MÍDIA & VIOLÊNCIA
André Azevedo (*)
A literatura e o cinema já lançaram provocações veementes sobre a relação entre o apetite do público pelo macabro e a alegre disposição da mídia em saciá-lo. O escritor inglês Thomas de Quincey (1785-1859) escandalizou a Inglaterra vitoriana com seu irônico Do assassinato como uma das belas-artes. Quincey escreve que a originalidade dos homicidas, demonstrada nos incontáveis registros na imprensa, seria comparável à genialidade criativa de grandes pintores, poetas ou músicos. Por isso, sugere que os assassinatos sejam avaliados por sua beleza estética, e apreciados, portanto, devido a sua condição de arte.
O autor descreve as atividades de um suposto clube de aristocratas dedicados ao hobby do assassinato. Segundo Quincey, eles se encontravam em reuniões onde relatavam os crimes que haviam praticado durante a semana, as estratégias de que haviam lançado mão e outros detalhes mórbidos, levando a platéia ao deleite. Um conferencista lembrava que a vítima mais adequada é um amigo íntimo e, "em falta de um amigo, que é um artigo de que não se pode sempre dispor, um conhecido; porque, em ambos os casos, quando primeiro se aproximasse da vítima a suspeita seria desarmada; enquanto um estranho poderia alarmar-se, e descobrir na própria fisionomia do eleito para assassiná-lo um aviso para que se pusesse em guarda". Haveria uma espécie de graduação do crime, e os mais originais eram considerados "grandes artistas".
"Olhadinha" mórbida
O cineasta alemão Michael Haneke escreveu e dirigiu Violência gratuita, um dos filmes mais provocativos da década de 90. Haneke defende, em sua obra, a tese de que o público se transforma em cúmplice do assassino quando participa da violência pela observação passiva de telespectador ? ou leitor. E essa constatação não é colocada como uma metáfora, mas entendida de forma literal. A conivência estaria na própria passividade confortável de espectador que, se por um lado encara o crime como algo torpe, por outro adora estar junto, aceita participar da cena, é ávido pelos detalhes e finge espantar-se, disfarçando certa ludicidade mórbida quando se depara com os detalhes macabros. De certa forma, esse espectador secretamente desejaria que mais assassinatos aconteçam para que sempre aparecessem histórias que possibilitariam, enfim, sua participação pela representação simbólica ? as imagens e o texto.
No filme isso é demonstrado com muita perícia. Os psicopatas às vezes dão piscadelas para a câmera, como que fazendo um pacto com o espectador: "Fiquem aí, que serão recompensados com muita malvadeza." Em certo momento, um dos vilões se distrai é alvejado por uma vítima. O outro então pega um controle remoto, e numa reviravolta metalingüística, roda o próprio filme ao reverso até chegar naquele ponto. Consciente de sua condição de personagem fictício, agarra a arma e impede a repetição da cena. Sabia que a morte do vilão seria o fim da história, e o público exige mais diversão! Numa de suas músicas, Rita Lee mostrou que compartilha dessa hipótese. "Não podemos sofrer. Não leremos jornais que noticiem crimes. Não participaremos destas mortes vis", canta.
Em Anarquistas, graças a Deus, a escritora Zélia Gattai descreve uma de suas diversões de infância preferidas com a mãe e as irmãs: procurar no jornal nomes conhecidos na coluna de necrológios e acompanhar os velórios que passavam à porta. "No entanto, nem todos os enterros despertavam igual interesse. Os de morte violenta, atropelamentos, desastres, assassinatos, eram os mais apreciados", escreveu.
Essas confissões costumam surpreender porque normalmente as pessoas não são capazes de admitir e refletir sobre suas perversões. É comum observar aqueles que dizem detestar a violência nos jornais, mas nunca deixam de dar aquela "olhadinha" para saciar sua curiosidade mórbida. Portanto, costumam inventar todas as desculpas possíveis para disfarçar suas "perversõezinhas". Em Memórias do subsolo, Dostoievski escreve que o homem "está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica".
O dilema da imprensa
Em O que é violência, Nilo Odalia acentua a diferença entre ato de violência e estado de violência.
"O ato violento não traz em si uma etiqueta de identificação. O mais óbvio dos atos violentos, a agressão física, o tirar a vida de outrem, não é tão simples, pois pode envolver tantas sutilezas e tantas mediações que pode vir a ser descaracterizado como violência."
Ele argumenta que costumes e tradições encobrem certas práticas violentas da vida em sociedade e dificultam a compreensão imediata de seu caráter. Um exemplo claro dessa questão é o problema do assassinato. É possível matar alguém. Pode-se também favorecer as condições para que muitas pessoas morram. Um ato político, como privilegiar recursos públicos para futilidades, por exemplo, pode vir a deixar morrer dezenas de pessoas desnutridas. Isso não é considerado um ato de violência, mas, sem dúvida, é um estado de violência.
Normalmente a imprensa se satisfaz em privilegiar a cobertura dos atos de violência, ignorando, ou cobrindo mal, os estados de violência. O que se vê é a simples exposição dos fatos da violência urbana. Entretanto, sabe-se que expor não é propor. O ato violento de ontem será esquecido para que o ato violento de hoje seja explorado até ser esquecido amanhã, num círculo vicioso estéril. As causas do estado de violência não são, portanto, discutidas; a doença é deliberadamente ignorada para que os sintomas sejam expostos.
Em O discurso da violência, Ana Rosa Ferreira Dias analisou o diário paulista Notícias Populares, hoje extinto. Ela descreveu a intensa sintonia entre o jornal e a classe social a que se dirigia, sobretudo na linguagem. A partir de seu estudo, é possível concluir que para melhorar a qualidade editorial dos jornais faz-se necessária a mudança da própria sociedade. Mas o dilema implícito é que a imprensa é, justamente, uma das grandes, senão a maior instituição capaz de mobilizar a sociedade para essa mudança. O jornal que faz diariamente um elogio implícito ao homicídio e é incapaz de refletir sobre seus métodos certamente não será capaz de provocar mudanças na sociedade ? se é que o deseja.
(*) Estudante de Jornalismo na Universidade de Uberaba, MG