Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Investigação ou espetáculo

CASO TIM LOPES

Gilson Caroni Filho (*)

A execução, com requintes de crueldade, do jornalista Tim Lopes deve, além das justas manifestações de indignação, suscitar posturas reflexivas que ultrapassem a óbvia constatação de que, no Rio de Janeiro, o Estado perdeu considerável terreno para o poder paralelo instalado pelo tráfico. O resgate do poder público é imperativo.Mas nãatilde;o será obtido por petição de princípios ou sofismas de ocasião.Mais que nunca a radicalidade na análise viabilizará a ação política sensata.

Não há fronteira visível entre um tráfico brutal e uma sociedade civil inocente. Pensar dessa forma revela má-consciência pequeno-burguesa, preguiça funcional e preconceito classista. Concentrar as taras de uma formação social no varejo que satisfaz as suas demandas é exercício de oportunismo político, falsa lamúria de quem, no fundo, pretende manter uma ordem que o jornalismo investigativo de Tim Lopes incomodava tangencialmente.

Se a imprensa, de fato, deseja preservar liberdades civis ameaçadas pela ação do narcotráfico, deverá mudar seu foco investigativo. Se, como atividade cidadã, objetiva zelar pela cidadania e pelo fortalecimento do Estado de Direito, terá que contrariar interesses dos que se encastelam no atacado. Que sejam acionadas câmeras ocultas nos saraus onde se tecem considerações sobre as condições de fronteira e a melhor aplicação do mercado. Decerto, pela mudança classista do universo investigado, a tenacidade ética terá, muitas vezes, que se sobrepor aos interesses econômico-políticos das próprias empresas jornalísticas. Talvez muito se perca em fonte e anúncio, mas nada que se compare ao ganho democrático do empreendimento. Possivelmente o desmonte do Estado paralelo comece com a descoberta do seu Banco Central, onde o "risco-Brasil" não só é palpável como cheirável.

Além do baile funk

Desnudar a lógica do tráfico talvez seja assustador. Não por suas leis cruéis e ordenamento autoritário. Isso é intrínseco a qualquer atividade ilícita. O que talvez horrorize o homem comum seja a similitude do cálculo frio com que são tomadas as decisões de extermínio com as estratégias macroeconômicas dos gestores do mercado legalizado institucionalmente. É bom lembrar que 11,5 milhões de desempregados atendem aos interesses dos dois setores. Para ambos a vida humana é um mero indicador que cerceia a otimização do lucro. Mantidas as devidas proporções e os limites óbvios de uma analogia, o núcleo do varejo está para as organizações multilaterais de crédito assim como Elias Maluco para uma autoridade econômica de país periférico. Por qualquer viés, um Adam Smith "mais chapado" abençoaria os dois.

Não repercutir demandas meramente repressivas é outro golpe que o jornalismo pode infligir aos interessados na anomia reinante. Criminalizar o usuário é o alimento que o tráfico solicita. É o que lhe dá sentido e empresta funcionalidade. Políticos e personalidades que engrossam o coro conservador são, talvez sem o saber, os reprodutores das condições solicitadas pelos narcotraficantes. Abrir espaço para os que se disponham a discutir essa conexão é prestação de serviço público.

Como pedagógico seria mostrar ao jovem usuário que seu sorriso cúmplice quando ouve o espocar dos fogos anunciando que sua mercadoria chegou não é travessura sem conseqüências. Não há inocentes na barbárie. Nela, Elias não é profeta, mas corvo voraz.

Essa é a única homenagem possível que o jornalismo brasileiro pode prestar a Tim Lopes. Superá-lo na amplitude dos objetivos. Transpor as imagens de um baile funk que, a rigor, só deveriam interessar às autoridades policiais, e aprofundar a análise sobre as condições subjetivas e objetivas que viabilizam o crime organizado. Que o tornam chamariz para curtas e intensas "carreiras" de jovens perversamente incluídos na lógica social dominante. Ou a imprensa assume essa postura ou nivela Tim a seus algozes como ingredientes de um mesmo espetáculo macabro. Em linha direta com a conivência velada de quem finge denunciar.

(*) Professor-titular da Facha, Rio de Janeiro