AULA DO PROFESSOR KUCINSKI
Alberto Dines
No Brasil, mesmo no ambiente acadêmico (ou sobretudo neste) quando alguém ousa dar seqüência a uma proposição, o gesto é tomado como contestação. Não nos habituamos ainda à idéia do debate como contribuição, colaboração, interlocução e promoção de sínteses. Na verdade não nos acostumamos ao espírito da resenha ? review, uma das criações da cultura anglo-saxônica ? que consiste em acrescentar ao exposto, com toda a lisura e respeito, um subsídio (a favor ou contra).
Então ocorrem dois tipos de reação: a) o subsidiador, sabendo que o subsidiado irá tomá-lo como "adversário", assume previamente um tom agressivo para ganhar a parada; ou, b) desiste antes mesmo de contribuir porque não quer desgastar-se em embates que truncarão o sentido da iniciativa.
Uma das razões que justificam os comentários abaixo é que esta edição comemora diversas efemérides ? uma delas, os seis anos deste Observatório da Imprensa. Grande parte dos objetivos, reflexões, proposições e ideais embutidos neste projeto estão presentes, explícita ou implicitamente, nesta resenha de uma inspirada conferência. Melhor fazê-lo sob a forma de diálogo ? no sentido maiêutico, platônico e seguramente contínuo ? do que numa exposição linear e descontinuada.
Admirável o texto do professor Bernardo Kucinski publicado neste Observatório sobre ética jornalística [veja, abaixo, link para o texto "Nova ética para uma nova modernidade", de B.K.] Convocador e provocador na acepção mais nobre das palavras. Consistente, denso, articulado e, sobretudo, enriquecedor. Aula verdadeira em ambiente acadêmico e aula no sentido metafórico, rara combinação de sapiência e experiência. Não devo estender-me sobre apreços pessoais para não desviar a atenção de um texto com irrecusáveis apelos para complementações e desdobramentos.
Pressente-se já nas primeiras frases um evidente ceticismo ou ceticismos justapostos, aliás plenamente justificados (considerando "o estado da arte" do jornalismo entre nós). Ceticismo é manifestação sadia, superior, porque implica uma capacidade de analisar, julgar e escolher. Os questionamentos contidos nesta conferência convidam para detalhamento, seja no espírito dialético para chegar-se às últimas conseqüências, seja no modelo "jornalístico" para oferecer o outro lado da questão.
Entre as dúvidas arroladas percebe-se uma, no tocante à cultura anglo-saxônica e à ética jornalística por ela produzida. Não me sinto inconfortável como herdeiro da ética do poeta, político e publicista inglês John Milton, autor da Aeropagitica (1644), primeiro documento explícito em favor da liberdade de expressão na história da cultura universal.
Também não me sinto vexado em descobrir que o nosso Hipólito da Costa ? fruto da cultura e do jornalismo anglo-saxão ? traduziu o documento numa das primeiras edições do Correio Braziliense (que nosso Observatório está re-editando em parceria com empresas e entidades interessadas em resgatar este patrimônio).
Quando na França havia apenas um jornal submetido à Coroa e nenhuma liberdade para imprimir, a Inglaterra já discutia e consagrava o direito inalienável de expressar e divulgar opiniões.
O jornalismo gaulês foi admirável na sua capacidade de combate, na produção de panfletos decisivos para a mobilização contra o absolutismo (antes, durante e depois da Revolução de 1789). Mas não se deve esquecer que as idéias de liberdade de expressão foram incorporadas à Declaração Universal dos Direitos dos Homens 143 anos depois de Milton, sendo que a Constituição dos EUA e a Primeira Emenda também são anteriores ao documento revolucionário.
Não se trata de premiar uma ou outra cultura ético-jornalística no pedaço de mundo que se convencionou chamar de Ocidente. Elas se encaixam e complementam ? devemos incorporar todas, inclusive a Ética de Bento Spinoza, o judeu-português-holandês sobre a qual me estenderei adiante.
Importante registrar que devemos aos franceses inúmeras inovações técnicas, econômicas e sociais que em meados do século 19 tornaram os diários acessíveis e legíveis para as massas. O nome da rubrica onde estamos sendo lidos inspira-se no modelar Journal des Debats, lançado naquela época.
A mais importante e celebrada manchete da história do jornalismo mundial, protesto contra a intolerância e a injustiça, o J?Accuse, foi produzida por Clemanceau com texto de Zola. Não há dados precisos, mas investiguei que a própria palavra "jornalismo" seria de origem francesa.
Em compensação, o anglo-saxonismo foi crucial na história do media criticism e nesta questão é imperioso considerar que a cultura alemã é parte indissolúvel da cultura anglo-saxônica (e não apenas no aspecto filológico). Em meados do século 19, o alemão Freytag escrevia uma peça na qual estraçalhava o protagonista, ancestral coleguinha. Para qualificá-lo usou uma palavra ? schmock ? que é hoje usada no jargão novaiorquino americano.
No fim daquele século, temos na Inglaterra o inglês Chesterton fazendo o seu jornal individual de crítica da mídia já que a grande imprensa não o queria em suas páginas. Na mesma época, em Viena, surgiu o primeiro media critic profissional, full time, Karl Kraus, que, nas páginas do jornal que escrevia sozinho, satirizou durante duas décadas a grande imprensa austríaca. Nele inspirado, o dramaturgo Artur Schnitzler escreveu também uma sutil comédia sobre o ambiente na redação de um grande jornal vienense na primeira década do século 20.
Imperdoável esquecer o americano I.F. Stone com a sua newsletter (também produzida solitariamente), baluarte liberal, progressista e pacifista nos EUA durante as décadas 60 e 70.
O fato de que a mundialização (ou globalização) e o neoliberalismo (ou a hegemonia dos mercados) terem sido incubados nos ? e beneficiado os ? EUA não significa que devamos desconsiderar os aportes deontológicos anglo-saxônicos em matéria de jornalismo. Se insuficientes, deve-se enriquecê-los; menosprezá-los seria desperdício. Esta mesma noção de intercâmbio e interlocução levou a direção do seriíssimo e francesíssimo Le Monde a inserir uma vez por semana uma seção com artigos do The New York Times.
Se o patronato midiático brasileiro faz uma leitura simplificada ou distorcida da ética jornalística anglo-saxônica isto tem a ver com a fonte de suas informações ? os jornais e revistas que lêem no dia-a-dia. Em outras palavras, os seus próprios veículos. E quem os redige são jornalistas ou alguns poucos acadêmicos (entre os quais infelizmente não se encontra o professor Kucinski) geralmente inapetentes para produzir matéria referencial ou reflexiva para os tais formadores de opinião.
Deste bumerangue auto-alimentado, viciado, vicioso e deformador não escapam os próprios jornalistas que recusam uma abertura através da leitura alternativa de periódicos em espanhol, italiano, francês, inglês ou até mesmo em português de Portugal. Não incluo neste exercício, por irrealista, a sugestão de, ao menos, folhear o Stern alemão, o melhor semanáaacute;rio de interesse geral, para avaliar pelas fotos o escopo de uma publicação preocupada com a vida e com o mundo.
Da constatação, algumas perguntas: quem produz a pós-modernidade apropriadamente criticada pelo professor e enche as páginas de nossos suplementos de variedades fazendo do país um caudatário das manias e febres mais idiotas que se produzem no chamado primeiro mundo? Os empresários, os altos executivos ou as redações ?
Quem subverte a cultura transformando-a em show bizz ? Roger Martin Du Gard não pode mandar um champã ao jornalista que produziu uma matéria sobre o relançamento de seu Os Thibault: morreu há cerca de 60 anos, a editora já remeteu uma caixinha com os cinco volumes que, no máximo, ficarão fechados para todo e sempre (senão vendidos num sebo). Mas um "produtor cultural" terá muito prazer em mandar um prosecco ao feliz colunista que badalou seu novo CD de hip-hop.
Neste tipo de controvérsia que busca encontros, denominadores comuns e pontos de convergência, sabe-se que discutir futebol ou política partidária pode ser deletério. Inescapável, no entanto, encarar algumas questões ideológicas levantadas na aula-magna dentro da ótica ideológica.
O sistema midiático é um conceito francês e, porque é um sistema, integra todos os parceiros e procedimentos nele envolvidos. Inclusive os jornalistas, inclusive as entidades corporativas dos jornalistas. A veemente, justa e necessária crítica do professor Kucinski ao poder das assessorias de comunicação não pode ignorar que a entidade máxima dos jornalistas ? a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) ? jamais tomou alguma iniciativa para, pelo menos, discutir este poder potencialmente corruptor. Não poderia por diversas razões, sobretudo porque a Fenaj hoje tem mais jornalistas-assessores do que jornalistas-jornalistas.
É preciso encarar uma premissa ? estas distorções corporativas no meio profissional não resultam da "degradação neoliberal". Ao contrário, sustentam-se num "embate ideológico" que ? mesmo longe das eleições ? está empurrando o jornalismo brasileiro para uma situação de inidoneidade.
A contundente crítica à formação profissional também não pode ignorar que à mesma entidade cabe engajar-se na melhoria do ensino de jornalismo. O professor Kucinski em diversas ocasiões manifestou-me seu repúdio ao "Provão". Tem razões ponderáveis. Sou a favor desta avaliação desde que a qualificação seja complementada por severas medidas contra as instituições comprovadamente deficientes. Mas a entidade máxima dos jornalistas não discute este assunto ? já foi a favor do "Provão", depois foi contra e, agora, extenuada, omite-se porque não pode confrontar o seu próprio "mercado": os milhares de jovens que saem todos os anos das fábricas de diplomas e, logo, estarão pagando suas mensalidades aos sindicatos e à Federação.
Agora que há uma nova diretoria na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) não deveriam os seus sócios, como também os jornalistas em geral, mobilizar-se para convertê-la numa espécie de Ordem nos moldes da OAB ? Uma prova de habilitação como a que são submetidos os bacharéis tornaria desnecessário o "Provão" e todo o resto. E daria um mínimo de credibilidade ao diploma.
Medidas concretas e factíveis não interessam a ninguém. Interessa, sim, a manutenção do status quo e o niilismo dele resultante. A reflexão solitária do professor Kucinski sinaliza ? pelo menos para este Observador ? que há setores empenhados em manter a pasmaceira acrítica e amoral. Para não tirá-los do conforto acrítico e amoral.
Desconsiderar ou minimizar os focos irradiadores de inconformismo e senso crítico ? o Observatório é um deles ? convém aos "revolucionários" para justificar a tábula rasa. Enquanto ela não se dá e como ela não se dará nunca, locupletam-se todos. Ou quase todos.
O que nos leva a um dos trechos mais perturbadores do documento em questão, quando afirma que "sucesso pessoal é valor central na ética neoliberal".
Nestes quase 50 anos de profissão este Observador coletou exemplos surpreendentes de carreirismo, desrespeito profissional e desprezo pelo fator humano: barbaridades em matéria de egoísmo, vedetismo, vendetismo, venalidade, subserviência, degradação íntima, cinismo e ? atenção! ? perversidade. No entanto, não se consegue uma clivagem ideológica destas imoralidades. E quem o fizer encontrará porções iguais de neoliberais, velhos liberais e "progressistas".
Esquecer, ainda que involuntariamente, o jogo sujo (nas redações) praticado por stalinistas ou trotskistas (inclusive uns contra os outros), ou entre as igrejinhas que se agarram ao poder e comandam os veículos durante décadas, só pode estimular novos embates nos quais, a pretexto dos magníficos fins, pratica-se um vale-tudo rasteiro e aberrante.
Basta ver a ascensão espetacular de alguns lideres radicais da malfadada greve dos jornalistas de 1979, em São Paulo ? que fraturou a organização dos jornalistas, jogou na marginalidade um monte de gente e iniciou a degradação do jornalismo ? para entender-se que a condição humana independe do button político da lapela.
Extremamente doloroso verificar ? como aponta o professor Kucinski ? que profissionais relativamente jovens e experientes mostrem-se desconsolados e desesperançados diante da falência ético-jornalística em grandes empresas e veículos. Resignam-se e compactuam. Mas gozam ? como na velha piada sobre bacanais. O problema não está na ética como opção filosófica e pessoal nem na descrença de códigos deontológicos para regrar procedimentos e posturas do oficio.
O problema está na prática generalizada da Ética Sem Dor, espécie de wishfull thinking de uso meramente especulativo, adotada em certos nichos da burguesia ? como paliativo, disfarce ou conveniência. Aqui entra, conforme o prometido, Baruch, Bento ou Benedito Spinoza. Ele não a designou desta maneira abreviada ? o Observador assume a responsabilidade pela simplificação ?, mas a opção existencial e o saldo do tratado deste primeiro filósofo moderno na longínqua Amsterdã de meados do século 18 combinam-se para fortalecer a noção de que Ética Dói. Dói muito.
Abdicar, abrir mão, assumir enfrentamentos, viver com um mínimo de coerência é penoso. Dizer "não" ou "assim é demais" é ameaçador. Complicado denunciar manipulações ideológicas e resignar-se aos erros que "os nossos" cometem. A solução é capitular através da Ética Sem Dor. Não incomoda ? na noite insone ou diante do espelho.
A Ética é necessariamente dolorida e dolorosa. Implica um estado de auto-exigência permanente, alerta ininterrupto, cria um chatíssimo mecanismo de cobrança interna, configura uma marginalidade espiritual, às vezes até solidão física, gratificantes lá na frente mas onerosos aqui e agora. Ética prefigura, antes de tudo, a capacidade para manter um senso trágico ou do trágico, percepção da colisão eminente e imanente.
Neste ponto, tenho a certeza, o aluno que subscreve e o professor que ensina têm identidade total.
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? Bernardo Kucinski