Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Eugênio Bucci

TV BAIXARIA

“A revelação dos desesperados”, copyright Folha de S.Paulo, 26/5/02

“O apresentador Sérgio Mallandro, da TV Gazeta, atravessou a parede. Sua ?Festa do Mallandro?, que vai ao ar nas noites de sábado, tinha batido a cara no muro. Não tinha mais para onde ir nem para onde baixar. Era o fim da linha. Era o ?supertrash? total, era a falta de recursos, de idéias e de princípios transformada em desperdício de nada. Era o exagero da carência, a opulência da miséria, a apoteose do apoplético. Debatia-se contra a fronteira final, o limiar do impossível, a parede derradeira que nos separa do fim do mundo. E, no entanto, eis que Sérgio Mallandro atravessou essa parede. Feito um espectro. Feito uma lente objetiva. O que começa a aparecer do outro lado é o impensável e, no entanto, aparece.

O que aparece é a ?Casa dos Desesperados?, essa paródia pútrida dos ?reality shows? que hoje grassam na TV como grassam as propagandas de remédio. ?Casa dos Desesperados?, em outros tempos, seria talvez um filme do Zé do Caixão. Agora é um show comercial. O cenário é uma casa alugada. O elenco é o antielenco: um anão, um halterofilista, um travesti, um sósia de Tim Maia, um homem obeso, muito obeso, sem camisa. Ele come uma leitoa assada sem usar talheres. Come-a com as mãos. Os outros urram. Consta que todos estão mortos de fome. Boca do lixo do terror. De repente, um senhor invade a sala. Ele é grisalho, de barba idem, camisa branca, já meio para fora da calça, ainda de gravata, alguém que se diz vizinho, berrando. Quer silêncio para descansar, pobre homem irado. Igualmente de repente, o apresentador entra no meio (como é que Sérgio Mallandro foi sair do auditório e aparecer ali no meio?). Todos trocam insultos, safanões, palavrões e apitos (aqueles sinais agudos de termos censurados na fala dos desesperados). Xingamentos à mancheia. Um país se faz com fomes e lixos.

A primeira reação do telespectador é descartar a coisa logo de cara: ?Ora, isso aí não passa de uma excrescência apelativa, é tudo armação de mau gosto?. E aí vem a revelação. O lixo-realismo exacerbado de ?Casa dos Desesperados? corrói e desautoriza o pretenso realismo chique dos ?reality shows? oficiais, como os da Rede Globo. Olhe agora um ?reality show? da Globo e ele se parecerá um festival de carinhas e boquinhas fingidinhas. Aqueles rostinhos recortadinhos, aqueles bumbunzinhos moldadinhos, aqueles cabelinhos tingidinhos e aquelas confissõezinhas idiotinhas de intimidadezinhas adestradas. Sérgio Mallandro fez desmoronar essa impostura. Atropelou os competidores bonitinhos, higienizadinhos e ensaiadinhos e escancarou o que está atrás daquelas paredes e daqueles espelhos falsos. Mostrou os carregadores de fios, o maquiador subempregado, o sujeito que desentope a privada, o mendigo, o morador de rua; mostrou a periferia suja que produz as encenações globais, tão limpinhas. Pior: fez tudo isso sem querer. Ele, que só queria tirar sua casquinha, desnudou o rei, ou melhor, desnudou o realismo fingido dos ?reality shows? milionários.

Na tentativa de levar a exploração da miséria humana até seu limite mais desumano, Mallandro produziu involuntariamente uma chanchada bestial. Sua ?Casa dos Desesperados? parece mesmo um teatro mal disfarçado, tudo ali é de mentira e, mesmo assim, descortina uma verdade maior que ela mesma: todos os ?reality shows? são aquilo, nada têm de realidade, não passam de uma cartada do desespero, seja o desespero das emissoras pela audiência, seja o desespero de seres que trocam uma intimidade puída por um pingo de fama, seja o desespero solitário dos que salivam enquanto sorvem desse espetáculo pela TV. E, sempre, um desespero mediado pela falsificação. Entre todos, a ?Casa dos Desesperados?, integralmente fajuta, é a mais autêntica. Em sua incomensurável imundície, revela o que os outros escondem embaixo do tapete. Ou da saia. Ou atrás da porta de serviço.”

“Desesperados tiram Mallandro do limbo”, copyright Folha de S.Paulo, 26/5/02

Imagine um ?reality show? reunindo personagens típicos de programas humorísticos. Não precisa imaginar, isso existe. ?Casa dos Desesperados?, quadro do ?Festa do Mallandro?, da Gazeta, satiriza programas como ?Big Brother? e ?Casa dos Artistas?.

?Trash? do ?trash?, a pantomima, da qual sutileza e bom gosto passam longe, chega a dobrar a audiência quando entra no ar e dá picos de dez pontos no Ibope, colocando Sérgio Mallandro em terceiro ou segundo lugar na audiência. ?Me param na rua para comentar, falar que estão vendo. Nunca tinha visto coisa igual, é um sucesso?, diz o apresentador.

Em um apartamento minúsculo ?equipado? com uma piscina de plástico, um gay afetado, um travesti, um obeso comilão, uma garota de programa (que dá seu telefone de contato no ar), um anão, um valentão (o ?bad boy?), um gago, uma fofoqueira, um sósia de Tim Maia, um japonês e uma loira sensual (?) disputam o prêmio de R$ 1.000 e uma cesta básica.

?Tive a idéia assistindo a esses programas, ?Casa dos Artistas?, ?Big Brother?, e percebendo que nas ruas só se falava neles. Então resolvi fazer uma coisa dentro da minha realidade?, afirma Mallandro.

Além de concorrer ao prêmio final, cada candidato recebe uma ?ajuda de custo? de R$ 60 por dia de participação. Apesar de as situações do quadro parecerem excessivas, irreais até, Mallandro e o diretor do programa, José de Almeida, juram que nada é combinado.

?A gente não manda ninguém fazer nada, não há texto. Mas eu dou umas cutucadas. Chego no ?bad boy? por exemplo e falo: ?Pô, você tá quieto hoje, não arrumou confusão com ninguém. Vai lá, se solta, meu irmão’?, diz o apresentador.

As escolha dos integrantes da ?Casa dos Desesperados? foi aleatória, segundo o diretor. ?Nós pensamos em alguns perfis e saímos procurando. Sempre tinha alguém com um amigo que se encaixava e estava sem emprego?, afirma Almeida. Aliás, esse seria o principal ponto em comum entre os participantes das duas edições: pessoas sem ocupação fixa dispostas a ganhar algum dinheiro e a aparecer na TV.”

“ONGs defendem boicote a canais sensacionalistas”, copyright O Estado de S.Paulo, 21/5/02

“Diversas organizações não-governamentais decidiram fazer um cadastro de programas sensacionalistas de TV que ferem os direitos humanos, além de realizar campanha para que público desligue o aparelho ou mude de canal. O pacto firmado na 7.? Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada na semana passada, prevê o convencimento das empresas para que não anunciem seus produtos nos horários de exibição dos programas apelativos.

Entre as entidades que prometem combater a programação estão o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), o Movimento de Meninos e Meninas de Rua e a Organização Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento (Agende).

O caso mais recente foi o programa Domingo Legal do apresentador Augusto Liberato, no SBT, no fim de semana, que levou uma ?vidente? para percorrer os corredores do Carandiru, onde 111 presos foram massacrados. ?Foi um sensacionalismo barato para garantir a audiência?, classificou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Orlando Fantazzini (PT-SP).

A sensitiva Socorro Leite despejou em vários pontos do Carandiru sal grosso colorido e um líquido preparado com ervas para ?libertar as almas? no presídio.”