Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Escritores imortais baratinhos

CLÁSSICOS NAS BANCAS

Deonísio da Silva (*)

Dom Quixote de la Mancha deu causa a um dos maiores plágios da literatura em todos os tempos. Publicado originalmente em dois volumes, o primeiro veio à luz em 1605, quando Miguel de Cervantes Saavedra, até então um escritor desconhecido em seu próprio país, estava com 58 anos. À semelhança de Euclides da Cunha ? sim, leitores; Euclides escreveu a maior parte de Os Sertões em São José do Rio Pardo ? Cervantes dormiu obscuro e acordou célebre.

Cervantes, um libriano, nasceu provavelmente a 29 de setembro de 1547 e viria a falecer no mesmo ano em que o mundo perdia Shakespeare, em 1616. O segundo volume, já prometido, demorava a sair. Então, deu-se o plágio. Em 1614, Alonso Fernandez de Avellaneda publicava por sua conta e ousadia o falso segundo volume de Dom Quixote, admitindo já na abertura o plágio, assegurando, entretanto que o seu era "menos fanfarronesco e agressivo que o escrito por Miguel de Cervantes Saavedra em sua primeira parte, e mais humilde que o anteposto em suas novelas, mais satíricas que exemplares, conquanto não pouco engenhosas". E há ainda quem ensine em Teoria Literária que o intertexto nos veio da França, ó dor!

Escritores e artistas inspiram paixões aqui e acolá, sem descartar o ódio insano, que às vezes irrompe de bocas ou de penas surpreendentes. Mas o Barão de Itararé já alertou no dito famoso: "De onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada". Quem se escondia no pseudônimo de Avellaneda?

Lucílio Mariano Jr., na apresentação que fez do falso Dom Quixote, no Brasil publicado pela Itatiaia, afirma que houve um tempo em que ninguém menos do que Lope de Vega esteve sob suspeita. De todo modo, a censura oficial, então prévia, como era o costume, exarada pelo Conselho Real, examinou os originais do Quixote apócrifo e não encontrou nada que fosse "desonesto ou proibido". Ah, os burocratas e censores cuidando da cultura! Bem sabemos o que sabem! E sobretudo o que não sabem! E mais ainda do que são capazes!

Irritado, Cervantes apressou-se, deixou de lado as poesias, novelas e peças de teatro, consideradas enfadonhas por seus contemporâneos, e voltou à continuação da obra-prima que engendrara. E o segundo volume finalmente veio à luz em 1615.

Mas não é somente o cavaleiro andante que voltou às bancas, que já freqüentara nas décadas de 1970 e 1980. Vem acompanhado de um séquito que inclui alguns dos melhores livros de todos os tempos. Da língua portuguesa estão anunciados Camões e Euclides da Cunha entre os primeiros vinte, fazendo companhia a Dante, Flaubert, Goethe, Dickens, entre outros.

Celebração prazerosa

São muitos os encantos que vão para além do texto, começando pelo preço, 9,90 reais o exemplar. A primeira edição saiu com 60.000 exemplares. Nas primeiras 48 horas haviam sido vendidos mais de 40.000 exemplares apenas a leitores de São Paulo, Rio, Espírito Santo, Fortaleza e Florianópolis. No alvorecer de 2003, esses imortais estarão ao alcance de todas as bancas do Brasil. Na década de 1970, segundo informa Veja desta semana, a coleção vendeu 4,5 milhões de exemplares.

Então, livro de qualidade vende ou não vende? A Abril Cultural e a Nova Cultural, entre outras, já provaram que livro bom e barato vende, sim. O segredo é o preço, a visibilidade. E naturalmente estar ao alcance do leitor. Quem quiser esses livros de outro modo e for a alguma das cerca de 900 livrarias brasileiras, provavelmente terá que encomendar, dar seu nome, telefone de contato etc. Imaginemos que o padeiro vendesse pão assim! Ora, o livro não é o pão do espírito? Para editores atilados, livro é também um bom negócio. E todos ficam satisfeitos.

Numa das já célebres Jornadas de Literatura, realizadas em Passo Fundo (RS), sob a batuta da professora de letras Tânia Rösing , a quem um dia o escritor Antonio Callado propôs para ministra do Planejamento, a escritora Betty Milan foi muito aplaudida ao dizer para cerca de quatro mil pessoas que a ouviam: "Livro não pode custar mais do que 4 reais". O dólar estava, então, a 1,20 real. Hoje, beirando os 3,20 reais, custaria 10,65 reais. Pois os imortais chegaram às bancas por pouco mais de 3 dólares!

Celebremos! Não é sempre que podemos aplaudir iniciativas editoriais como essa. Ninguém menos do que o presidente da Editora Nova Cultural, Richard Civita, promete ao público: "Todas estas obras-primas os cativarão e empolgarão para o mundo da leitura, e o seu mundo ficará transformando para sempre. Será mesmo o prazer de ler!"

(*) Escritor e professor da UFSCar; seus livros mais recentes são De onde vêm as palavras e o romance Os guerreiros do campo