Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Estadão, crítica e autocrítica

JUDEUS E A MÍDIA

Luiz Weis (*)

Muitos judeus ficaram uma onça com a forma como o Estado de S.Paulo noticiou o "Ato pela paz, contra o terror e contra o anti-semitismo", promovido no domingo, 21 de abril, pelo establishment da colônia de São Paulo ? e isso levou o jornal a publicar uma autocrítica provavelmente inédita e seguramente controvertida.

Tudo o que o Estado deu no dia seguinte à manifestação foi um texto-legenda de 78 palavras, sob o título objetivo "Comunidade judaica promove ato em SP", ao lado de uma discreta foto de duas colunas, na metade inferior da página dedicada ao confronto no Oriente Médio.

A foto mostra em primeiro plano um cartaz onde se lê "100% Sharon", em meio a um grupo de jovens. Outras placas, em segundo plano, dizem "Apoiamos Sharon contra terror".

Enquanto isso, a Folha de S.Paulo esparramou no topo da primeira página uma movimentada foto do evento, na qual aparecem uma criança usando um daqueles enormes chapéus pretos de adultos ortodoxos, uma figura feminina encarando a câmara, um homem de característica barba fechada e bandeiras de Israel e do Brasil.

Pela posição na página e pelo tamanho, a foto em quatro colunas chama muitíssimo mais a atenção do que outra, abaixo da dobra, mostrando cartazes de protesto contra o candidato de extrema-direita Jean-Marie Le Pen, que na véspera conseguira passar para o segundo turno das eleições presidenciais francesas ? um acontecimento infinitamente mais importante. O título da legenda da foto dos judeus ecoou o mote de sua passeata: "Pela paz".

Dentro, a matéria de 339 palavras "Líderes judaicos lamentam anti-semitismo e morte de civis palestinos e israelenses", com o subtítulo "Ato pela paz e em apoio a Israel reúne 9.000 em São Paulo", assinada por dois repórteres, diz que "não havia referências nas faixas ao premiê israelense, Ariel Sharon".

"100% Sharon"

O que enfureceu os judeus e induziu o Estado, três dias depois, ao inusitado mea culpa não foi nem a modesta cobertura do evento ? acentuada pelo tom favorável e a amplitude do noticiário do concorrente ? e sim o foco da foto no cartaz do 100% Sharon.

"O problema foi (sic) que a foto transmite uma imagem distorcida do fato", diz o presidente da Federação Israelita do Estado de São Paulo, Natan Berger, na matéria "Cobertura de ato gera protestos da comunidade judaica", que dá tratamento de reportagem às reclamações recebidas pelo jornal e à sua resposta contrita.

"Dois dos jovens que apareciam (sic) na foto esclareceram, em e-mail enviado à redação, que estavam ali tentando convencer o grupo a não erguer os cartazes pró-Sharon", informa o texto.

A reportagem cita ainda o mesmo Berger sobre os sentimentos dos judeus que ele representa em relação ao Estado. "O jornal sempre foi o que melhor relatou a criação, o desenvolvimento e a epopéia do Estado de Israel", saudou.

Em condições normais e no corpo de uma matéria, por oposição ao que sai na seção de cartas dos leitores, a publicação do rapapé seria um caso clássico de "oba-oba", como se costumavam chamar os elogios e auto-elogios que um jornal divulgava.

A expressão tem origem no slogan dos anos 50 do finado diário paulistano A Gazeta Esportiva: "Oba, oba! Isto sim é que é jornal!"

Mas o salamalaque do senhor Berger tinha um propósito muito definido ? contrastar o passado de identificação mútua com o desapontamento presente dos leitores judeus. Por isso, a barretada termina com um queixume: "As pessoas se sentiram traídas".

Ouvidos os judeus, o Estado ouve os seus. No último parágrafo, o diretor de Redação Sandro Vaia é citado, dizendo que a manifestação merecia mais destaque e que a foto escolhida "não refletiu o espírito predominante no ato, que foi mais ecumênico e pacifista".

Depois de informar que o caso mereceu discussão interna no jornal, Vaia atribui a escolha da imagem a uma avaliação incorreta ? e não a "qualquer ato de má vontade ou má fé em rela&cceccedil;ão à comunidade judaica".

Muita gente deve ter se perguntado nos dias seguintes por que diabos o Estadão achou necessário esclarecer que não tem nada contra os judeus, como se algum leitor familiarizado com o centenário matutino pudesse imaginar que tivesse?

"Cachorro que morde homem"

Mas a foto ? o xis do problema ? merece ser observada mais de perto. É provável que quem a tirou e quem a publicou foram movidos pelo indestrutível princípio jornalístico segundo o qual "homem que morde cachorro é notícia, cachorro que morde homem, não".

O que será que mais obedece a esse mandamento: a imagem do que "era para ser uma campanha linda, bonita", como descreveu a passeata o dirigente da Confederação Israelita, Jacques Perlow, na penitente reportagem do Estado, ou o registro de uma alusão a Ariel Sharon, a figura mais falada e atacada da presente cena mundial (antes que nela irrompesse o não menos odiado Le Pen)?

Para a imprensa, Sharon, em palavra ou efígie, é o protótipo do "homem que morde cachorro". É notícia. Só para comparar: seu ministro do Exterior, o tristonho e complacente Shimon Peres, não. Roupas brancas, bandeiras e gente bem comportada em ato de rua, tampouco.

Para o bem ou para o mal, a mídia sempre vai na jugular.

Tanto assim que, embora a foto de capa da Folha fosse uma bem apanhada imagem-síntese da tal "campanha linda, bonita", a sua dupla de repórteres preocupou-se em procurar ? e aparentemente não achou ? indícios de sharonismo no evento. Daí a passagem no texto: "Não havia referências nas faixas ao premiê israelense, Ariel Sharon".

A foto do 100% pode ser vista ainda de outro ângulo. É o caso de dizer que, ao publicá-la, inadvertidamente, o Estado atirou no que viu e acertou no que não viu. Na passeata, o cartaz pode ter sido uma anomalia. Mas no espírito da coisa, não. As chamadas "instituições representativas da coletividade", aqui, na Argentina, França, Inglaterra, Estados Unidos e onde mais se queira, são ? sim ? 100% Sharon.

Como pega mal dar essa bandeira, em face da condenação que a desumana ofensiva israelense na Cisjordânia vem recebendo em toda parte, o establishment da diáspora tenta, talmudicamente, separar o inseparável.

Com a palavra, Natan Berger, no Estado: "A coletividade é pluralista e não defende 100% Sharon, embora apóie as medidas que visem à defesa da população de Israel".

A prova de que uma coisa é irmã-siamesa da outra, com outro nome, está na convocatória da manifestação ? o manifesto "Para entender o Oriente Médio e os seus fatos", publicado como matéria paga pelo mesmo Estado, dias antes da passeata [o texto está disponível em <www.fisesp.org.br>].

Elaborado em forma de perguntas e respostas, o texto justifica a invasão dos territórios sob administração da Autoridade Palestina, batizada pelo governo israelense de Operação Muro Protetor, com os mesmíssimos argumentos que Sharon e seus porta-vozes martelam sem cessar:

"Israel é, há mais de 17 meses, vítima de sangrenta onda de terror… Todos os governos têm o dever de proteger seus cidadãos… O que ocorre hoje em dia no Oriente Médio é mais uma etapa da luta global contra o terrorismo… Se os homens-bomba prevalecerem, seu exemplo será certamente seguido em outras partes do planeta… Arafat não se esforçou para erradicar o terrorismo… Há hoje provas contundentes de seu envolvimento com grupos terroristas… Diferentes governos israelenses já demonstraram não ter a intenção de permanecer nesses territórios… Querem, para sair, apenas garantias de que Israel terá a segurança necessária para viver em paz com seus vizinhos…"

Nem uma única, mísera, tímida e solitária palavra de crítica, ressalva ou restrição às ações de Israel. Mas o contrário, afinal com todas as letras: "A escalada sem fim do terror obrigou o primeiro-ministro Ariel Sharon a reagir, para atuar em legítima defesa de seu país e para golpear a infra-estrutura do terrorismo."

Quantos por cento Sharon é isso?

Silêncio sepulcral

O problema da cobertura da grande imprensa brasileira das reações dos judeus e brasileiros em geral ? para não ir mais longe ? às políticas de Israel é muito mais sério do que uma foto mal (ou bem) escolhida.

É o silêncio sepulcral sobre as atividades dos movimentos pacifistas que rejeitam o sharonismo assumido ou enrustido do hegemônico lobby judaico, para quem Israel está sempre certo e sempre à beira da destruição. E para quem os críticos de Israel ou estão mal informados ou são anti-semitas.

Quantos leitores gentios leram qualquer coisa, para citar um só exemplo, sobre um movimento chamado Taba ? Coalizão Brasileira pela Paz Israel-Palestina?

No mesmo domingo da passeata "pela paz", a organização, que diz reunir membros e amigos das comunidades judaica, árabe e palestina no Brasil, colocou na internet o comovente texto "Quem somos nós? E quem são eles?"

O manifesto condena o anti-semitismo e "toda e qualquer forma de terrorismo, seja a perpetrada por grupos, ou por Estados", exige a retirada de Israel dos territórios palestinos ocupados desde 1967 e apela à ONU para a retomada de negociações que conduzam à existência de dois Estados plenamente soberanos, "com ambas as capitais em diferentes setores de Jerusalém". [O endereço eletrônico do movimento é tabapelapaz@yahoo.com.br]

Há um conflito entre israelenses e palestinos. E outro, tão ou mais desigual, entre os judeus 100% Sharon, para todos os efeitos, e os judeus que lutam efetivamente "pela paz". Cadê esse último conflito na mídia brasileira?

P.S. Por falar em patrulhamento da imprensa pelos lobbies judaicos, graças ao leitor Richard Partridge, de Princeton, New Jersey, da revista The Economist, pode-se saber que a reportagem da Newsweek "Israel não é o maior aliado dos Estados Unidos" (com subtítulo "É tempo de reconhecer que os interesses de Israel nem sempre combinam com os dos americanos"), saiu na edição internacional de 8 de abril ? mas não entrou na edição doméstica do semanário, embora trate de um assunto delicadíssimo para os EUA. Ou por isso mesmo.

(*) Jornalista

Leia também

? Entre Aspas [OESP, 22/4/02]