Friday, 13 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"À mercê de todos os olhares", copyright Diário de Notícias, 3/9/01

"A publicação de imagens de pessoas em situação de infortúnio constitui um dos aspectos mais sensíveis da actividade jornalística e um dos que provoca, nos leitores, reacções mais emotivas. Esta questão ganhou relevância nas últimas semanas, em virtude da cobertura televisiva do assassínio dos seis empresários portugueses no Brasil. É certo que os jornais, de um modo geral, souberam respeitar o direito à imagem, das vítimas e dos seus familiares, não enveredando pelo caminho (fácil) da publicação das imagens mais chocantes. Mas existem, também, nos media impressos, exemplos que merecem reflexão.

O DN publicou na 1.? página, dia 26 de Julho, uma fotografia mostrando uma senhora de idade, em fraldas, a ser retirada do lar onde se encontrava, em Viana do Castelo, por causa de um incêndio.

Essa fotografia provocou indignação em vários leitores, que dirigiram à provedora palavras duras contra o jornal: ?Um ultraje?, ?falta de bom senso?, ?revoltante?, ?falta de respeito pelos mais velhos?, ?chocante?, ?critérios jornalísticos miseráveis? são alguns dos comentários de L. Brandão, A. Torres, L. Rodrigues, V. Ferreira, M. Pires e L. Sá. Solicitado a pronunciar-se, o director do DN, Mário Resendes, admite que a opção foi polémica e discutível: ?Tenho a certeza de que, se por acaso a televisão transmitisse em directo o incêndio em causa, nenhum dos leitores que aqui protestam desligaria o receptor. Como não mudam de canal cada vez que a violência noutras paragens lhes invade a residência, como não protestam quando os jornais publicam imagens de violência, drama e morte nos quatro cantos do mundo; como não protestaram, por exemplo, quando uma explosão de origem terrorista destruiu um edifício nos EUA, provocou centenas de mortes e forneceu imagens _ publicadas _ de muito maior violência do que a que estava na 1.? página do DN (…). A diferença, aqui?, continua o director do DN, ?é a proximidade, um elemento fundamental nas chamadas equações de interesse jornalístico.? Mário Resendes reconhece, contudo, que ?talvez devesse (…) ter ponderado melhor a escolha, já que se sabe que a ?violência? mais próxima é sempre mais ?violenta? do que a longínqua?.

Na opinião da provedora, importa referir que a fotografia em questão não era um instantâneo incluído no filme de uma acção violenta ou de outro acontecimento do mesmo tipo daqueles que as televisões nos mostram todos os dias, mas a imagem de uma mulher idosa, frágil e dependente, desnudada e exposta publicamente, não por sua escolha pessoal mas numa situação de emergência destinada a salvar-lhe a vida.

Ao vê-la, assim, no jornal, à mercê de todos os olhares, cada leitor julgou poder reconhecer a sua própria mãe, como, aliás, é referido em, praticamente, todas as mensagens enviadas à provedora.

Essa ?violência? psicológica foi intolerável para muitos leitores.

Por outro lado, se é certo que as televisões são, com frequência, palco de imagens chocantes, também é certo que uma imagem fixa, como é a fotografia, para mais na primeira página, exposta 24 horas nas bancas dos jornais, possui impacte superior ao causado por uma imagem em movimento.

No plano informativo, coloca-se também a questão de saber qual é o lugar daquela fotografia no percurso narrativo da reportagem do incêndio. De facto, ela nada acrescenta à notícia a que reporta. Na decisão de publicar, o carácter insólito da imagem recolhida parece ter prevalecido sobre o dever de salvaguarda a intimidade da pessoa fotografada. Ora, o exercício do jornalismo não comporta apenas uma dimensão técnica e uma dimensão pragmática. Está sujeito a uma avaliação superior, que apela para uma dimensão ética. Na sua dimensão ética, a ?boa informação? tem objectivos e é orientada por valores.

A publicação de imagens susceptíveis de atentar contra os sentimentos de pessoas não é compatível com a responsabilidade da imprensa. No plano ético e deontológico, o respeito pela pessoa humana é um princípio assumido em todos os códigos.

Em Portugal, o Código Deontológico estipula que ?o jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos?, obrigando-se, ?antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas?. Recomendações sobre cautelas na recolha e uso de imagens de pessoas afectadas por tragédias, não publicação de fotografias susceptíveis de atingirem a dignidade da pessoa humana, observância de cuidados especiais no envolvimento de pessoas em hospitais ou instituições semelhantes e em situações de infortúnio ou choque, fazem parte dos códigos deontológicos dos jornalistas na Europa e nos EUA. As vítimas de infelicidades e tragédias não podem tornar-se vítimas, pela segunda vez, devido a uma cobertura jornalística que não as protege. Trata-se de precauções morais que nem sempre são respeitadas. O tratamento jornalístico de situações que envolvem sofrimento humano constitui, aliás, um domínio onde a deontologia profissional tem ainda um caminho a percorrer.

O DN habituou os seus leitores a um jornalismo de valores e de princípios. Neste caso, como refere o director, deveria ter havido uma melhor ponderação na escolha da fotografia daquela primeira página.

Bloco-notas

Auto-regulação Benoit Grevisse, especialista em auto-regulação, afirmou, numa comunicação apresentada em Lisboa, no seminário organizado pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ), no ano passado, que a maior parte dos códigos deontológicos dos jornalistas é demasiado genérica e superficial e que existe, ainda, algum desconhecimento dos princípios deontológicos por parte de profissionais. Por isso, considera que seria importante que, para além dos processos de jurisprudência, se clarificassem certas regras e se tentasse estabelecer uma formação contínua nesta matéria.

Experiências

Grevisse recordou que existem, em alguns países, técnicas de verificação da qualidade redactorial. Apontou o shinshashitsu, japonês, ou o recurso à in-house critic, de origem anglo-saxónica. Trata-se de comités internos, encarregados de conduzir avaliações e reflexões sobre a qualidade deontológica da produção jornalística. Segundo o investigador, são também usados questionários de exactidão e de equidade para avaliar se as pessoas de que se falou nas notícias ficaram satisfeitas com a maneira como foram referidas. Outra maneira de dar a palavra ao público consiste na organização de painéis de leitores que se pronunciam sobre os conteúdos do jornal. Segundo Grevisse, estes processos de recurso ao público constituem uma forma de responsabilidade social dos media.

Crítica dos media

A existência de páginas dedicadas à crítica dos media é, também, um procedimento eficaz usado por alguns jornais. As sociedades de redactores e os provedores dos leitores constituem outro tipo de iniciativas apontadas por Grevisse que, relativamente ao provedor, considera possuir limites evidentes por ter de se confrontar com a pressão dos leitores, das fontes e da redacção. No entanto, segundo Grevisse, o provedor dos leitores pode contribuir para aumentar a acessibilidade do público aos media e a credibilidade dos jornalistas.

O futuro

Na sua comunicação, Grevisse conclui que, qualquer que seja o país, a via deontológica não pode ser marcada por repetidas derrapagens. Em sua opinião, a auto-regulação só terá sentido se for pensada, aplicada e avaliada, tendo em vista o mandato democrático que legitima o exercício da liberdade de imprensa. Isto implica, também, que a deontologia não se oponha ao regime e ao controlo legais, mas que os preceda. Para o autor, se a espectacularização e a comercialização da informação deixam antever um futuro deontológico difícil, só é possível encarar qualquer proposta de auto-regulação tendo presente as condições reais de produção e a precariedade do estatuto de certos profissionais, bem como a existência de práticas deliberadamente antideontológicas. O caminho é longo e difícil."

    
    
                     

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