Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

I – O triunfo da “imagem”

Mauro Malin

 

E

m primeiro lugar, ponhamos na cabeça, caro leitor: a lógica do tempo televisivo é regida pela busca de índices de audiência.

Não se trata prioritariamente de entender, nem de explicar. Trata-se de vender.

Jornal Nacional, 17/6. Contemplam-se tomadas aéreas da dizimação de um cardume de sardinhas por tubarões famintos, na Austrália. “A violência da natureza”.

Adiante, outra violência selvagem, a de rapazes cariocas de classe média – treinados em violência pela mídia e pela escola e pelos pais e pelos bandidos e pela polícia e pela academia de jiu-jitsu -, após a vitória da seleção contra Marrocos. Também é só mostrada, longamente, com timing de espetáculo. Informação parca: “Zona Sul do Rio”. Paralelo automático: “Hooligans brasileiros”.

Só mostrar, nada de tentar entender. Repassa-se mudamente a perplexidade.

O Globo, jornal, deu “Bala perdida na Gávea e menina ferida por morteiro nas comemorações da vitória do Brasil”. Em ínfimas três linhas e meia no pé, a bagunça juvenil carioca – na Avenida Ataulfo de Paiva, Leblon.

Na TV Globo, a “imagem” triunfou pela enésima vez. Uma bala dentro de um apartamento e uma criança de dois anos atingida no berço, em Bonsucesso, por um morteiro – metade do corpo queimado, internada em estado grave – não mereceram referência. Nem em off. Assim como não se noticiam mais atropelamentos, a não ser os espetaculares.

Homem, etapa muito ligeiramente superior, quase indistinta, na evolução dos animais? Que se danem a cultura e a civilização?

Claro que não. Só na televisão. No modo circense.

Mas até que ponto a televisão passou a ser vida real?

Leiam a intervenção de Artur da Távola no 10° Fórum Nacional, nesta edição do O.I. (ver abaixo). Trecho:

“A normalidade praticamente é banida da notícia. E este fato, que faz parte da luta intrínseca pelo mercado (porque o mercado se acostuma, sobretudo via televisão, com a necessidade de graus de espetáculo que possam açular sua natural ânsia de participação) tende a tornar a notícia enquanto espetáculo o critério dominante do que se divulga“.

 

Que importância tem a submissão da informação à espetacularização televisiva?

Toda. Significa que existe cada vez menos jornalismo na televisão. E o pouco que existe é cada vez menos relevante, do ponto de vista do tempo e da importância que lhe são concedidos.

Num país de poucos leitores, o peso da televisão é tremendo. Mas a questão não se esgota aí: o formato televisivo remolda os outros veículos (os que são lidos pelos relativamente poucos leitores), porque as empresas, com as raras exceções de praxe – notoriamente a Gazeta Mercantil, que é, entretanto, um jornal especializado -, perderam o foco, copiaram Assis Chateaubriand, alienaram sua identidade de empresas jornalísticas e concebem-se como empresas tout court, o que não são, ou não deveriam ser.

Se a corrida é para o entretenimento, lá vão elas. Se é para o cassino telefônico do 0-900, também vão. Se é para as telecomunicações, idem. (Algumas diversificações não se generalizam: o Estadão imprime listas telefônicas; a Folha tem ou tinha um aviário; o JB, uma revendedora de veículos; Roberto Marinho tinha a geléia de mocotó Imbasa, cujo anúncio servia para colocar calhaus – tapa-buracos para espaços publicitário não vendidos – nos veículos da casa…)

Demoramos a perceber que o jornalismo ficara doente na televisão, e que esse jornalismo enfermo estava sendo crescentemente adotado como padrão fora dela.

 

Tudo errado

 

Boni, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, precisou de mais de três décadas para descobrir, em primeiríssimo lugar, que não quer mais ser empregado – nem do Dr. Roberto Marinho! -, e sim patrão. E, em segundo lugar, para descobrir que “é preciso rever a TV como um todo”, “como conteúdo, como veículo de entretenimento e de informação e comercialmente. Até a veiculação de comerciais na TV está superada, porque segue modelo dos anos 60.” (Entrevista ao Estadão, transcrita no Entre aspas; ver abaixo).

Explicação (uma entre várias, a que mais interessa aqui):

Pelos telejornais, a TV encarregou-se de levar para a casa das pessoas um volume de informações e de cenas reais tão grande e brutal que é preciso rever a TV como um todo.”

Boni, claro, omite sua decantada contribuição tropical para essa trajetória.

Já o entrevistador de Boni esqueceu-se de estabelecer claramente a participação do entrevistado no desenvolvimento da Rede Globo à sombra da ditadura militar. Os leitores devem estar acostumados: é um dos esquecimentos mais lembrados da imprensa brasileira. Só que no texto do Estadão Boni quase se transforma em herói da luta contra a ditadura. Paulo Maluf há anos tenta a mesma coisa ao situar o início do fim da ditadura em sua vitória na convenção da Arena paulista de 1978 – imaginem a qualidade doutrinária, política e moral dos heróicos convencionais arenistas…

Mas é bom que Boni, agora liberto dos vínculos empregatícios, fale. Quanto mais falar, melhor. Pena que tenha falado tão pouco nos últimos anos: é um dos que mais entendem do assunto.

E faz uma denúncia relevante, embora baseada na premissa insubsistente de que “anunciante sempre quis qualidade”:

Com o 0-900, estabeleceu-se um terceiro poder: o sujeito joga na TV, que passa a prescindir do anunciante, que exigia qualidade. Se tenho um cara me dando dinheiro, não preciso do meu anunciante. Perdi um dos controladores da minha qualidade. Perdi o cara que exigia que o programa fosse bom ou até que tivesse audiência. Isso é insuportável. É uma avalanche de carros sorteados na TV. Está em tudo quanto é lugar: no intervalo da novela, no meio do telejornal, no meio do jogo, é realmente desagradável.”

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Em tempo: Boni saiu porque perdeu a coordenação do jornalismo da Globo. Está dito na entrevista e explica toda a briga interna pelo poder.

 

As dimensões e o formato de uma colher de sopa correspondem a uma experiência longamente adquirida pela humanidade. A colher é uma medida que funciona – com alguma adaptação, facílima – para qualquer ser humano.

Os títulos de um jornal, a despeito de terem plasticidade bem maior do que a de uma colher de sopa, não correspondem à necessidade de informar, nem à de se informar. Correspondem a uma escolha industrial remota, de tecnologia antiga, que se plasmou no formato das páginas de jornal.

Nos títulos sempre se pratica uma simplificação. Às vezes com precisão e talento de artesão, geralmente sem uma coisa e outra, só técnica industrial. O mesmo se dirá das notícias. E do tamanho das equipes encarregadas de obtê-las. E dos recursos disponíveis para isso. E, conseqüentemente, da seleção de notícias praticada diariamente por qualquer meio de comunicação.

O tempo da televisão não corresponde ao tempo em que transcorre a vida das pessoas e se produzem os acontecimentos. Mesmo das pessoas que têm horários coletivamente organizados, e ainda que, no Brasil, o horário do Jornal Nacional tenha sido ele próprio fator de organização social do tempo.

A televisão tem um tempo próprio de preparação e de veiculação da notícia. Se desabar um prédio em frente à redação de uma emissora, o noticiário continuará seu fluxo até que seja possível organizar a entrada no ar da notícia do desabamento. O desabamento, que interrompe a vida de quem mora no prédio ou passa pelo lugar ou vai prestar socorro, não interromperá a emissão de uma cascata grotesca sobre macacos apaixonados num zoológico.

O rádio tem como acompanhar o tempo de ocorrência de alguns fatos, mas é o primo pobre dos meios de comunicação brasileiros – praticamente desprovido de reportagem. Em todo caso, uma emissora de rádio pode receber um telefonema credível, confirmar a notícia e colocá-la no ar imediatamente em seguida. Este atributo do rádio é pouco explorado no Brasil, porque seus horários, aqui, são vendidos para outras finalidades.

A colher de sopa é ajustada a uma realidade anatômica e fisiológica mediana, mas os formatos jornalísticos, não.

A recíproca é verdadeira. Quando o Jornal Nacional dedica digamos, oito minutos à derrota da seleção brasileira para a da Argentina no Maracanã, seus espectadores, por dedução tácita, tendem a considerar o fato relevante para a vida nacional. Ele o é, de fato. Mas de uma forma muito mais rica e complexa do que a transmitida na televisão. Entretanto, é em formato televisivo bisonho que se acrescenta à teia do imaginário nacional.

Assim, os meios de comunicação não “refletem” a realidade. Eles a conformam. Essa lição elementar deve ser repetida mentalmente de seis a oito vezes todo dia pelas pessoas que pretendam conservar sua lucidez.

Sim, há reciprocidade. Quando Ayrton Senna morreu, a comoção popular nas ruas superou toda e qualquer expectativa dos meios de comunicação. O povo pautou a cobertura, que começou burocrática, para variar – antes isso, porque ultimamente a cobertura burocrática tem sido bem melhor do que a “criativa”, fenômeno que tem explicação cultural, em sentido lato -, e se foi ampliando e prolongando até refletir o tamanho da comoção.

Há reciprocidade também na apreensão democrática da linguagem televisiva. Ou, em linguagem chã, “o povo não é bobo”.

Boni, o catedrático, propõe mudar tudo. E flores furam o asfalto.

 

Durante o jogo contra Marrocos, em 17 de junho, um repórter da TV Globo em São Paulo foi ao Vale do Anhangabaú, onde um telão transmitia o jogo para o povão (fenotipicamente mais próximo dos jogadores em campo do que dos jornalistas e seus chefes, para não falar do corpo diplomático nacional). Foi provavelmente fazer a bolorenta cascata de praxe, mas teve um momento de iluminação.

Ao tentar entrevistar um cidadão que assistia o jogo, não obteve dele nem um olhar, nem uma palavra. Recusa ríspida, incomum nesses casos, porque todo mundo costuma ficar em estado de graça quando há uma câmera da Globo nas redondezas.

Incomum, mas não isolada. Em Brasília, semanas antes, um pobre ladrão, depois de passar a noite entalado nas grades da janela da casa que ia roubar, trocou o que seria uma “entrevista” patética por uma reprimenda: “Estou numa situação dessas (cansado, algemado, de calção) e você ainda fica aí”.

Voltemos ao Anhangabaú. Nova tentativa, e outro homem diz ao repórter, secamente: “Você está é me atrapalhando”. A um terceiro, o repórter pergunta se ficaria “dois segundos de costas para o telão”. Nada feito.

E a reportagem foi “arredondada” na redação, com texto em off acompanhando o samba comemorativo da vitória: “Depois do jogo, ficar de costas para o telão não foi problema”.

Mil vezes parabéns à Globo por ter editado, no horário nobre do Jornal Nacional, as três recusas de “populares”, documentário tão expressivo sobre a mudança em ato das relações do povo com a televisão.

Extraordinário acontecimento na vida de nossas retinas fatigadas.

 

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Mídia criticada no 10° Fórum Nacional

José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Entre aspas