Monday, 07 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Fernando Gabeira

DROGAS

"Londres chama para uma conversa liberal", copyright Folha de S. Paulo, 6/8/01

"No meu tempo de adolescente, os liberais brasileiros, que hoje dirigem a economia e realizam seus sonhos de um Estado mínimo, não levavam porrada como agora.
Eram acusados, nas análises históricas, de serem liberais pela metade, de sempre chamarem a polícia política quando sentiam que sua visão de estabilidade estava ameaçada.
O caso das drogas é bastante típico daquela visão dos liberais brasileiros que trago desde menino. A revista britânica ?The Economist? publicou um excelente trabalho sobre a legalização das drogas, reafirmando, em editorial, sua já conhecida defesa de uma nova e criativa política para abordar o problema.

A mídia brasileira registrou isso. Afinal, era uma reportagem de capa, com 16 páginas e o editorial, uma cobertura não só quase completa, mas original. A mídia brasileira sabe também que jornais como o ?The Independent? defendem abertamente a legalização da maconha, enfim, que na Inglaterra a discussão está adiantada.

Mas, com raríssimas exceções, ninguém quis elaborar nada sobre o assunto. Um programa econômico de TV chegou a me contatar, mas, no fim da noite, quando íamos fazer a entrevista, resolveu que dar a notícia secamente era tudo o que deveriam se permitir.
A argumentação da ?The Economist?, de um ponto de vista político, não apresenta grandes novidades. Baseia-se em John Stuart Mill e afirma que as pessoas são soberanas para decidir sobre o corpo, desde que não produzam danos a terceiros.

A sensibilidade econômica da revista, no entanto, trouxe para exame novos enfoques, por exemplo, a análise dos preços pagos aos produtores e os preços obtidos nas ruas de Nova York ou de Tóquio e o exame das prisões nos EUA, onde negros e hispânicos, soldados do tráfico, enchem as cadeias, como acontece no Brasil.

Nessa linha econômica a revista registra algo que os pesquisadores também já detectaram: a modernização da empresa da droga, a chegada de executivos impessoais, modernos.
E conclui nesse particular que a indústria da droga, como as outras, já tem uma tradição de aprender fazendo, algo característico da competição capitalista.

No horizonte brasileiro, onde o pudor e a hipocrisia predominam, não se fala em política de drogas como decorrência de uma visão mais ampla de mundo.

O assunto ainda frequenta páginas policiais, enquetes pitorescas e debates com pastores, delegados e pais de usuários de droga. Não nego a legitimidade do tema ser discutido pela religião, pela família e pela polícia. Mas é necessário ampliar o espectro.

O curioso é que nos damos conta do debate de drogas via Londres. Na Colômbia ele é bastante desenvolvido. Se observarmos o texto da ?The Economist? com um olhar sul-americano, teríamos inúmeras novas idéias a desdobrar. A revista divide as drogas, grosso modo, em drogas oriundas de plantações e drogas sintetizadas em laboratório.

Os números sobre consumo e faturamento não chegam a desvendar o movimento inverso ao que conhecemos, isto é, o das drogas sendo enviadas de países pobres para os países ricos.

A capacidade de sintetizar alguma droga em laboratório está produzindo também um nível de exportação de lá para cá, sem que a gente fale em bombardear a indústria química deles, como se faz hoje com as plantações de coca.

Aliás, esse é um tema que o olhar sul-americano não pode subestimar. A luta contra as plantações de coca é apoiada hoje concretamente pela indústria química. As plantações são fumegadas com produtos tóxicos todo dia. Pessoas e lavouras de alimentos são atingidas, e a empresa inglesa que era sócia da empreitada, a ICI, resolveu abandoná-la, com medo de ações na Justiça.

Ficaram no negócio a colombiana Cosmo Agro e a Monsanto, que produz o Glyphosate, embora ambas já tenham percebido que a guerra química está equivocada.

Mas isso não impede que vejamos as coisas com clareza: existe uma guerra de drogas feitas em laboratório: drogas que destroem o ambiente contra drogas que alteram a consciência humana.

Os proibicionistas sul-americanos têm melhores condições de perceber a catástrofe colombiana, onde a guerra química pode passar para a biológica, com a introdução do Fusarium oxysporum, um fungo desenvolvido também para destruir plantações.

No entanto é preciso esperar que os ingleses nos iluminem com seus enfoques originais, algo que os liberais brasileiros registram sem comentários, como antigamente se fazia com um parente internado no manicômio, ou mesmo com alguém da família sofrendo de tuberculose.

Quem vai iluminar os ingleses? A ?The Economist? admite que os mais atingidos pela atual política de drogas são os países pobres e as pessoas pobres nos países ricos. Não explica como isso se dá hoje na Amazônia, muito menos por que as elites dos países pobres adotam a visão de mundo que, nesse particular, provoca inúmeros desgastes.

O pavor das drogas que alteram a consciência nos leva a considerar normal destruir a saúde dos camponeses, matar as plantas e esterilizar lavouras de alimentos. E concluir, como fez a Monsanto, que a composição química não era a melhor para atacar a coca.

Quando visitei a Colômbia no meio da década passada, voltei carregado de livros sobre a política de drogas. Se um país latino-americano vai dar um passo para dialogar com os liberais, tudo indica que serão eles.

Aqui a gente ainda não relaciona adequadamente violência com comércio de drogas. Ou então acha que, prendendo os meninos do morro, está acabando com o tráfico de drogas. A cada um o seu barato, diria Stuart Mill. O dos proibicionistas é esse."

    
    
                     
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