Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

E se fosse o doutor Roberto?

NOTÍCIA DE SEQÜESTRO

Paulo José Cunha (*)

Todo seqüestrador é exibicionista. A própria natureza de seu crime, centrado em figuras públicas, desvela o caráter de sua ocupação. Diferentemente de outros criminosos, o seqüestrador sabe que está lidando com figuras de elevada popularidade. E as seqüestram não apenas pelos seus vultosos recursos financeiros, mas, também, pela atenção que, a partir do seqüestro, vítima e autor passarão a receber da mídia. Seqüestrado e seqüestrador, durante o período de duração do seqüestro, tornam-se alvo da mesma curiosidade porque o seqüestro não é um crime instantâneo mas, sim, um crime-seqüência, um enredo. Bandido e vítima, a partir do momento do seqüestro, começam a cumprir o roteiro de um thriller de ação, tornam-se estrelas e, nesta condição, atraem a atenção da imprensa. Tal como o seqüestrado, também o seqüestrador conquista ali seu momento de celebridade, uma espécie de plus além do dinheiro do resgate.

No instante em que o seqüestro, por decisão editorial, deixa de freqüentar o noticiário, o seqüestrador repentinamente vê-se limitado à negociação financeira. Já não conta mais com o foco midiático de atenção. Em razão disso, o seqüestro se "profissionaliza", a negociação se encaminha para um desfecho mais burocrático, administrativo, objetivo, livre do ofuscamento provocado pelos spots, a ansiedade da opinião pública, o sadismo dos alpinistas da audiência. Elevam-se as chances de um desfecho favorável.

Diante de tal quadro, custa muito acreditar na convicção das Organizações Globo quando decidem continuar noticiando os crimes de seqüestro e, o que é pior, servindo-se deles para, sensacionalisticamente, alavancar vendagem de revista. Foi o que aconteceu com a Época que, a pretexto de denunciar o aumento do número de seqüestros em São Paulo, exibiu em sua capa uma foto do publicitário Washington Olivetto, abordado há um mês por seqüestradores. As explicações das Organizações Globo para justificar a divulgação dos casos de seqüestro são as de que o conhecimento público do fato contribui para um bom desfecho e sua tranqüila elucidação.

É argumento discutível, quando se lembra que a própria Rede Globo foi condenada em primeira instância por divulgar o sobrenome famoso de um menino seqüestrado e, por essa razão, a vítima terminou sendo alvo de tortura pelos seus algozes. Mas, mesmo admitindo-se a validade do argumento: e agora, a quem serve a exibição pública de um seqüestrado cujo seqüestro se encontra em andamento? A capa da Época com o retrato de Olivetto vai ajudar a quem?

Por ocasião do seqüestro da filha de Silvio Santos, quando mais uma vez o debate sobre a conveniência da divulgação de seqüestros voltou à cena, sustentei, como vários outros analistas igualmente o fizeram, a necessidade de se mirar, nesses casos, menos o faturamento e refletir mais sobre o valor da vida humana.

W/Brasil deixa Época

A arrogância nunca foi boa conselheira. As Organizações Globo, desde que a Rede Globo assumiu a cabeceira da audiência, comportam-se com olímpica superioridade e auto-suficiência em relação às críticas. Alguém aí se lembra da última vez em que a TV Globo se corrigiu de alguma falha? Que razão permite à maior rede de televisão da América Latina não contar sequer com a figura de um ombudsman para monitorar sua atuação e lhe lembrar do compromisso ao qual legal e juridicamente se sujeita na qualidade de concessão pública?

Nesta arrogância reside a resistência em mudar a atitude em relação aos seqüestros e concluir que o silêncio retira do crime um dos seus componentes essenciais ? a espetacularização, arma com que conta o seqüestrador, porque só ela é capaz de potencializar o ato e justificar a exorbitância do resgate. E não cola a justificativa de que a divulgação mobiliza a opinião pública para o fornecimento de informações que conduzam ao cativeiro ou à identificação dos autores. Está provado que o custo-benefício da divulgação é baixo, muito baixo. Além do mais, a tendência mundial tem sido a de deixar a cargo da polícia ? e não dos veículos de comunicação – a decisão de divulgar ou não os seqüestros. Instituição alguma tem mais dados para considerar a relevância ou não da divulgação para um desfecho favorável do que a polícia. No Brasil não é diferente, apesar das falhas e do desaparelhamento da instituição policial.

Costumo dizer a meus alunos que existem momentos em que a imprensa tem a obrigação de omitir certas informações, se quer ser respeitada como serviço público. Nada justifica ? nem mesmo o sagrado direito à informação ? que esta mesma informação coloque em risco a vida humana. Entre a informação e a vida humana, não duvido em afirmar que se dane a informação, desde que se resguarde o direito maior.

Parece, portanto, bastante coerente a posição adotada pela W/Brasil em abrir mão da conta da Editora Globo, responsável pela revista Época, a quem prestava assessoria publicitária desde janeiro do ano passado. Se o seqüestrado fosse o doutor Roberto Marinho e a W/Brasil mandasse fazer um outdoor a pretexto de combater o crime de seqüestro usando a foto dele, as Organizações Globo teriam toda a razão de cortar relações com a W/Brasil. Se a arrogância permitir que a questão seja vista deste ângulo talvez a atitude quanto aos casos futuros seja diferente. E para melhor.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>

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