Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Gramática do show

M.M.

 

D

uas categorias diferentes se confundem no fluxo televisivo das redes abertas: informação e show. São inextricáveis.

O Jornal Nacional pratica a mistura várias vezes por edição.

Uma notícia propriamente dita desagradável costuma ser contrabalançada por uma feature, uma reportagem de gaveta, sobre assunto leve ou prosaico. Chaplin. Você chora, depois você ri. A vida continua.

Na segunda quinzena de março, a genialidade chapliniana com que são dosados os ups and downs do Jornal Nacional mergulhou no grotesco. Reportagem: cães fila estraçalham numa fazenda do Paraná um garotinho filho de lavradores. Contraponto: reportagem sobre cãezinhos maltratados, com direito a preleção de um integrante da Sociedade Protetora dos Animais.

É a vida, dirão jornalistas-filósofos versados em ontologia. O show da vida.

É a edição, diremos nós.

Um teste interessante é comparar Jornal Nacional (20h às 20h30, mais ou menos) com Em Cima da Hora (21h às 21h30), da Globo News. No dia da morte da criança atacada pelos cães, a Globo News não editou nenhuma reportagem sobre maus-tratos a cães, para “refrescar”. Deu a notícia propriamente dita seguinte, e ponto.

A Globo News não chega a ser uma Brastemp: medidas de economia na contratação das equipes.

Uma entrevista de Alvin Toffler a Tamara Leftel, num programa Conta Corrente de maio de 1997, reprisado várias vezes, foi legendada. A horas tantas, Toffler refere-se a Henry Luce, patrão do grupo Time-Life. Na legenda lia-se “Henry Loos”. Sim, sim. O tradutor não conhecia história do jornalismo. Mas ele identificou algum “Henry Loos”? E ninguém mais leu as legendas antes de pôr no ar a entrevista (gravada)?

Em 25 de janeiro de 1998, o papa João Paulo II falou horas numa praça de Havana. A Globo News transmitiu ao vivo sem um mísero comentário em off, que os apresentadores não se sentiram capazes de fazer. Nada mais monótono. Nada mais contrário aos padrões globais de edição.

Mas é uma emissora voltada para a informação. Por isso também não se aventurou simiescamente até o zoológico de Brasília.

Fazer o cotejo cotidiano entre as duas emissoras equivale a uma aula sobre o que é jornalismo (bom ou mau) e o que é outra coisa.

Provavelmente foi a esse contraste que se referiu Lillian Witte Fibe em entrevista a Renata Lo Prete, ombudsman da Folha de S. Paulo, reproduzida no número 41 do OBSERVATÓRIO:

“Pelo que sempre ouvi dos especialistas, no jornalismo de TV o importante é a credibilidade. Empatia é fundamental nas novelas e na linha de shows.”

Importante é a credibilidade, claro, ninguém dirá que não, mas essa palavra se acomoda em zonas de sombra do pensamento.

No futuro, jovens poderão aplaudir o enterro de seus pais. Terão visto muitos enterros gravados pela Rede Globo antes de terem a infelicidade de ir a um pessoalmente.

No presente, crianças americanas (e brasileiras) matam colegas em escolas, repetindo violências que vêem o tempo todo.

 

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