Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dos inanes aos vulneráveis (*)

Almyr Gajardoni

A

redação de Veja desconfiou que estava na hora de fazer uma capa sobre as eleições e zás – num arroubo de criatividade lá colocou os publicitários Nizan Guanaes e Duda Mendonça, apresentados como “as estrelas dos bastidores“. A “Carta ao leitor” explica as intenções do projeto: “Trabalhados cada vez mais pelo marketing, posicionando-se sobre as questões nacionais a partir das aspirações do eleitorado captadas em pesquisas de opinião, não estariam os políticos perdendo boa parte de sua substância? Esse é um dos assuntos que a reportagem sobre os marketeiros procura discutir.”

Estaria Veja perdendo sua substância?

Nessa “discussão”, que ocupa oito preciosas páginas da revista, encontram-se as seguintes frases, entre muitas outras de igual quilate:

1— Marketeiros não têm coelhos na cartola.

2Nos Estados Unidos, meca da mercadologia política, chegou-se ao requinte de eleger e reeleger um ator para a Casa Branca. Ronald Reagan era meticulosamente mantido a distância dos jornalistas por seu guru, Michael Deaver, para evitar que dissesse uma bobagem.

3No Brasil, com seu marketing ainda incipiente, elegeu-se Fernando Collor. Sua propaganda em 1989 foi um espanto.

4Esses exemplos parecem indicar que o marketing falsifica candidatos, ou os cria num laboratório. Não é assim.

5A verdade é que os marketeiros não apenas realçam. Eles também inventam qualidades que o sujeito não tem, mas não as qualidades essenciais.

6Nas suas peças publicitárias, Britto (Antônio Britto, candidato do PMDB à reeleição no Rio Grande do Sul) aparece em casa, abrindo a geladeira para pegar um copo de água, mostrando que, no fundo, é um sujeito como outro qualquer, como o eleitor que está assistindo ao programa. Há um ano, Britto estava 14 pontos atrás de seu rival, o petista Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre. Agora está 11 pontos à frente.

7Toni Cotrim, marketeiro de Lula, fez as bandeiras do PT, em vez de vermelhas, ficar brancas. Num dos programas, FHC disse que quando não chove no dia de São José no Nordeste é sinal de seca braba. O branco de Lula ou o santo de FHC não mudam a essência de nada, são truques para parecer agradável.

8O primeiro brasileiro que usou essa mina de ouro foi Getúlio Vargas, que lidava com maestria com o rádio e criou a imagem de “pai dos pobres”.

9 quase quarenta anos, Jânio Quadros elegeu-se presidente pedindo votos com os cabelos cuidadosamente desgrenhados, caspas nos ombros, sanduíche de mortadela na mão e um bom mote musical: Varre, varre vassourinha, num ataque à corrupção. Que idéias, que debate, que virtuosas propostas tinha Jânio?

10O marketing eleitoral não é bom nem mau.

11O estadista, o grande político, muitas vezes é aquele que rompe esse círculo vicioso, aponta saídas insuspeitadas e tem a coragem de adotar medidas impopulares quando elas são necessárias.

A História às vezes é diferente da lenda

Pequenas observações sobre algumas dessas frases – as outras com certeza dispensam comentários.

2— Ronald Reagan chegou à Casa Branca prometendo reduzir impostos, uma medida muito atraente para o eleitor americano. Reduziu-os e colocou a economia do país na rota do desenvolvimento, com frutos abundantes que estão sendo colhidos ainda hoje. Na política externa, entendeu-se com Gorbachev e pôs fim oficialmente à Guerra Fria. Com esses troféus poderia dizer quantas bobagens quisesse sem correr o risco de perder a reeleição e até candidatar-se à condição de estadista, tal como definido na frase número 11. O falecido Paulo Francis acreditava que Reagan passará à história como um dos maiores presidentes dos Estados Unidos.

6— Devemos esperar, com fé, que os gaúchos, se tiverem que reeleger o colega Antônio Britto, façam-no por motivos que não sejam apenas a naturalidade com que empunha um copo de água.

8—Os políticos da época reclamavam que Getúlio era um túmulo, sempre formal e circunspecto, falava pouquíssimo, jamais abria seu pensamento com quem quer que fosse. Político formado na melhor tradição da engomada República Velha, jamais usou truques do tipo dos apresentados na matéria da revista. Conquistou com méritos o título de “pai dos pobres” patrocinando uma legislação que garantiu aos trabalhadores aposentadoria, serviço médico, jornada de trabalho de tamanho civilizado, férias, direito à sindicalização, estabilidade no emprego depois de 10 anos de atividade na empresa. Numa época em que essas questões sociais eram tratadas pela Secretaria da Segurança e não pelo Ministério do Trabalho – que, por sinal, foi criado em seu governo. Convém não esquecer que o título de estadista foi-lhe reconhecido, 10 anos depois de sua morte, por ninguém menos que Afonso Arinos de Mello Franco, o comandante da implacável bancada udenista responsável pela campanha que levou o presidente ao suicídio, em 1954.

9— Quando se elegeu presidente, há quase 40 anos, Jânio Quadros já não usava caspas nem capote e detestava sanduíches. Esses recursos foram utilizados para conquistar a prefeitura de São Paulo, em 1953. O caminho para a presidência foi aberto em quatro anos de governo no Estado, quando promoveu uma severa arrumação das finanças públicas (tal como fez agora Mário Covas, correligionário de Jânio na juventude), pôs o funcionalismo público a trabalhar e empreendeu uma gigantesca obra de asfaltamento das rodovias paulistas no momento em que a recém-instalada indústria automobilística começava a conquistar os brasileiros com seus automóveis e caminhões. Sem jamais dispensar a carranca enfurecida, que agora os marketeiros consideram o primeiro passo para a derrota.

10— Se o marketing eleitoral não é bom nem mau, então deve ser inútil e bem faria o venerando governador Miguel Arraes se livrasse sua biografia sertaneja do esforço fora de hora para sorrir e parecer jovial.

A penosa necessidade de pensar

Em carta escrita para o The New York Times, em outubro de 1984, o economista John Kenneth Galbraith queixava-se de que a mídia, na cobertura da campanha eleitoral, concentrava-se nas táticas e estratégias, deixando de lado os temas sérios e importantes que os candidatos deviam estar debatendo. Estando o Brasil na gravíssima situação em que se encontra, às vésperas de uma eleição decisiva, parece inacreditável que a mais importante revista tenha preferido borboletear sobre o marketing, em vez de perguntar claramente aos candidatos que planos preparam para nos livrar dessas aflições, depois da vitória. Principalmente a Fernando Henrique, que é o favorito, e estava bem à mão, tomando champanha na festa dos 30 anos de Veja. Galbraith fustigou severamente essa preferência, no seu estilo elegante e refinado: “Não creio que os motivos desta ênfase (ou ênfase equivocada) sejam muito dúbios. Pois comparada com uma análise séria dos temas políticos, esta abordagem é tremendamente econômica em termos de esforço intelectual. Noticiar uma campanha presidencial já é em si um trabalho árduo; quanto mais ainda se fosse preciso usar a inteligência.”

(*) Foi o título dado por Galbraith à carta escrita ao The New York Times e nunca enviada.