Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Espinhos da

AUTO-SUSTENTABILIDADE

Nelson Hoineff (*)

O debate em torno das fontes de financiamento à produção audiovisual, estimulado pela entrevista de Cacá Diegues a O Globo (edição de 3/5/03), está bem longe de terminar. Na verdade é pouco mais do que a ponta de um grande iceberg. A montanha começou a ser desvendada alguns dias depois, quando 50 cineastas divulgaram um "comunicado", durante o festival de cinema de Fortaleza, com pesadas críticas à representatividade do grupo de artistas que se reuniu no Rio. Esses 50 cineastas chegaram, antes do final do festival, a cerca de 70. Entre eles estão Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Jr. e praticamente todos os realizadores de filmes brasileiros importantes nos últimos anos.

Não se pode desconhecê-los, da mesma forma como é imperioso que se entenda o que toda essa gente está dizendo. Num primeiro momento, formou-se uma reação ao grupo de Cacá, Luiz Carlos Barreto e a produtora Mariza Leão, entre outros ? gente que os signatários do documento consideram privilegiados na obtenção dos recursos das estatais. Esse debate resvalou para rumos perigosos. A Folha de S.Paulo fez um levantamento dos financiamentos obtidos por esse grupo nos últimos anos, só para respaldar o texto dos 70 cineastas. Não faltaram também realizadores como o estreante pernambucano Cláudio Assis, diretor de Amarelo Manga, que em entrevista do O Povo, de Fortaleza, bateu forte nos seus colegas que participaram no Rio do levante contra as regras impostas pela Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica (Secom).

Estarão todos esses diretores apoiando uma política de dirigismo cultural, na qual a produção cinematográfica deve necessariamente colocar-se a serviço da propaganda de governo? Não há qualquer indício disso. A princípio, tanto o grupo do Rio quanto "o grupo dos 70" (na falta de um nome melhor para os signatários do documento de Fortaleza) apóiam o comando da atividade cultural pelo Ministério da Cultura. Representatividade é o que se discute ali. E hegemonia de uns produtores sobre outros.

Hegemonia em quê? Na captação de patrocínios das estatais. E por que isso acontece? Porque de uma forma ou outra esse grupo tem conseguido acesso maior a mecanismos de patrocínio que nem sempre são completamente transparentes nem acessíveis aos que não detenham informações privilegiadas. Essa é uma distorção real, mas que pode ser corrigida no âmbito de uma ação de governo que não resulte necessariamente na concentração do controle da produção artística em torno da Secretaria de Comunicação.

No vermelho

Seqüelas desse debate mal começam a aparecer. Ainda em Fortaleza, representantes do "grupo dos 70" protestaram contra a idéia do secretário do audiovisual do Ministério da Cultura de promover uma reunião entre governo e classe, no Rio. Eles acreditam que qualquer reunião dessa natureza deva ser feita em Brasília, ou em qualquer outro estado, menos o Rio. Remetem a questão a uma tradicional rivalidade, que por algum tempo havia sido superada. Segundo essa visão, o grupo dos privilegiados tem sua sede e seu quartel-general no Rio. É claro que isso não é relevante, embora seja usado emblematicamente como uma trincheira da luta pela descentralização da aplicação dos recursos públicos.

E é aí que a questão ganha transcendência, torna-se maior que a disputa entre grupos de cineastas pelas condições de financiamento de seus filmes. Isto porque, quando se fala em aplicação de recursos públicos no cinema brasileiro, surge a questão em torno da razão pela qual a atividade não é até hoje auto-sustentável.

No Brasil, não só o cinema não é auto-sustentável como toda a atividade audiovisual não o é. Isso acontece por um grande número de razões, a menor das quais a falta de competência dos realizadores. No que diz respeito ao cinema, o mercado não é capaz de absorver os custos de produção porque ele encolheu, está voltado apenas para a classe média e completamente dependente de estratégias de marketing massificadas.

Tome-se o casos dos três últimos grandes sucessos do cinema brasileiro: Cidade de Deus, Carandiru e Deus é brasileiro. Os três foram co-produzidos pela Globofilmes, que entra na produção não com dinheiro vivo, mas com a ostensiva mídia da Globo.

Não há nada de errado nisso, muito pelo contrário: não fosse essa mídia os filmes não teriam levado sequer uma pequena parcela do público que levaram ao cinema. Mas deve-se entender que filmes brasileiros realizados quase no mesmo período, também de apelo popular e em alguns casos muito melhores, como O invasor e Bicho de sete cabeças, por exemplo, não só não tiveram o mesmo desempenho como não se pagaram nas bilheterias.

Pelo menos 25 de cada 30 filmes que estão sendo lançados a cada ano também não se pagam. Isto não se deve a problemas de comunicação dos filmes com o público, mas a questões estruturais da atividade, entre as quais o modelo de distribuição, a concentração das salas e o preço dos ingressos são as mais evidentes.

O que importa

A questão, contudo, não se restringe ao cinema. Também a produção audiovisual como um todo, em particular a produção independente de televisão, não é auto-sustentável. As redes de TV por assinatura, por exemplo, não investem um centavo nessa produção (com as exceções de praxe) que, quando são exibidas, têm que encontrar financiamento através dos mecanismos de renúncia fiscal. Dessa forma estão subsidiando indiretamente as próprias redes de televisão por assinatura. Não era de se esperar que fosse assim.

O natural é que as programadoras de TV pudessem remunerar da atividade, e assim também remunerar quem está produzindo para elas. Mas não é o que acontece. O produtor independente corre atrás do dinheiro das estatais, mas o que ele está financiando é a programação da rede, que vai ser vendida ao assinante. Que paga caro.

A presença dos patrocínios estatais (de forma não incentivada) responde também pela viabilização da televisão pública e da televisão comercial aberta no país. Nas emissoras públicas de TV, essa é a principal fonte de receita, somada à dotação de cada uma. Na TV comercial, seu impacto varia de acordo com a rede. Em algumas representa menos de 20% do faturamento. Em outras, no entanto, as estatais são os maiores clientes.

Jogar sobre o cinema o peso de ser neste momento uma atividade dependente dos recursos do Estado é esquecer-se das programadoras de TV por assinatura, da televisão pública e, em grande medida, da televisão aberta no país.

O que fazer? Uma hipótese é acabar de vez com tudo isso: o cinema, a televisão paga, a televisão pública e a televisão aberta. Outra é entender que há necessidade urgente de se construir um novo modelo de produção e difusão audiovisual, no qual as partes sejam integradas e possam, no devido momento, responder às questões essenciais de mercado. Mas devem também assumir um compromisso bem mais importante que o meramente mercadológico. Está em jogo a construção histórica de uma cultura brasileira, uma identidade, e, também, de um grande e permanente debate sobre a sociedade. (A essa altura, diga-se de passagem, compromissos assim cabem mais em produtores culturais independentes do que em grandes corporações, empresas ou instituições.)

É a discussão que importa.

O acirramento de velhas rivalidades entre o Rio e São Paulo não importa nada.

(*) Jornalista, diretor de TV