Tuesday, 15 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Estrela Serrano

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A VOZ DOS OUVIDORES



DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Tele-realidade", copyright Diário de Notícias, de Lisboa, Portugal, 28/5/01

"Sobre os programas televisivos conhecidos por reality shows, muito foi já dito. Tema de viva polémica nos últimos dias, qualquer discussão sobre ele corre o risco de constituir o melhor contributo para a subida das audiências e transformar os críticos nos seus mais eficazes promotores.

Mas a importância do seu significado justifica os riscos.

A tele-realidade não constitui uma ruptura com os modelos de representação do humano e do social na televisão, em que um grupo de indivíduos, cujo testemunho se procura, exibe o que possui de mais singular e mais pessoal. A ?ideologia dominante? da televisão apela a uma ?humanização? das relações sociais que reflecte o espírito do tempo: desinteresse pela política e pelas ideologias, reivindicação da autonomia dos jovens, dúvidas sobre os valores tradicionais. Os reality shows são o modelo ideal para o fabrico da indiferença. Incluem pessoas anónimas, embora rigorosamente escolhidas, que não pretendem protestar contra nada; são uma justaposição de histórias singulares cortadas de qualquer compromisso político, ideológico ou social; pressupõem a liberdade de cada um fazer o que lhe agrada, para além de qualquer julgamento.

Há muito que a televisão saiu do seu espaço, para assaltar a vida real. Quer seja o psicodrama televisivo ou a informação em directo, é sempre o mesmo movimento de curto-circuito da vida real. A tele-realidade é a ?verdade? da nossa televisão e da sua lógica. O que ela nos propõe é mostrar-nos, em tempo real, o nascimento de uma sociabilidade: descobrir como é que, num sistema de constrangimentos formais – a casa fechada, o tempo limitado -, um grupo de pessoas vai construir as suas relações, donde e como vão surgir as leis, as regras de vida em comum, as relações de poder, de sedução e de desejo. Mas esta sociabilidade possui uma perversão: deve conduzir, cada um, à expulsão dos outros.

Como resistir a esta ?cena primitiva? tornada visível e acessível?

A televisão já não precisa de inventar ficções. Revela-se capaz de agir sobre o real, com a participação de cada um de nós. Os ?actores? estão à frente e dentro do ecrã. A fronteira entre o fantasiado e o vivido, o falso e o verdadeiro, o espectador e o actor, deixou de ser visível e evidente. Na ausência de limites, todos os excessos parecem possíveis. Mas não seria credível admitir que os jovens concorrentes e os seus pais (eles também participantes) não têm consciência do artifício da situação, da manipulação exercida pelos produtores e dos interesses comerciais em jogo. Não é hoje possível denotar, na televisão, uma clara distribuição de papéis com géneros identificáveis – informar, educar, distrair. Conviria perceber o que permitiu transformar o equilíbrio desse contrato informação-formação num contrato de sedução-captação de audiências. Podemos pensar que, em todos os sectores da sociedade, a valorização do eu, a personalização e o individualismo convidam o indivíduo a ser ele próprio, a usufruir ao máximo a vida, a consumir objectos e informação e a estender esse consumo à sua própria imagem e vida privada. A sedução e a preocupação com a imagem tendem a regular a vida social e os costumes. A televisão inscreve-se nesse modelo de sociedade, sendo dele causa e efeito.

O modelo português da tele-realidade não começou com o ?Big Brother?. As emissões de espectacularização ou de palavra confessional tendentes a mergulhar o espectador no universo das emoções têm antecedentes em programas do género talk shows, em que famílias separadas e desavindas se encontram e reconciliam frente às câmaras, entre cenas de lágrimas e perdão. Mas a inflação do espectáculo não é apenas apanágio dos reality shows. A realidade e a ficção misturam-se, também, nos espaços informativos: para ter imagens, o jornalismo televisivo reconstitui acontecimentos com figurantes, num autêntico processo de teatralização.

Algumas emissões da tele-realidade têm grande audiência, outras menos. E é à obsessão da audiência que o serviço público deve responder. Os programas não podem ser todos tratados segundo critérios quantitativos. O serviço público existe para propor ofertas alternativas. Cabe ao Estado proporcionar à televisão pública tornar-se nessa alternativa. Compete ao Estado apoiar a televisão pública na realização de programas que valorizem a identidade, a cidadania e a cultura, sem exigência de contrapartidas, de natureza política ou outra. O investimento no serviço público é um investimento na educação. E só através da educação se ganhará consciência de que a dignidade humana é inalienável, seja qual for o preço, muito menos a troco de uma popularidade efémera.

Determinismos económicos, modificações estruturais nos valores que outrora estruturavam a sociedade são algumas das causas da doença que parece atacar a televisão. Importa descobrir como contrariar o movimento, aparentemente imparável, em direcção à degradação absoluta, e exigir à televisão que contribua para o bem-estar da sociedade, sem cedências ao mau gosto e à baixeza.

Trata-se de um desafio que necessita do concurso de todos: operadores de televisão, profissionais – jornalistas, realizadores, apresentadores, produtores e outros -, mas também patrocinadores, anunciantes e cidadãos.

?Loft story? – O psicanalista Serge Tisseron, pronunciando-se (Le Monde, dia 3) sobre o sucedâneo francês do ?Big Brother? ? ?Loft Story? -, recusa que o programa releve do puro voyeurismo. O voyeurismo é uma perversão sexual que consiste no prazer de ver pessoas nas suas actividades íntimas, principalmente sexuais, diz Tisseron. O instrumento do voyeurismo é o quarto de dormir, ou o orifício na porta da casa de banho, e o voyeur é, geralmente, um homem. O ingrediente principal do prazer do voyeur– o sexo nu – está ausente do ?Loft Story?. Para o psicanalista, o modelo do ?Loft Story? é, antes, o da porta sempre aberta do quarto da criança, dos pais que se arrogam o direito de entrar e sair, a todo o momento, sem prevenir, de ler a correspondência e o diário dos filhos, sem estes saberem. É um voyeurismo feito por mulheres, que se reclama de intenções puras. No ?Loft Story?, diz Tisseron, prevalece este tipo de voyeurismo. As mães, sempre presentes, são convidadas pelo apresentador a mostrar que sabem tudo sobre os seus filhos. Falam dos seus filhos adolescentes e adultos como se se tratasse de crianças. É um voyeurismo parental, preocupado não com o sexo em acção, mas com ?a intimidade do coração?.

?Dispositivo perverso e máquina totalitária (…), teia de aranha imensa que liga, de uma maneira monopolística e unilateral, um conjunto de pontos de visionamento à volta de um centro – espécie de tribunal onde comparecem os candidatos, os seus pais e os seus amigos. Aí decorre uma actividade sádica múltipla: interpretar os seus actos, excluir regularmente um dos membros da casa e pedir aos pais explicações sobre as causas da rejeição dos filhos?, diz o professor de filosofia Jean-Jacques Delfour (Le Monde, 18.5.01).

?Villa Medusa? – Na Suécia, a popularidade dos reality shows leva milhares de jovens a submeterem-se a contratos de escravatura, nos quais os direitos dos concorrentes são muito restritos. É-lhes negado o controlo sobre a sua própria imagem e são obrigados a participar, sem contrapartida financeira, em campanhas publicitárias sobre os programas.
A produção tem o direito de explorar, durante três anos, o nome e a imagem dos concorrentes.

Em caso de quebra do contrato, os pagamentos são altíssimos.

?Expedição? – Também na Suécia, em 97, o programa ?A Expedição Robinson? – que deixa os candidatos entregues a si mesmos, numa ilha exótica – provocou grande polémica, após um dos participantes se ter suicidado. O programa foi interrompido, apesar do sucesso de audiências. Os restantes concorrentes acusaram os produtores de passarem imagens muito negativas, para aumentar a audiência, e de não terem sido prevenidos que seriam filmados se praticassem relações sexuais, o que lhes valeu ameaças de morte anónimas, quando o programa acabou."


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