Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Eugênio Bucci

TV & LIBERTINAGEM

"O renegado sujeito consumista", copyright Folha de S. Paulo, 11/03/02

"As orgias descritas pelo Marquês de Sade no século 18 assustam leitores até hoje. Eram rituais que se estendiam por meses e que, não raro, culminavam com a morte dos participantes. Em Sade, o prazer exige a degradação do outro, exige humilhação, tortura e assassínio. Por isso é um prazer assustador, que deixa ver a face horrenda do desejo moderno ou, em outros termos, do desejo burguês, aquele que, levado ao extremo, conduziria à destruição generalizada. Foi mais ou menos isso que escreveram os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer, há cerca de 60 anos, num texto a quatro mãos: ?A obra do Marquês de Sade mostra o sujeito burguês livre de toda tutela?.

É verdade que o burguês que os dois filósofos viram em Sade já não existe. Hoje, um burguês livre de tutela é só uma calva pálida e uma pança túrgida. Sua tutela é seu regime alimentar, é seu programa de ginástica. O burguês contemporâneo já não tende para a selvageria, já não tem disposição para tanto. A selvageria é que tende para o burguês. Um traficante de drogas, o capitalista selvagem escarrado, este sim é que, sem repressão, poderia virar um burguês legalizado. O que não tem a menor importância. Não foi pelo sujeito burguês que Sade entrou neste artigo. Sade foi lembrado aqui em função de um outro sujeito, tão bárbaro quanto o burguês de Sade, mas que não se confunde com ele. Esse outro sujeito não emerge dos livros mais libertinos. Ele emerge da programação da TV.

Que sujeito é esse? A resposta mora na raiz do enorme desconforto moral que a TV tem gerado na opinião pública. Esse desconforto existe porque a televisão é filha dileta do desejo tanto dos programadores quanto dos telespectadores, mas nenhum dos dois lados admite esse fato óbvio. Preferem culpar-se reciprocamente pelo que chamam de ?baixaria?. Renegam o próprio desejo e, com isso, renegam o sujeito que é revelado pela televisão.

Esse sujeito é o sujeito consumista. Ele é uma colagem estética e um híbrido moral: o denominador comum de todos nós. Não é mais o burguês sádico, mas é descendente de Sade: também ele combina asco e lascívia. Ele se nutre das explosões dos filmes de ação, dos corpos de teflon que grassam na publicidade, dos acoplamentos genitais que se anunciam nos ?reality shows?. A televisão, que seduz à medida que choca e que choca à medida que seduz, é, ao mesmo tempo, o habitat e a obra mutante desse sujeito.

Do banqueiro ao proletário, do padre à prostituta, todos estão refletidos no sujeito consumista. Ele é, assim, uma perversão democrática: perversão porque busca o prazer por atalhos oblíquos, fetichistas; democrática porque representa a todos. Ele resulta do consenso, mas não do consenso das opiniões e das vontades racionais. Ele resulta de um consenso espúrio, o consenso do desejo, ou melhor, do desejo público liquefeito. O sujeito que emerge da televisão satisfaz em público as demandas que cada um do público não tem coragem de admitir nem ao espelho, mas acalenta com ardor.

Por isso é mais cômodo pensar na TV como ?coisa dos outros?, do mesmo modo que é mais fácil ?zapear? como um voyeur anônimo. Enxergar esse sujeito ali seria enxergar em nós mesmos o que há de mais fundo e de mais ameaçador na nossa precária civilização: o impulso de matar a todos, como nos filmes de ação, e de possuir tudo, como na publicidade. Assim, sendo negado e renegado, o sujeito consumista age como se não existisse. Como quem não existe, ele programa a televisão sob medida para o desejo público, esse desejo envergonhado e covarde. É um sujeito mais pusilânime que o sujeito burguês de Sade. Não obstante, é mais vasto e mais devastador. É amplo e pesado demais para caber num livro de Sade, assim como Sade é burguês e literário demais para caber na televisão. O sujeito consumista é nosso tirano invisível."

 

TV CULTURA POPULAR

"TV Cultura cede e prepara telejornal popular", copyright Folha de S. Paulo, 7/03/02

"Vai ser um marco na história da TV Cultura. No próximo dia 25, a emissora pública -cuja audiência é predominantemente das classes A e B- coloca no ar seu primeiro programa popular, uma revista que irá flertar com a classe C, donas-de-casa e aposentados.

?Vai ser uma revista popular, mas com a cara da Cultura?, diz Marco Antonio Coelho Filho, diretor de jornalismo da emissora. ?Queremos dar profundidade a assuntos exóticos e cotidianos e mostrar o que está por trás de uma notícia banal?, explica.

O telejornal, se der certo, será o primeiro de uma série de programas ?populares, mas não popularescos?, ou ?reflexivos?. A emissora chegou à conclusão de partir para esse segmento (que infestou a TV nos últimos anos e contaminou o ?padrão Globo de qualidade?) baseada em pesquisas.

?Não vamos entrar nessa porque dá audiência. É porque precisamos nos comunicar com as classes mais populares. E essas pessoas querem aprender mais?, diz Coelho. As pesquisas da Cultura mostraram, por exemplo, que donas-de-casa também gostam de política. ?Vamos tratar a mulher como uma pessoa normal, dar a ela munição para conversar com o marido.?

Segundo Coelho, a revista, que será apresentada por Ederson Granetto e Laila Dawa, tratará de temas como o caso Daniela Perez, saúde e violência, mas não irá dar dicas de culinária ou beleza."

 

CORAÇÃO DE ESTUDANTE

"Clima morno não contribuirá para sucesso de novela", copyright Folha de S. Paulo, 8/03/02

"?Coração de Estudante?, a nova novela das 18h da Rede Globo, estreou, há quase 15 dias, junto com a volta às aulas dos universitários e o trote que ocupa os cruzamentos com calouros pedindo contribuições para causas sociais.

Ainda pouco azeitada na costura de fragmentos que fizeram sucesso em outras épocas e emissoras, a primeira incursão no gênero de Emanoel Jacobina, autor com experiência em humorísticos, ainda pode esquentar.

A coincidência entre o tema da novela e o calendário escolar é literal, como outros elementos da trama do ?horário cor-de-rosa?, aquele que visa o público infantil, adolescente e feminino de mais idade. A cada um desses segmentos sociológicos da audiência corresponde um núcleo na trama. O resultado é uma colcha de retalhos nem sempre alinhavada.

?Coração de Estudante? tem um pouco de ?Chiquititas? ou ?Carrossel?: a escola primária, a professora, o recreio, uma coleção de órfãos de matizes e graus de revolta diferentes. Aqui há mistura da pieguice com atuação precária.

O núcleo dos universitários que sofrem longe de suas famílias ecoa ?Minha Doce Namorada?, sucesso do início da década de 70. O protagonista de então, Cláudio Marzo, faz aqui o papel do viúvo vilão que movimenta a parte central da trama.

O núcleo jovem, horizonte preferido das adolescentes colegiais, lembra seriados contemporâneos como ?Friends?. O que ocorre também em outras novelas, em versão não estudantil, como ?Desejos de Mulher?.

A novela começa morna como pede a prudência excessiva adotada em dias de incerteza no mercado televisivo. Mas o sucesso depende de conseguir marcar alguma novidade. E para isso a temperatura média não basta.

O conflito central que move a trama opõe um rico senhor de terras, autoritário e corrupto, e um esclarecido portador da razão, aqui, o reitor da universidade. O tema que recheia o clichê, lhe conferindo atualidade, é a ecologia.

Clara (Helena Ranaldi) encarna mais uma mulher moderna, forte e decidida. A personagem defende o projeto preservacionista da universidade. Seu encontro com Edu (Fábio Assunção), professor entendido de árvores e plantas, pai dedicado e solteiro, promete. Aqui a trama tem liga porque reúne algo mais do que o feijão com arroz que alimenta a fofoca das vizinhas. (Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP)"