Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Jornalismo e política", copyright Diário de Notícias, Lisboa, Portugal, 2/7/01

"Nas últimas semanas, o DN, tal como a generalidade da Imprensa portuguesa, foi percorrido por notícias sobre a remodelação ministerial, nas quais eram referidos contactos com vista à substituição de ministros e mencionados nomes de prováveis substitutos. Algumas dessas notícias, apesar de desmentidas, seriam reafirmadas pelo jornal. Perante tal quadro, são legítimas as dúvidas dos leitores sobre de que lado está a verdade, o que não se afigura saudável, quer para o jornalismo quer para a política.

Nas sociedades democráticas, a política e os media estão intimamente ligados. Os media não se limitam, hoje, apenas a reportar a actividade política. Assumem um papel de participantes activos, influenciando uma parte importante do processo político. Esta situação tem consequências várias: em primeiro lugar, os jornalistas passaram a ter posições-chave na política; em segundo lugar, essa circunstância obriga os políticos – que desejam atrair a atenção e o apoio do público – a fazer tudo para despertar o interesse dos jornalistas; em terceiro lugar, a dificuldade e o grau de exigência desses procedimentos levaram ao aumento da profissionalização da comunicação política; em quarto lugar, desenvolveu-se uma complexa rede de relações entre políticos e jornalistas.

O relacionamento entre ambos é condicionado por relações de poder decorrentes da relação que cada um tem com o público. Enquanto os políticos retiram a sua legitimidade da validade das causas que abraçam e do apoio que conseguem obter através do voto, os jornalistas são legitimados, sobretudo, através da sua fidelidade aos códigos deontológicos da profissão. A base de poder dos jornalistas é menos óbvia que a dos políticos, sendo mesmo negada por aqueles que os vêem, principalmente, como inteiramente dependentes de outros para as notícias e opiniões que divulgam, além de sujeitos a constrangimentos políticos, económicos, culturais e tecnológicos. As relações entre as duas partes são atravessadas por uma permanente tensão entre a necessidade de mútua adaptação e várias fontes de conflito.

O jornalismo político é, pois, subtil e complexo. Envolve uma apertada interacção entre políticos e jornalistas, no decurso da qual os dois lados constituem uma unidade, embora cada um mantenha os seus objectivos, a sua distância do outro e, ocasionalmente, a sua oposição face ao outro. É extremamente difícil detectar, numa notícia política, a contribuição específica que cada parte deu ao seu enquadramento. Vem isto a propósito da notícia do DN (22/6), com o título ?Guterres já tem substituto para a ministra Arcanjo? e o subtítulo ?O presidente do Infarmed foi convidado para a Saúde?, segundo a qual o presidente do Infarmed se deslocou a São Bento ?para uma conversa com António Guterres (…) e terá sido nessa altura que lhe foi feito o convite? para substituir a ministra da Saúde.

David Damião, assessor do primeiro-ministro, dirigiu-se à provedora, negando a existência quer do convite quer da deslocação do presidente do Infarmed a São Bento. Por outro lado, no dia seguinte, o DN publica o desmentido do gabinete do primeiro-ministro, mas reafirma a informação. Em ambas as notícias, a fonte não é identificada, limitando-se a jornalista a referir que se tratou de ?informações recolhidas (…)? pelo jornal. Trata-se, portanto, de uma informação obtida na base da confiança pessoal entre a jornalista e a pessoa que lhe forneceu a informação. A deontologia não proíbe a prática mas não a aconselha, a não ser em situações excepcionais, que, neste caso, não se vislumbram.

Apesar de os leitores saberem já que o presidente do Infarmed não foi a pessoa escolhida para substituir M. Arcanjo, continua por esclarecer a contradição entre a versão do jornal e a versão oficial. Ora, os cidadãos têm direito à verdade – que é difícil de atingir -, mas pode ser sempre definida pela exclusão da mentira.

Tornou-se uma prática corrente as notícias sobre a política nacional – não apenas por ocasião de remodelações ministeriais – surgirem sem atribuição de fontes e sem, sequer, denotarem qualquer preocupação em torná-las credíveis. Muitas vezes são escritas no condicional ou apresentadas como uma probabilidade, como no caso presente. O recurso às expressões ?terá sido nessa altura? e ?é o mais provável substituto? indicia incerteza relativamente às informações que a jornalista dispunha. Nesse caso, teria sido aconselhável obter a confirmação antes de publicar.

É um facto que existem situações em que não há possibilidade de confirmar uma informação cedida por uma fonte que pediu o anonimato. Muitas vezes, os próprios protagonistas das notícias são surpreendidos pela sua divulgação, dado ser suposto a mesma permanecer reservada. Trata-se, na maioria destes casos, de disputas internas de poder que levam membros dos ?círculos próximos? a fazerem divulgação de informação confidencial. Compete ao jornalista avaliar se a não divulgação dessa informação prejudica o interesse público e só em caso afirmativo deve publicá-la, informando os leitores de que o faz sob reserva. Caso contrário, gera desconfiança nos leitores e pode tornar-se instrumento de estratégias estranhas à missão de informar e ao direito do público de ser informado com rigor e transparência.

Bloco-notas

As relações entre o poder político e os jornalistas nem sempre são conhecidas do público, o que aumenta a sua perplexidade face a casos semelhantes ao tratado nesta coluna. O modelo americano de relacionamento entre a Administração e os jornalistas é um dos mais profissionalizados. Vejamos algumas regras definidas pela Casa Branca, nem sempre pacíficas para os jornalistas.

Conversas – Em 1982, o Departamento de Estado americano fez circular entre os assessores um documento onde se definiam as ?regras para conversação com os jornalistas?, ao telefone ou pessoalmente. Nele surgem quatro tipos de conversa:

  • on the record: nesta modalidade, a fonte pode ser citada pelo nome e função. É usada apenas para discursos e conferências de imprensa;
  • conversa de background: constitui a base mais comum das conversas com os jornalistas (a fonte pode descrever factos e políticas de um modo mais completo e de uma maneira mais informal do que na categoria anterior). Não são feitas citações directas e as informações devem ser atribuídas a ?fontes oficiais?, ?fontes da administração?, ?fontes diplomáticas? ou qualquer outra fórmula estabelecida por acordo com o jornalista;
  • conversa em deep background: uma base igualmente comum nas conversas com os jornalistas. Envolve a obrigação de o jornalista não usar qualquer tipo de atribuição específica naquilo que escreve, devendo o texto ser enquadrado em termos de ?é entendido como…? ou ?sabe-se que…?. Esta categoria permite à fonte uma grande franqueza, mas pressupõe que o jornalista assume a responsabilidade do que escreve, na medida em que não existe uma fonte visível para citar. Por seu turno, a fonte deve assumir, também, a responsabilidade de não confundir ou enganar o jornalista;
  • conversa em off the record: tecnicamente, significa que o jornalista não pode usar o que lhe foi dito, a não ser para preparar o seu trabalho futuro relativamente à informação que obteve. Nada de substantivo deve ser discutido off the record, pela simples razão de que nada de substantivo deve ser escondido do público.

Comparações – Os autores canadianos Ericson, Barenek e Chan publicaram, em 1989, um estudo sobre as relações de três instituições com os media: Parlamento, Polícia e Tribunais. Nesse estudo, concluíram que o comportamento dessas organizações não é uniforme. O Parlamento é a mais aberta. Segundo os autores, as organizações políticas caracterizam-se pelas relações estreitas que estabelecem com os jornalistas, através de pessoal especializado contratado para o efeito. A exposição pública processa-se de uma maneira rotineira e os media são considerados os meios mais adequados para o fazer. O distanciamento maior face aos jornalistas verifica-se nos Tribunais. Os autores afirmam que, no Canadá, não é usual, por exemplo, os jornalistas cultivarem um relacionamento com advogados e juízes do tipo almoços, conversas, etc."

    
    
                     

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