DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"Agenda dos Leitores", Diário de Notícias, 22/4/02
"Alguns leitores dirigem-se à provedora sugerindo temas que gostariam de ver tratados no DN, expondo as suas opiniões sobre assuntos que lhes dizem, pessoalmente, respeito e às comunidades em que se inserem. Esses leitores não propõem que o jornal retire da agenda nenhum tema em especial mas, apenas, que acrescente alguns novos assuntos. Embora essas mensagens não permitam extrair conclusões permitem, contudo, constatar que, em geral, as preocupações dos cidadãos não ocupam espaço relevante na agenda dos media.
É claro que não é habitual que um jornal, radio ou televisão, auscultem, regularmente, a opinião dos seus públicos sobre os problemas que os preocupam e que gostariam de ver tratados, por um lado, porque esses estudos, para serem rigorosos e credíveis, necessitam de equipas habilitadas e meios financeiros de vulto e, por outro, porque os próprios responsáveis pela informação não sentem, na maioria das vezes, que seja sua função fazer essa auscultação e, ainda menos, corresponder aos desejos profundos manifestados pelos seus públicos. De facto, a ideologia profissional reconhece ao jornalista a capacidade de decidir o que é, ou não, notícia e o que corresponde, ou não, ao interesse público, independentemente do que os cidadãos, ou os dirigentes políticos, pensam, ou dizem, sobre isso.
Os leitores nem sempre compreendem que assim seja e daí muitos se interrogarem sobre as razões de determinadas opções jornalísticas. De facto, apesar do avanço dos estudos sobre os media e o jornalismo é, ainda, difícil definir, de uma maneira indiscutível, as bases em que assentam as decisões dos jornalistas sobre questões como, o que é, ou não, notícia, a escolha de um título em vez de outro, a procura de fontes adicionais umas vezes e outras não. Contudo, em princípio, todo o jornalista tem interesse em conhecer os desejos do seu público, porque é ele que o premeia ou sanciona, entre outros meios, através da compra ou da rejeição do jornal. Ao contrário do que pode parecer, o jornalista não dispõe, contudo, de muitos meios para obter esse conhecimento, uma vez que as sondagens realizadas por iniciativa dos órgãos de comunicação social, quer em períodos eleitorais, quer noutros, são, essencialmente, de natureza quantitativa e destinam-se, sobretudo, a ser usadas como matéria noticiável e não como base de trabalho para outras iniciativas. Daí que se afigure de interesse a iniciativa do DN de apoiar o projecto Estado da Nação. Através dele, os leitores são convidados, não apenas a identificar os problemas que consideram mais importantes mas, também, a dar, sobre eles, a sua opinião e a propor soluções. Embora a iniciativa não se destine a fornecer informação para uso do jornal, os dados obtidos fornecem um conjunto de informações úteis sobre a agenda dos cidadãos que permitirão, ao DN, se o desejar, conferir a sua agenda com a agenda dos leitores.
De acordo com os dados obtidos o ano passado, no citado projecto, a saúde, a educação, a justiça e a segurança social foram os temas apontados como os que mais preocupavam os portugueses, sendo que, no extremo oposto, se encontravam a política, as diferenças regionais e o processo de integração europeia.
Curiosamente, a economia, agora no centro das agendas política e mediática, encontrava-se, nessa altura, juntamente com a insegurança e a toxicodependência, a meio caminho na tabela das preocupações dos leitores.
As mensagens recebidas pela provedora incidem, em grande parte, sobre temas do quotidiano, alguns dos quais se revestem de interesse geral. O leitor José Caravalhosa, num tom crítico mas construtivo, afirma que ?há assuntos que não merecem qualquer atenção do jornal, apesar de envolverem (…) inúmeras pessoas?. Aponta um caso concreto de ?legislação avulsa (…) que torna dificil a aplicação da justiça?, uma vez que ?muitas dessas normas (…) são ultrapassadas por outras, sem revogar as anteriores?. Por isso, em sua opinião, ?torna-se necessário expurgar a legislação antiquada e desactualizada, e definir os princípios que devem reger o nosso ordenamento jurídico?. O leitor gostaria que o DN ?se debruçasse sobre esta questão?.
Por seu turno, José Manuel Pavão, médico e director do Hospital de Crianças Maria Pia, no Porto, comparou as despesas necessárias à construção do novo estádio das Antas e do Hospital Materno-Infantil do Norte, concluindo que ambos necessitam da mesma quantia. ?O primeiro estará certamente construído em 2004. O segundo está agendado para as calendas?, diz o leitor, acrescentando que ?ambos são testemunho da nossa incapacidade de estabelecer prioridades e decidir sobre os verdadeiros interesses colectivos?. Outro leitor, Fernando Santos, sugere que o DN faça ?um estudo comparativo da inflação anual e dos aumentos das portagens (…), em particular a situação Bombarral-Torres Vedras-Loures?.
Independentemente do interesse jornalístico das questões colocadas por estes leitores, o que se afigura importante é o facto de elas reflectirem o desejo de um modelo de jornalismo que não se limite a ser veículo, quer das vozes oficiais, ou ?autorizadas?, quer dos interesses do mercado, apontando, antes, para um jornalismo mais próximo da ?sociedade civil?, sem prejuízo de caber, sempre, ao jornalista, o poder de decidir o que o jornal deve, ou não, publicar.
Bloco-notas
?Jornalismo público? ? Em 1995, o jornalista norte-americano Davis Merritt escreveu um livro a que chamou Public journalism and public life, que viria a servir de inspiração a um movimento conhecido como ?jornalismo cívico? ou ?jornalismo público?. Merritt partiu da constatação de que o jornalismo americano está em crise, estendendo-se essa crise á democracia. Segundo Merritt, o público desinteressou-se dos jornais e da política e o deficit de confiança entre os cidadãos e as instituições enfraqueceu de uma maneira preocupante. Merritt propõe uma mudança ?no jornalismo e em cada jornalista?, não apenas para mudar algumas práticas mas, também, para repensar o próprio papel do jornalismo numa democracia moderna. Na sua proposta de mudança, Merritt parte de algumas constatações: o jornalismo ignora as suas obrigações e responsabilidades no efectivo funcionamento de uma ?vida pública?; essa falta contribui para o declínio da participação dos cidadãos nos assuntos públicos; o jornalismo pode – e deve – ser o factor principal na revitalização da vida pública; é, pois, fundamental que existam mudanças culturais e geracionais na profissão. A perspectiva de Merritt sobre o papel do jornalismo teve seguidores nos meios jornalísticos americanos, sobretudo ao nível local, e em alguns meios académicos, apesar de ter desencadeado, também, enormes críticas.
O que está em causa ? O jornalismo cívico, ou público, propõe-se incitar os media a aproximarem-se das comunidades, de forma a envolverem os cidadãos num diálogo que conduza à resolução de problemas. O jornalismo cívico encara o jornalista como um participante activo na vida da comunidade, envolvendo-se nas suas causas e ajudando a encontrar soluções. Os defensores do jornalismo cívico põem em causa algumas das concepções tradicionais do jornalismo, tais como a objectividade e a equidistância. Segundo este modelo, o jornalismo deve, não apenas ?informar? mas, também, ?formar?.
Críticas ? Nos EUA, alguns jornalistas reagiram a este movimento de uma maneira muito crítica, vendo nele um inversão dos papéis do público e do jornalista, em que grupos organizados de cidadãos decidiriam o que é, ou não, notícia. Já o sociólogo Michel Schudson, um dos críticos do jornalismo cívico, considera que o jornalismo cívico não retira, ao jornalista, o controlo das notícias, afirmando que o movimento não oferece soluções, por exemplo, para novas formas de responsabilização dos media, nem propõe medidas como a eleição de directores e editores, ou formas de apoio do Estado como contrapartida de uma maior diversidade de pontos de vista e participação do público nos media. Shudson afirma, também, que o movimento não oferece um novo modelo, em que a autoridade esteja, não no mercado, nem num partido, nem nos jornalistas, mas no público. Trata-se, pois, em sua opinião, de um modelo conservador que não retira poder aos jornalistas."