limita-se a um som que somente os veteranos sabem identificar se é contrário ou favorável ao indivíduo que o escuta. O resto é um enigma, uma charada absurda levada a sério, em que os dramas verdadeiros, o drama pessoal de cada um, se inclinam como menores, irrelevantes diante da impessoalidade de um roteiro fabricado por circunstâncias que ninguém parece dominar.

Em nenhum momento Luís Edgard condena ou absolve a guerra. Mostra-a apenas, tal como é, do ponto de vista de um expectador que nem privilegiado é, pois é um marginal que deixa crescer a barba para não ser confundido com os soldados que estão mergulhados naquela aparente luta do bem contra o mal -como se isso fosse possível.

O correspondente de guerra Miguel Arruda, personagem principal do romance, nem se dá o direito de ter uma opinião. Vai atrás da guerra como o caçador improvisado vai atrás da raposa treinada e nunca a encontra, mas recolhe seus rastros cobertos de sangue, pólvora e ignorância.

De rastro em rastro, ergue-se o formidável painel de uma luta que hoje seria considerada assimétrica pelos entendidos, mas, como toda guerra, não passou de um momento da estupidez humana.

Apesar disso, não é o conteúdo do romance que merece destaque na estante mais nobre de nossa literatura. ??Bao Chi Bao Chi? é um show da arte de narrar, da linguagem viva, sem ângulos mortos, a linguagem insubstituível em que os substantivos abstratos (felicidade, alegria, incerteza, medo, lembrança, tristeza, distância, saudade) são abolidos truculentamente pelos substantivos concretos: botina, sangue, terra, garrafa, cerveja, fuzil, cadáver, carta, helicóptero, papel higiênico.

Da hábil mistura da concretude banal, usando o adjetivo como a gota de um veneno para temperar a realidade com sua carga mortal, Luís Edgar revela-se o autor da ação mais densa de nossa safra literária, dono de um diálogo que só encontramos igual nos grandes mestres da literatura universal.

O corte é abrupto como no cinema, a linguagem espremida ao bagaço. A ação propriamente dita nem é ação, é uma sucessão de pontos que formam uma linha que dá voltas em si mesma e resulta no romance em si, o homem e sua circunstância, a guerra sem circunstância alguma, sendo apenas a guerra, como todas as outras, ??c?est la guerre? -e basta.

O homem é complexo, a guerra é simples, suas regras são as mesmas, suas motivações nem importam porque a guerra é motivo de si mesma. O jovem repórter brasileiro está ali porque quer, sua missão, aparentemente, é relatar o que nem merece relato, e para quem? Para si mesmo, parece. Um encontro do homem com o homem dentro de um só e único homem -este talvez seja o ??enredo? do livro de Luís Edgar. O resto é decor, a guerra nem parece guerra, é preciso somar os pedaços, recolher os cacos de uma ou outra ação que acontece e às vezes não acontece, sendo que ambas são importantes -sem isso, a guerra não seria guerra.

O repórter que assiste àquela guerra tem um passado e pretende ter um futuro. Olha, pergunta, pesquisa, teme, procura saber das coisas, mas renuncia a entendê-las. Nem faz força para que nós entendamos o que seja uma guerra.

Um grande livro este ??Bao Chi Bao Chi?, uma aula de linguagem, uma lição de vida e de morte que merecemos aprender com humildade.”