Tuesday, 10 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Galvão, o inesquecível chato do penta

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Intelectuais, de maneira geral, são chatos, pretensiosos, donos da verdade e, sobretudo, arrogantes. Na qualidade de ardorosos defensores da teoria da conspiração, costumam identificar nos porta-vozes das manifestações populares indícios claros de manipulação da opinião pública. Enquanto o povão se desarvora em explosões dionisíacas de puro júbilo, acomodam-se na visão apocalíptica que ameaça qualquer excesso com o castigo do fogo do inferno.

Gostaram do nariz-de-cera? Pois é, voltou à moda, renovado, depois que a chatice do lead asséptico e sem sabor deu lugar a textos mais relaxados e criativos. Pois é com esse que eu vou sambar até cair no chão. Nariz-de-cera, para quem não é do ramo, é a forma antiga e romanceada de se redigir o início de uma notícia. E me servi dele para desancar os intelectuais antes das considerações ligeiras que pretendo fazer sobre a atuação de uma figura bastante conhecida do povo brasileiro: o narrador esportivo Galvão Bueno.

Dentre os muitos pecados que facilmente me empurrarão para a condenação eterna, tenho um particularmente grave: gosto do Galvão. Até porque, de todos os narradores que tenho acompanhado, é um dos mais autênticos e apaixonados. Na grande maioria dos casos, tratando-se da narração propriamente dita, Galvão é péssimo. Ou lhe falta sorte. Porque, em raríssimos casos, quando pretende nos fazer crer que o jogador tal saiu com a bola dominada, nem bem acaba a frase e a gente vê que estava com bola dominada coisa nenhuma. Morro de rir quando chama o Arnaldo César Coelho para tentar induzir um julgamento: "Foi falta clara, falta pra cartão, não foi, Arnaldo?" E Arnaldo, compreensivo como se estivesse diante de um menino empolgado que perde o senso crítico: "Foi não, Galvão, foi não, foi lance normal."

Em compensação, o Galvão tem carisma e empatia, essa inexplicável capacidade de sair da posição de narrador pra se sentar na poltrona, lá na casa da gente, pra fazer as mais prosaicas e absurdas observações. Observações que provavelmente faria o Zé da padaria ou dona Almerinda que está ali na cozinha mexendo a panela do feijão. Meus alunos conhecem a urticária que me acomete diante de um lugar-comum. Brincando, costumo dizer que cada lugar-comum num texto pra tevê durante os exercícios de aula corresponde a um ponto a menos na nota final. Mas sei reconhecer a importância de um bordão quando é criado e empregado no lugar exato e na hora certa. Até hoje é emocionante lembrar Geraldo José de Almeida gritando seu "linda, linda, linda, que bola bola!" na narração da copa de 70. Brevemente teremos saudades do "não é brinquedo não" de Dona Jura, assim como os mais antigos lembramos com carinho do Lilico na Tupi tocando aquele tambor e cantando "tempo bom, não volta mais… Pra cá com esse negócio". Da mesma forma como vamos sempre nos emocionar ao ouvir o mesmo Galvão narrando os finais de corridas de um certo "Ayrton Senna do Brasil!"

Os bordões são a alegria do povo. Certo, não são criativos, mas, que diabo, quem disse que o povão quer sempre a criatividade? Às vezes, para o povão, mais importante é a identificação imediata, o sentimento de partilhar de uma mesma faixa de compreensão da realidade, de se irmanar no previsível, no testado e aprovado. Por isso, quando a comediante de hoje garante: "eu só digo uma coisa quando eu tenho certeza", repetindo o que outras comediantes já disseram no mesmo quadro desde que o humor chegou à televisão, 51 anos atrás, ela apenas está dizendo ao público: "O tempo passa mas a gente continua se entendendo." E, assim, o bordão funciona como uma espécie de âncora segura para a ausência de criatividade. Até mesmo criadores natos como os Cassetas, que viraram o humor nacional pelo avesso com suas sátiras impagáveis, renderam-se à técnica do bordão, quando criaram um personagem grosseiro que, por qualquer coisa, ameaça: "Vou dar… porrada!"

A chamada crítica intelectualizada mete o cacete nas narrações do Galvão, todo mundo tirando uma casquinha, seguindo o caminho do intelectual empedernido que faz ares de pouco caso diante da seleção dos canarinhos mas fica roendo as unhas atrás da porta. Até um site chamado "Nós odiamos o Galvão" foi criado para, pretensamente, difamar o narrador. Outro dia, uma colega, também ela uma ácida crítica do Galvão, abriu o site e começou a ler a lista de bordões repetidos por ele nas narrações da copa. Foi muito divertido, todos na redação rimos muito. A visita ao site foi feita em tom de crítica mas, em vez de funcionar como condenação, vi ali a consagração do narrador esportivo mais popular do Brasil. Da mesma forma como o consagram todos os dias os que vão aos jogos com cartazes do tipo "Galvão, ó eu aqui!". Ou mesmo aquele torcedor que levou um cartaz onde aparecia só o "Galvão" e, ao perceber que estava sendo focalizado pela câmera, mostrou o resto, onde se lia: "…tu é muito é chato!", deixando Galvão Bueno encabulado e tendo de comentar, sem jeito: "O povo brasileiro é assim mesmo, sempre brincalhão…"

Bem antes do monopólio de transmissão pela Globo ? que, a bem da verdade, deveu-se exclusivamente ao desinteresse de outras emissoras pela aquisição do mesmo direito, comercializada a peso de ouro pela Fifa ? Galvão já era um narrador consagrado. Costumo brigar com ele durante as transmissões, já o chamei de burro e chato várias vezes. Mas, entre participar da onda dos intelectuais de nariz torcido e o senso comum, fico com o senso comum do torcedor humilde que se emociona com o drama do "menino Ronaldinho". A situação me lembra a piada do bêbado que chamou a mulher de feia e ela reagiu: "Pois o senhor é um bêbado." E ele completou: "É, mas amanhã eu tô bom…"

Provavelmente, Galvão seja hoje o maior chato do Brasil. Só que, daqui a alguns anos, vamos nos lembrar dele e de seus bordões com a mesma saudade devotada a um inesquecível Geraldo José de Almeida. Os intelectuais, tal como a mulher da piada, amanhã vão continuar chatos, e talvez ninguém se lembre mais deles. Já o Galvão, quem era mesmo o Galvão? Ah, sim, aquele chato da copa do penta, aquele que gritava "Rrrrrrronaldinho!" Lembro, sim. Êh, saudade…

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>