Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Eduardo Ribeiro

COBERTURA EM POOL

“Pool reacende questão dos direitos autorais”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 14/08/02

“As Organizações Globo decidiram formar em algumas capitais – São Paulo e Brasília, com certeza – um pool voltado para a cobertura das eleições presidenciais e para governadores, que funcionará até o final do segundo turno. Esse pool é integrado por colegas dos diferentes veículos da casa, os quais, nesse período, ficam sob a coordenação de um único profissional de um dos veículos que integram o pool.

Em tese, uma fórmula inteligente de racionalizar a cobertura, aproveitar melhor o trabalho dos profissionais e potencializar o uso nos diferentes veículos da casa. Em tese, porque na prática a medida já gerou um grande mal estar entre a Globo e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, por exemplo, que não aceita o projeto e está buscando de todas as formas desestimular esse tipo de prática, sob o justo argumento de que as pessoas terão de trabalhar mais, o fruto de seu trabalho será aproveitado por diversos veículos, e os profissionais, em si, não receberão um tostão a mais por isso.

É comum a criação desses núcleos especiais para a cobertura dos grandes acontecimentos, como eleições, Copa do Mundo, Olimpíadas etc., mas dentro de um mesmo veículo, seja ele jornal, rádio, tevê ou revista. Já o pool multimídia é atipíco e cria efetivamente um relacionamento conflituoso e de muito descontentamento entre as partes, pois não oferece ganhos extras aos profissionais e diminui oportunidades de trabalho – sobretudo numa situação de mercado como a que vivemos. Além de gerar uma outra polêmica que é a dos direitos autorais.

Everaldo Gouveia, repórter de Política do Diário de S. Paulo, pôs o dedo na ferida, ao recusar-se a trabalhar para o pool, caso não fosse remunerado por isso. O jornal o tirou do pool, mas também da editoria de Política, transferindo-o para a editoria São Paulo. E ele nada mais fez do que exigir o que está contemplado na Convenção Coletiva de Trabalho, assinado entre os sindicatos dos jornalistas e das empresas. A decisão de Everaldo mostra a coerência de sua história de vida, profissional e sindical, ele que é o atual vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj e diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo – entidade que presidiu por seis anos, em duas gestões seguidas.

Vale a pena ler a íntegra da carta que escreveu à Direção do jornal:

?Colegas:

A partir de hoje, estou remanejado da editoria Brasil (Política) para a editoria São Paulo do Diário de S. Paulo. Acho que todos precisam saber a razão: eu me neguei a continuar escrevendo para outras empresas de graça, sem qualquer remuneração adicional. O que aconteceu comigo e também acontece nas demais editorias do jornal interessa a vocês.

Desde o dia 15 de julho, a editoria Brasil do Diário de S. Paulo integra um pool para a cobertura das eleições presidencial e estadual, que inclui ainda a sucursal de O Globo, o site GloboNews e a Agência Globo (cujo material é vendido nacionalmente), sob o comando de O Globo. Fomos informados de que, além de escrever para o Diário, teríamos que produzir material para todas estas empresas. Na semana passada, a CBN foi integrada ao esquema e a partir de hoje os jornalistas que compõem o pool participam da cobertura jornalística da emissora. Detalhe importante: todo este trabalho, extra, sem qualquer pagamento adicional. Sem falar na jornada de trabalho.

Por escrito, lembrei a empresa da cláusula 6? (Adicional de Republicação/Reutilização) da Convenção Coletiva de Trabalho vigente, assinada entre o Sindicato dos Jornalistas e o Sindicato das Empresas Proprietárias de Jornais e Revistas de São Paulo, que fixa uma remuneração mínima a ser paga ao profissional nos casos em que seu material é aproveitado por outros órgãos de divulgação. A cláusula deixa claro ainda que todo material deve ter a identificação do(s) autor(es), como também estabelece a Lei 9.610/98 (Direito Autoral).

Destaquei na correspondência que textos e imagens produzidos por mim e colegas de outras editorias estão sendo aproveitados há tempos nos veículos acima, sem que tenha sido pago qualquer remuneração que não o salário do Diário. Por fim, deixei claro que me colocava à disposição para trabalhar nas novas condições comunicadas pela empresa, mas desde que corretamente remunerado. Solicitei à empresa uma resposta e, para evitar qualquer insinuação de boicote, nestes 20 dias trabalhei dentro das novas regras, como comprova farto material que produzi.

A resposta da empresa foi o remanejamento. Imaginei que, a partir do meu caso, pudesse ser aberto um processo de discussão e negociação para resolver uma situação que atinge não só a mim, mas a toda redação do Diário. A utilização, sem pagamento, do material produzido por nós pelos demais veículos vem acontecendo desde o ano passado, sem que se tenha até o momento vislumbrado uma solução. A cobertura da eleição apenas agravou a situação.

A saída adotada pela empresa não resolve o problema; ao contrário, mantém a irregularidade. Da mesma forma que ninguém está se recusando a aceitar a proposta de trabalho feita, a empresa também não deve se recusar a pagar o que é legítimo, ou seja, a justa remuneração ao trabalho aproveitado em outros veículos. É a regra do mercado. É simples.

Ambos estamos no mercado – a empresa e nós, trabalhadores. Não é admissível que somente um lado se beneficie, em detrimento do outro. Não dá para aceitar passivamente tal situação, como se fosse normal e correto o que está acontecendo.?

Everaldo Gouveia

Mudanças, obviamente, são possíveis mas dependem de uma grande mobilização, de estratégia, de planejamento, ou seja, tudo aquilo que as empresas tem de sobra, e que falta aos profissionais, em que pese os esforços individuais como os do Everaldo, dos sindicatos de jornalistas do País e mesmo da Fenaj.”

 

CRISE CAMBIAL

“O Brasil na mesa de câmbio”, copyright Jornal do Brasil, 15/08/02

“Na TV, eles surtam. Olhos esbugalhados, palidez suada, os operadores do mercado financeiro entram em cena. É assim que o telejornal insinua que o país está à beira do colapso. Insinua mas não diz. Não se atreve a dizer. Se o país quebra ou não quebra, é uma incógnita. Mas os sujeitos do mercado financeiro, estes sim, dissolvem-se num colapso circense. Seguram um telefone em cada orelha. Em grupo, gritam entre si. Falam com vários interlocutores ao mesmo tempo. Olham o vazio com o olhar vazio. Nem parecem gente. Não dá para imaginá-los na praia, ou escolhendo uma roupa de baixo na frente do guarda-roupa, ou ganhando um beijo da tia. Surgem na tela como zumbis cibernéticos. Quem sabe, como chips do grande computador planetário da especulação. Ou células artificiais de um imenso organismo que se move como um polvo por sobre as cabeças da gente. Os operadores ensandecidos são terminais antropomórficos nas pontas de fibras óticas. Talvez o capital seja mesmo um ser vivo cujos neurônios são os operadores. Eu os vejo no Jornal Nacional ao fundo de uma repórter sublime e fria que me avisa: hoje à tarde o mercado andou nervoso.

Sei. Nervoso ando eu. Eu mesmo, que jamais pisei numa bolsa de valores nem freqüentei uma mesa de operações. As bolsas de valores é que pisam em mim com suas patas de titânio, as mesas de operações é que andam me freqüentando os pesadelos. Ando nervoso, nervoso no ritmo do mercado. O dólar sobe, trato mal o garçom. O dólar cai, sorrio para o guarda que me multa. Acabei virando um indicador econômico. Olhe para mim e você saberá a quantas anda a economia.

Sinto-me exposto a um trucidamento monetário e penso (se é que eu consigo pensar) que essa minha sensação há de ser um sintoma. É como se eu, um brasileiro qualquer, encarnasse a moeda brasileira em frangalhos. É como se não fosse o valor da moeda pátria que estivesse em questão, mas o valor da minha própria alma. É esse valor, o de minh?alma, que pula para cima e para baixo aos sobressaltos. Já não preciso de ar, preciso acompanhar as cotações. Minuto a minuto. Na Internet, sigo as diatribes da moeda americana. Justo eu que não tenho dólar nenhum. ?O Brasil está quebrado?, diz um economista. Eu acredito. ?Que nada, isso passa?, rebate Armínio Fraga. Eu acredito de novo. Vejo-me falando com três interlocutores ao mesmo tempo: os de oposição, os governistas e o meu bolso, que não tem troco nem caráter. Vejo-me pregado no monitor para acompanhar os índices mutantes. Olho para o vazio. Descubro, assim, que estou contaminado pela síndrome dos operadores. Virei um deles!

Ou quase. Feriado bancário no Uruguai. Eu tremo. Os diretores do Banco Central vão ao FMI, eu torço. A propósito, não virei exatamente um operador. Sou apenas um operador imaginário, um torcedor do mercado financeiro. Não tenho nada a ver com a farofa dos financistas, mas torço do lado de fora do vidro blindado que os protege, feito os moradores de rua que acompanham os jogos da seleção através das vitrines do centro da cidade. ?Vai, dólar, cai!? ?Agora, desvaloriza um pouco.?

O tempo da inflação era melhor. Pelo menos, em meio ao caos, havia uma certeza: a própria inflação. Era uma desordem, mas uma desordem ordenada. Os preços só iam para cima. A inflação era uma rotina previsível, uma inércia. Era como um rio corrente que, vez ou outra, transbordava. Mas ainda assim era um rio: constante, líquido e certo. Agora, tudo é incerto, o dólar vai para cima e para baixo. O dólar é absoluto. Tão absoluto que deixamos de saber quanto é que ele vale. O dia-a-dia é feito de solavancos. A sensação é parecida com aquela de quem habita as grandes cidades brasileiras, hoje entregues à criminalidade. O sujeito sai de casa e não sabe se vai voltar. A família se prepara, todos os dias, para receber a notícia horrorosa do seqüestro ou do assassinato. A iminência da tragédia entra na rotina, num processo doentio cujos custos emocionais são difíceis de calcular. Do ponto de vista de quem, como eu, tornou-se um viciado em câmbio, a premonição de que os bancos vão fechar amanhã e de que o desemprego virá na forma de uma inundação vai aos poucos tomando a forma de cenário razoável. E a própria razão entra em volatilidade, como a própria economia.

Sofro, enfim, dessa ?neurose de conjuntura?. O que seria apenas um problema meu, e de mais ninguém, não fosse o fato de que, como eu, milhões de brasileiros de classe média padecem da mesma neurose. O dólar é uma obsessão nacional. É manchete nos jornais, na TV, nas revistas. Em todas as reuniões se fala dele. Nos jantares, no campo de futebol. A fobia cambial se abateu com fúria sobre o país. É uma enfermidade da cultura, um mal devastador. Somos um país de operadores enlouquecidos, operadores imaginários em vôos alucinatórios. Somos um país que se deixa medir pela moeda do outro e não consegue mais sair dessa lógica. É indiferente se vamos dolarizar ou não a economia: já dolarizamos nosso desejo. E, pior, é com esse desejo dolarizado que caminhamos para uma eleição.

Dizem que o Brasil está na UTI do FMI. Não está. O Brasil está deitado, nu, sobre uma mesa de câmbio. Sedado. Às vezes, recobra a consciência e pergunta ?quem sou??, ?onde estou??. O dólar cai um pouco. E logo volta a subir. Tínhamos de nos ver de fora para entender o que se passa. Mas não conseguimos. Estamos atolados na nossa própria ansiedade. Só quem nos olha de fora é quem tira os dólares daqui. Pois também não entende nada.”