Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Educação sintonizada com a nova ordem

FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO

Muniz Sodré (*)

Apesar das matérias do Jornal do Brasil e da Folha de S.Paulo, foi precário o destaque dado pela imprensa às suspeitas do Ministério Público do Maranhão de que tenha havido superfaturamento no contrato de 102,5 milhões de reais assinado em novembro passado entre a governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL), e a Fundação Roberto Marinho.

Recapitulemos os elementos da notícia. O programa maranhense "Viva Educação" contratou a Fundação Roberto Marinho (instituição privada, sem fins lucrativos, pertencente às Organizações Globo) para capacitar 150 mil alunos da rede estadual de ensino, por meio do Telecurso 2000, um supletivo desenvolvido pela Fundação e ministrado pela TV. Os 4.000 instrutores do (muitos sequer são professores capacitados) foram contratados sem concurso e sem garantias trabalhistas. Um festival de irregularidades: menores de 17 anos ? que, por lei, deveriam estar matriculados no ensino regular ? são alunos do telecurso.

Interessam em especial ao Ministério Público os mascaramentos contábeis, a obrigação do governo do Estado de comprar o material didático da Editora Globo, as compras sem licitação e o fato de a família da governadora ser dona do Sistema Mirante de Comunicação, que inclui a TV Mirante, afiliada local da Rede Globo.

Ao público em geral, entretanto, deve interessar esse tipo de balão de ensaio para a substituição do ensino regular ou formal por ensino midiático. De fato, ao contrário do que apregoam os arautos do tecnicismo e do privatismo, o apelo irrefletido às soluções "tele" pode ter conseqüências enganosas para um política verdadeiramente educacional.

Basta avaliar o Programa TV-Escola, lançado com pompa e circunstância em 1996 e anunciado como uma das realizações mais bem-sucedidas do regime neoliberal brasileiro no campo educacional. O eixo pedagógico do programa, destinado a recapacitar professores e a modernizar a sala de aula para os alunos do ensino fundamental público (cerca de 34 milhões de crianças em meados dos anos noventa), era a televisão.

Consistia primeiramente na entrega pelo Ministério da Educação a cada uma das pouco mais de 40 mil escolas de um kit composto de antena parabólica, receptor de satélite, aparelhos de TV e videocassete, além de uma caixa de fitas. Em seguida, duas horas diárias de programação (vídeos e filmes educativos em disciplinas diversas) dirigida à sala de aula e uma hora aos professores, com o acompanhamento de uma revista.

Nos termos simples desta descrição, o programa seria a modernização escolar pelo deslocamento da escrita para a imagem. No entanto, por trás desse suposto aggiornamento, o que há mesmo é uma política educacional orientada por um produtivismo tecnicista, pautado não pelos interesses e anseios de múltiplas organizações da sociedade civil, e sim por projetos de organismos internacionais (Banco Mundial, por exemplo) e diretrizes mercantilistas internas ? venda de antena parabólica, kits pedagógicos etc.

Bens e serviços

Outro caso semelhante é o Programa Sociedade da Informação (Socinfo), lançado no final do ano 200, com vistas à "utilização de tecnologias de informação e comunicação que permitam a inclusão social de todos os brasileiros na internet". A realidade do computador como produto-fetiche cultural, a real intenção de promover a competitividade empresarial com o apoio à implantação do comércio eletrônico, novas políticas de segurança e outros desígnios estatais são camuflados pelo discurso oficial no sentido da "alfabetização digital" e educação pública.

Em nenhum momento se trata de transformar as condições reais em que se assentam as velhas estruturas educacionais, e sim de trocar as perspectivas sociais de inclusão do maior número possível de sujeitos nacionais na educação formal qualificada e no mercado de trabalho pelos simulacros cibernéticos de "inclusão de todos na rede". Em outras palavras, nenhum reflexo de desejo coletivo, tão-só adequação a um cenário tecnoburocrático.

A educação brasileira conseqüente à Nova República era da ordem do desejo coletivo e não de puro cenário. Correspondia a uma ideologia de constituição do povo nacional (virtualidade da mão-de-obra para a industrialização) e comportava esperanças de integração ou de ascensão social por meio da escola, em especial a escola pública ? isto é, democrática, universal e gratuita. Emprego e cidadania sustentavam enquanto metas as doutrinas liberais da educação, no âmbito macrossocial de um capitalismo que priorizava a produção industrial e conseqüente a uma divisão internacional do trabalho cujas bases principais neste século datam do início da Primeira Grande Guerra.

Outra é a ideologia educacional dentro do projeto de hegemonia do bloco neoliberal no poder, no âmbito do capitalismo financeiro. O ajuste estrutural à globalização restritiva, apoiado pela coalizão entre elites tecnoburocráticas do Centro-Sul e oligarquias do Norte e Nordeste, não se faz sem exclusão social e sem subordinação aos imperativos globalistas, por sua vez excludentes das regiões do mundo consideradas "periféricas" e com um ideário regido exclusivamente pela moral do mercado. Esta é a mesma de uma certa mídia que tenta transformar discursivamente o mercado em árbitro inquestionável da vida social e fazer da liberdade contratual o caminho único para o bem-estar coletivo.

Nessa nova ordem de coisas, a educação desinveste-se progressivamente de seu estatuto de serviço público para ingressar no mercado de bens e serviços, do tecnicismo instrucional. Está aberto o caminho para todo tipo de acordo mercadológico, em nome da pretensa pós-modernidade midiática. Claro, os filhos das classes abastadas continuarão tendo educação formal completa e oportunidades de bom emprego. Aos pobres, o silêncio. Talvez seja esta a "revolução silenciosa" de que tem falado o presidente da República.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ.

 

    
    
              
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