Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Uma subtil pressão", copyright Diário de Notícias, 21/9/03

"A cobertura jornalística do processo de pedofilia continua a suscitar reacções de leitores. Francisco Santos e Marta Martins, por motivos diferentes, escreveram á provedora a propósito desse tema.

O primeiro, refere-se ao título de capa do DN, Juiz fica, que noticiava a permanência do juiz Rui Teixeira como responsável pela instrução do processo Casa Pia: a decisão só viria a ser tomada no dia 13 pelo Conselho Superior de Magistratura (CSM) mas, no dia 10, o DN já a noticiava, apontando como sua base a ?complexidade do processo? e a ?credibilidade de Rui Teixeira na opinião pública?.

O leitor Francisco Santos pergunta ?como justifica o jornalista essa afirmação? e se ?não teria sido melhor acrescentar uma expressão que tirasse o sentido decisivo da notícia?, como aliás, acontece na página interior, onde, apesar de manter o título, se acautela a afirmação com a frase ?ao que tudo indica?. O leitor considera a atitude do DN ?um desplante? e admite, entre outras hipóteses, que este tipo de jornalismo seja ?uma forma subtil de pressão?.

Por seu turno, Marta Martins afirma que ?de há uns tempos para cá, os cibernautas portugueses têm sido confrontados com (…) denúncias anónimas sobre factos relacionados com o caso Casa Pia?. Em sua opinião, essas denúncias ?não têm sido muito exploradas pelos media portugueses?. A leitora diz que ?pode compreender? essa atitude, nomeadamente por parte do DN, que ?não quererá embarcar em construções provavelmente fantasiosas de indivíduos ou grupos não identificados?. Mas, por outro lado, menciona, ?uma notícia, recentemente publicada na revista francesa Le Point ? mais tarde referenciada (…) no jornal Le Monde?, que considera ?grave, porque acusava (…) ministros?. Pergunta a leitora se ?os jornais de referência não deveriam falar do que se diz lá fora? sobre o caso Casa Pia, ou se essa revista e esse jornal são ?pasquins? que devem ser ignorados. Caso contrário, estranha ?que ninguém fale nisso?, considerando ?espantoso que publicações estrangeiras lancem essas coisas e ninguém reaja?.

Relativamente à primeira questão, o director do DN, Mário Resendes, reconhece que ?talvez o título pudesse ter sido elaborado com maior prudência?. Mas, segundo acrescenta, ?o jornal estava bastante seguro da evolução do caso, como, por sinal, se confirmou dois dias depois?. ?Nestas circunstâncias?, pareceu-lhe ?aceitável a antecipação da notícia?.

Quanto à segunda questão, o director sublinha que o DN ?procura estar seguro e suficientemente documentado do noticiário publicado?, acrescentando que, ?por maioria de razão, isso deve ser feito no tratamento de matérias de maior melindre e susceptíveis de afectarem, de forma irremediável, o bom nome dos cidadãos?.

Vejamos cada um dos casos. O facto de o DN ter ?acertado? na decisão do CSM não altera a pertinência das questões colocadas pelo leitor Francisco Santos. De facto, por mais previsível que se apresentasse a decisão do CSM, de manter o juiz Rui Teixeira ? dado o número dos seus alegados ?apoiantes? nesse órgão, como o DN referia ? e por mais seguras que fossem as suas fontes, o DN não podia anunciar, como consumada, uma decisão votada por um órgão colectivo e plural, que só reuniria para esse efeito dois dias depois. A ?notícia? do DN, não era, pois, apoiada em factos mas sim em probabilidades, pelo que o seu caracter hipotético (de previsão) devia ter sido vincado. Toda a peça possuía, aliás, um enquadramento favorável à decisão que veio a ser tomada.

De facto, quer os títulos, quer o texto e os respectivos destaques podem ser interpretados, como refere o leitor, como ?uma subtil pressão?, que não foi, aliás, exclusiva do DN.
Ora, num contexto de análise, reflexão ou comentário podem fazer-se previsões, elaborar cenários, reunir e interpretar dados, antecipar decisões, separando claramente os factos dos comentários e das análises.

Não é, todavia, função do jornalismo, constituir-se como força de pressão sobre instituições ou pessoas.

Quanto às questões colocadas por Marta Martins, elas chamam a atenção para dois aspectos: o uso da Internet como meio de veiculação, sob anonimato, de boatos e especulações, e a citação de notícias de outros órgãos de comunicação social, nacionais ou estrangeiros, sob pretexto de não poderem ser ignoradas por se terem tornado públicas.

Constitui princípio básico do jornalismo não publicar informação cuja origem se desconhece ou, em casos excepcionais, fazê-la acompanhar das reservas necessárias.
A verificação da fiabilidade das fontes é, pois, a regra, o que não significa que o jornalista não possa ou não deva investigar uma informação cujo interesse público o justifique, ainda que a sua origem não seja conhecida. Nesse caso, só se as fontes puderem ser confirmadas e a sua credibilidade comprovada a notícia deve ser publicada. De contrário, o jornalista deve abster-se de o fazer.

O jornalismo tem regras, ainda que, na cobertura do processo Casa Pia, elas sejam demasiadas vezes ignoradas.

Bloco-Notas

jornalismo de investigação ? Daniel Cornu, jornalista, professor e ex-provedor do jornal Tribune de Genève, no seu livro Journalisme et vérité debruça-se sobre o jornalismo de investigação em termos que merecem citados. Vejamos algumas das suas reflexões.

a questão decisiva ? Diz Daniel Cornu: ?Em assuntos de interesse público tão evidente como, por exemplo, as actividades da mafia e do crime organizado, o tráfico de droga e as manipulações financeiras por ele induzidas, a questão decisiva que se coloca ao jornalismo é esta: será ele capaz de obter os instrumentos de uma investigação rigorosa? Que poderá fazer se não emitir suspeitas, assumindo riscos e correndo perigos??

Provas blindadas ? ?Os jornalistas não têm meios para brincar aos polícias ou aos justiceiros. Nem é essa a sua missão?, diz Daniel Cornu. ?Mas qual é a sua margem de manobra quando a sua atenção é atraída para situações críticas e a sua própria capacidade de investigar se depara com barreiras aparentemente intransponíveis??, pergunta o autor, constatando estarem os jornalistas simplesmente desprovidos das armas capazes de lhes fornecer ?provas blindadas?. Para ?arrancar? essas provas, diz, seriam necessários instrumentos que um jornalista ?de mãos vazias? não tem: ?Escutas telefónicas, buscas, detenções, interrogatórios.? Daí que em assuntos de gravidade em que estão em jogo vidas e reputações se justifiquem todas as cautelas, acrescenta Daniel Cornu.

o campo da pesquisa ? O campo de pesquisa do jornalismo de investigação não se limita às ?faltas dos políticos?, diz Daniel Cornu. Estende-se também às empresas industriais, aos bancos, aos órgãos das associações patronais ou sindicais, ao aparelho da justiça: a todas as pessoas cuja actividade tenha interesse público e cujas eventuais disfunções sejam de natureza a atentar contra o bem geral?.

O ponto crítico ? A natureza crítica dessas investigações, afirma Daniel Cornu, é que nem sempre satisfazem as condições de transparência exigidas pela deontologia, não só perante o público mas também perante as fontes. Para o autor, é frequente que o sucesso de uma investigação esteja ligado a dissimulações, por exemplo sobre o verdadeiro objectivo da investigação. A investigação é problemática quando o jornalista se confunde com o polícia e recorre aos seus métodos ou quando é levado a denunciar e condenar pessoas sem esperar pelo julgamento dos tribunais.

O tempo e o lugar ? Daniel Cornu é de nacionalidade suíça e escreveu este livro em 1994. Talvez o tempo e o lugar do seu estudo expliquem a ausência de referência a um modelo de jornalismo de investigação ultimamente praticado em Portugal, baseado em fontes que ?libertam?, selectivamente, dados relativos a processos em segredo de justiça e ?facilitam? o acesso a testemunhas."