ALDEIAS DA ILHA
Nilson Lage (*)
Ler a revista de 48 páginas Aldeias da Ilha, bonita e simples, produzida por seis jovens estudantes de jornalismo da Universidade de Tocantins (Unitins), é fazer uma viagem pelo significado das palavras e por tudo que os conceitos representam na construção de nossas idéias sobre o mundo. No caso, a palavra é "preservação".
A revista monotemática trata dos povos inã, os carajás, javaés e xambioás. [Recuso-me a obedecer, fora de publicações técnicas, à ditadura gramatical dos antropólogos, que mandam escrever esses nomes em letras maiúsculas e sempre no singular ? e o faço pela simples razão de que não escrevo "os Chinês", "os Croata" ou "os Judeu"; nego-me a diferençar graficamente povos "selvagens" e povos "civilizados". Também não escrevo "carajá" com "k", porque a palavra com "c" está no dicionário do Aurélio.] Carajás, javaés e xambioás são índios que vivem na maior ilha fluvial do mundo, a do Bananal, no Rio Araguaia.
Para muita gente ? tanto leigos quanto envolvidos na matéria ? "preservar" significa manter como está, conservar como foi. Seria como fazer de conta que não houve a chegada dos europeus, os conflitos coloniais na busca de escravos e terras, os trágicos enganos dos jesuítas, com seu projeto de restaurar na América o poder secular perdido na Europa. Congelar, enfim, o passado, ainda que com pequenas alterações, tais como vestir bermudas nos corpos nus, com os quais a nossas cultura lúbrica recusa-se a conviver.
Munidos dessa visão "preservacionista", que está nos livros e nos sentimentos de culpa dos europeus, os jovens saíram a ouvir os interessados, isto é, os índios. Cogitaram, por exemplo, que morar em casas de alvenaria, pleitear saneamento básico e sistema de abastecimento de água significaria para o povo da aldeia São João perder traços culturais indígenas e se tornar "como os brancos". Nada disso, explicou o cacique Juraci Javaé: "Nós fazemos casa de material porque é mais saudável". E acrescentou que a agricultura irrigada, com o uso de inseticidas, torna a água do rio imprópria para o consumo in natura.
Há exemplos de resistência cultural no setor médico, que têm custado a vida de crianças com diarréia e adultos com doenças sexuais transmissíveis, mas a palavra "preservar" adquire desde já outro significado.
As brincadeiras das crianças incluem corridas de bicicleta e lutas marciais. Os jovens jogam futebol e baralho na Casa de Aruanã. Aniversários se comemoram com balões, parabéns e bolos com velinhas, na aldeia carajá de Santa Isabel. Caciques já são escolhidos pelo voto e os casamentos não mais negociados pelas famílias. A maioria das casas têm televisão e algumas ostentam antenas parabólicas. Nem por isso os moradores deixam de ser índios, falar entre si na língua dos antepassados e reproduzir, com miçangas compradas no armarinho, os adornos tradicionais.
Para tratar do gado, elemento estranho a sua cultura, as tribos contratam vaqueiros nas cidades próximas e pagam por parceria ? um bezerro recém-nascido para os vaqueiros, três para os índios. Parte do rebanho e das plantações é da comunidade, o que não agrada o cacique Kosini Karajá, da aldeia de Fontoura. Ele se queixa de que o arroz da roça comunitária mecanizada de Boto Velho é distribuído a todos na aldeia e quem não trabalha recebe tanto quanto quem deu duro na colheita.
Um só povo
Quando se fala em educação, a idéia de "preservação" dá mais um passo em seu caminho da fantasia à realidade. "Nós queremos uma educação de qualidade, educação de verdade, onde as crianças possam aprender a se preparar para o futuro. Com essa educação de hoje, a sociedade indígena se sente presa na aldeia", diz Waxly Karajá, da aldeia Havalo Mahadu, estudante de ciências contábeis na Unitins, campus de Palmas, e técnico da Secretaria de Educação do Estado do Tocantins. "Queremos aprender como todos os outros. Hoje a educação para os povos indígenas é muito precária. E não adianta o governo brasileiro impor. Nós sabemos preservar o que é nosso."
Em artigo assinado na revista, Kohâlue Karajá, estudante de Direito, proclama: "Seria importante que não houvesse essas diferenças raciais. É necessário que os ensinamentos sejam adequados nas escolas indígenas para que, futuramente, os índios estejam preparados para atuar na defesa das questões indígenas, bem como para a vida profissional". E acrescenta: "Os índios também precisam ser participativos do progresso. É importante que estejam inseridos na sociedade, trabalhando de igual para igual, adquirindo os conhecimentos científicos, ao invés de serem observados como se fossem de outro mundo".
Kohâlue considera importante que a sociedade brasileira se conscientize de que o índio faz parte dela, apesar de viver geralmente nas florestas, onde se mantém em contato com a natureza. E procure conhecer a realidade indígena, para que possa adquirir a sensibilidade necessária para respeitar os costumes dos povos indígenas.
Depois dessa lição ? que me lembra muito a experiência relatada pelos correspondentes de guerra que, doutrinados sobre a suposta missão libertária dos Estados Unidos no Vietnam descobriam rapidamente lá que não era bem assim ?, os futuros jornalistas do Tocantins encerram seu trabalho com um editorial em que concluem por uma escritura bem mais consistente da palavra "preservação":
"Não adianta sonhar com um país (e nós sonhamos…), um país com mais igualdade social, se ignorarmos os povos indígenas. São brasileiros, são nossos irmãos. E juntos todos os brasileiros, sem distinção de cor, de origem cultural ou classe social formarmos um só povo, o povo brasileiro."
Estudam na Universidade do Tocantins os acadêmicos Rael Tapirapé, Belehiru Karajá, Hani Karajá, Kosini Karajá, Bikauna Karajá, Isariri Lukikui Karajá, Acare Karajá, Waxiã Maluá Karajá, Kohalue Karajá, Arilson Karajá, Haburunatu Karajá, Salivan Karajá, Antônia Regina Javaê e Wadol Karajá. A revista foi produzida pelos estudantes de jornalismo Aurielly Queiroz Painkow, Celiana de Fátima Alves de Azevedo, Gina Varla Ramos, Kassandra Quedi Valduga, Lailton Alves da Costa e Rísia Sousa Lima, orientados pelos professores Odair Giraldin, antropólogo, doutor, e Fábio d?Abadia de Sousa, jornalista, mestre.
(*) Jornalista, professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina, autor de A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística e outros