Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ivson Alves

TIM LOPES, ASSASSINADO

"De retórica, culpas e responsabilidades", copyright Comunique-se, 16/6/02

"Era esperar demais que não acontecesse num país em que o jornalismo foi confundido com polemismo até tão pouco tempo, mas, de qualquer maneira, irrita profundamente (chega a dar um certo engulho) o fato de a discussão sobre o assassinato de Tim Lopes estar seguindo direto para o terreno pantanoso da retórica. O centro da disputa é se a Rede Globo teve ou não culpa pelo suplício e morte de seu profissional.

Como em todo enfrentamento baseado em palavras, o grande perigo é que os conceitos fiquem nublados e/ou distorcidos e o foco da discussão seja ou reduzido demais ou tão ampliado que, em ambos os casos, o essencial seja perdido de vista. Obviamente, isto só ocorre quando alguém força a barra para atingir este objetivo. No caso, parece que isto está realmente acontecendo, mas, quem sabe fazendo um esforço, a gente consiga dar clareza a algumas idéias e, assim, manter o olho na bola, evitando ser enganado por quem nos quer driblar.

O conceito básico deste pega-pra-capar retórico é o de culpa e ele foi explicitado pela primeira vez quando um colunista do JB abordou a possibilidade de se inculpar a Rede Globo pelo, na época, desaparecimento do Tim (ainda não havia sido confirmada sua morte). O fato de esse colunista guardar imensa mágoa das Organizações Globo por ter sido demitido em 98 pelo Globo não tira o mérito do elemento que ele levantou. Um dos pontos mencionados pelo colunista do JB era que o uso da microcâmera incentiva o jornalista a se passar por espião e não se apresentar como profissional da imprensa, o que, segundo o colunista, facilitaria a confusão entre o jornalista no exercício de sua função e um colaborador da polícia, tornando-o alvo.

No afã de defender a empresa sob ataque, a direção de jornalismo da Globo contra-atacou argumentando que seria absurdo apresentar crachá de jornalista para bandidos. Uma resposta correta, mas que acabou tendo sua força diminuída porque em, sua nota oficial, a Estrela da Morte diz que não reconhece os bandidos como soldados de países em guerra e nem mesmo como guerrilheiros, o que os descredenciaria para serem interlocutores de negociação e ainda invalidaria a tese da existência de uma guerra no Rio.

O problema com esta argumentação é que a Globo – e outros veículos do grupo – já negociaram sim com bandidos em outras ocasiões. Exemplo que me vem à cabeça: um bandido chamou, através de seus advogados, toda a imprensa do Rio para dar uma coletiva a fim de desmentir que tivesse cometido o crime hediondo da época. Até hoje me lembro da imagem da Globo que mostrava o sujeito indo embora da coletiva de moto. Isso para não falar de fitas mandadas ao ar depois de negociadas com quem as tinha obtido ilegalmente. O crime era diferente? Sim, em grau, mas não em essência. Afinal, crime é crime.

Mas a grande contradição deste argumento global apareceu mesmo depois. Ao notar que sua principal estrela estava sendo jogada no canto do ringue, o Império voltou atrás e aceitou a idéia de que realmente há um ?estado paralelo? no Rio de Janeiro. O Império raramente é atacado, e assim, nas raras vezes que isso ocorre, acaba reagindo mal. Desta vez não foi diferente e a falta de sutileza com que foram editados o Globo Repórter de sexta, dia 16, e o caderno sobre o tráfico no Rio, deste domingo, dia 18, demonstraram que, mais que peças de jornalismo que procuram retratar uma verdade inquestionável e antiga – e que só parece ter sido percebida pelo Império agora, após o sacrifício de Tim – são mesmo peças de defesa em um possível processo. Posso tranqüilamente vê-las sendo usadas pelos advogados imperiais para jogar a culpa do que aconteceu – um cidadão que apenas trabalhava sendo brutalmente morto por bandidos – no Estado. Este seria o verdadeiro culpado pela morte de Tim Lopes.

Só que aí, ao admitir que há um estado paralelo que domina alguns lugares do Rio, o Império acaba abrindo a guarda em outro local. É que, na verdade, não estamos aqui para discutir de quem foi a culpa pelo que aconteceu. Para mim, esta é a única coisa clara em todo o caso: o culpado da morte de Tim Lopes foi Elias Pereira Santos, o Elias Maluco. Não é isso que devemos discutir. O foco é outro: é sobre quem teve responsabilidade objetiva pelo fato de Tim ter caído nas mãos de seus algozes e como impedir que algo semelhante ocorra novamente.

Este é o ponto que nós, jornalistas, não podemos perder de vista, dentro desta nuvem de retórica, na hora que formos discutir a questão nos eventos promovidos em conjunto pelo Sindicato do Rio e pela ABI – o Encontro Jornalismo e Segurança, dia 18, das 10h às 14h, na sede do Sindicato, no Centro, e no Fórum Tim Lopes Nunca Mais!, marcado para o período entre 15 e 19 de julho, na sede da ABI, também no Centro.

Temos a obrigação de definir procedimentos objetivos que devem ser cumpridos quando formos fazer matérias de risco (também não está em discussão não fazê-las. Nossa profissão deixaria de ter razão de ser sem elas, como lembrou Carlos Nascimento no Globo Repórter). Temos que criar mecanismos para definir em que casos imagens e/ou fotos são realmente essenciais para ilustrar (atenção para o verbo) o que dizemos. Quando o forem, como serão obtidas? Com que equipamento? Que tipo de proteção os repórteres terão quando estiverem em campo? Quem estará responsável pela segurança deles (segurança aí não só no momento da ação como também um sistema de checagens e alarmes para serem acionados em casos de emergência)? O jornalista poderá se recusar a fazer uma matéria de risco caso sinta que as condições de segurança não são ideais e não sofrer nenhuma represália se o fizer? Haverá necessidade da criação de uma ?editoria de P2? ou a formação de um grupo de 007s? Se houver, como, e com que critérios, será feita a seleção dos profissionais que o comporão? A que tipos de treinamento serão submetidos os escolhidos? Quem os treinará, peritos em segurança privada, ex-agentes de serviços secretos como o Mossad, o MI5 ou a CIA? Eles assinarão matérias? Aparecerão no vídeo? Freqüentarão a redação? Afinal, quanto menos conhecidos forem, mais seguros estarão para exercer o seu trabalho. (Estas últimas idéias são fruto de (mais) um surto paranóico, mas que botei aqui para não deixar nenhuma possibilidade de fora).

Mas não é só em casos de investigação excepcional como a que fazia o Tim quando foi morto que se deve tomar precauções. (Aquela nota do Sindicato publicada pelo Globo diz que aquilo era trabalho de rotina, mas ninguém vai me convencer que subir morro sozinho de noite para investigar tráfico em baile funk seja como ir cobrir jogo no Maracanã num domingo ensolarado…). Que equipamentos uma equipe de TV, de rádio ou de jornal deve levar quando for cobrir uma manifestação de rua, especialmente nos limites dos ?estados paralelos?? Com coletes à prova de bala ou não? Se sim, que tipo de coletes? Não seria interessante criarmos um manual de sobrevivência para repórteres nos moldes do que é distribuído pelos Repórteres Sem Fronteiras aos correspondentes de guerra, já que, agora, todos concordamos que estamos trabalhando como correspondentes de guerra, como constatou o grande Jorge Martins, do Globo, no Globo Repórter?

Como você vê, tem um monte de coisas a serem discutidas para que a morte do Tim não tenha sido em vão pelo menos para nós, seus colegas. Não vamos nos deixar engabelar por belas palavras ou por grandes ideais. Afinal, Elias Maluco e seus iguais não estão nem aí para eles.

P.S.: Quando leu a coluna assinada por um grande colunista no Globo de sábado, Andréa, escandalizada, pensou de pronto: ?Será que foi encomendado??. A dúvida se devia à defesa que o tal colunista – e escritor de sucesso, inclusive com um livro falando sobre as duas cidades que compõem o Rio – fazia da TV Globo, apelando, retoricamente, até para uma comparação de Tim com Jesus Cristo (o bispo não deve ter gostado…) e para uma lacrimogênea ?família jornalística?. Ele protestava contra a indelicada procura de responsáveis dentro da ?família? por membros da própria ?família?.

Disse pra Andréa que ele não precisava ser instado a defender o Império. Como um soldado de Elias Maluco sabe o que deve fazer se encontrar um X-9 no morro, o colunista sabia qual era a sua obrigação para com o seu ?capo? neste momento.

P.S do P.S.: O pessoal da Academia que gosta de análise de discurso tem um prato cheio nas edições citadas do Globo Repórter e do caderno do Globo. Coisa para virar comunicação em congresso da Intercom ou semelhantes."

 

"O risco dos ?acordos? no jornalismo investigativo", copyright Comunique-se, 18/6/02

"O jornalista Tim Lopes, assassinado por traficantes no Rio de Janeiro, pode ter sido vítima deste trágico destino por um motivo único: deixou de cumprir um acordo feito com os marginais, ?o que, no trabalho de qualquer repórter investigativo, especialmente na área policial, geralmente constitui erro imperdoável e passível de execução sumária?. A avaliação é do jornalista Ilson Lima, repórter deste setor que, pela dedicação talvez excessiva a algumas reportagens delicadas e perigosas, acabou sendo demitido do jornal Estado de Minas, por pressões diretas da secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais.

?Em algumas matérias mais arriscadas, às vezes este tipo de trato é essencial. Já participei de vários, mas sempre com a firme determinação de nunca ferir a ética profissional e de cumprir, ao pé da letra, tudo o que prometi às outras partes, fossem policiais ou bandidos?, assinala.

Ilson admite que estes entendimentos, ?seja com marginais ou detetives?, devem ser criteriosos, pois inevitavelmente acarretam riscos imprevisíveis. ?Não podem existir pretensões a heroismo no jornalismo investigativo. Temos que saber exatamente com quem estamos lidando e o terreno que vamos palmilhar?, prossegue. Para ele, a segurança do repórter tem os seus limites ?e as empresas só nos garantem até certo ponto. Quando a coisa fica feia, geralmente nos abandonam. Sofri isto na própria pele?.

Ilson Lima foi demitido do EM após um telefonema da secretaria de Segurança de Minas à diretoria do jornal. Na época, ele fazia uma série de reportagens abordando casos de corrupção na polícia civil, a chamada ?banda podre? da corporação, em 1999. No ano anterior, havia feito a cobertura de uma chacina de três menores por policiais. ?Só um carcereiro, peça menor do esquema, foi condenado. Mas todos os jornalistas que participavam da cobertura foram afastados?, completa.

?Tim Lopes deve ter feito alguma combinação com os traficantes e certamente não cumpriu todos os detalhes?, continua Ilson. ?Seja o protagonista da reportagem um marginal ou um político, acho que se deve respeitar, no trabalho jornalístico, aquilo que consideram como a sua privacidade, ou seja, algo que não convém a eles tornar público?, comenta. Ele salienta também que nesta missão todos os limites definidos têm que ser considerados, ?mesmo que, geralmente, tenhamos uma irreprimível vontade de extrapolar. Talvez isto tenha ocorrido com nosso infeliz colega carioca?.

Para Ilson Lima, os riscos da reportagem investigativa são igualmente assustadores quando o profissional ?lida com bandidos ou com policiais? e garante, inclusive, que, em Minas, não foram poucas as vezes em que a polícia lhe propôs acordos em troca da liberação de informações. ?Fui afastado do jornal exclusivamente devido às retaliações policiais, que vieram primeiro em forma de ameaças por telefonemas ou recados de terceiros. Ao final, um dos diretores do EM chegou a ser abordado por delegados, pedindo a minha demissão?, diz.

Na rebelião da Polícia Militar mineira por melhores salários, em 1997, ele publicou documentos confidenciais da corporação. ?Foi o que bastou para que setores da oficialidade cobrassem do jornal alguma providência contra mim?, acrescenta.

?A reportagem investigativa não pode terminar por causa destas retaliações, pois é essencial para a sociedade, especialmente no Brasil, onde a corrupção e os desmandos são comuns nas altas esferas do Poder?, avalia Lima. ?Mas os repórteres, mesmo não transigindo, devem ter consciência de que estão trafegando em um terreno minado. Somos frágeis e qualquer falha ou ingenuidade pode resultar em tragédia. No meu caso, foi a demissão. No de Tim Lopes, a morte?, afirma.

Ele cita ainda uma experiência pessoal que teve na questão dos acordos com bandidos. ?Certa ocasião, há alguns anos, fazia uma matéria sobre tráfico de drogas no Triângulo Mineiro. Consegui localizar um dos chefões de uma gangue na região e propus-lhe uma entrevista. Ele concordou mas expôs suas exigências: não queria, sob hipótese alguma, que sua identidade fosse revelada para a polícia. Concordei e conversei com ele, que estava usando óculos escuros e roupas extravagantes, para disfarçar. O sujeito falou o que quis e publiquei tudo. Mais tarde, foi preso e alegou que minha reportagem havia sido paga por ele. Mas, como o texto foi parar na CPI do Narcotráfico da Assembléia Legislativa, acabou negando tudo. O nome fictício que dei à figura era ?Formiga?. E continuará sendo, para sempre. Ele confiou no repórter?, confessa.

Revela também que não são poucos os casos em que repórteres foram ameaçados pela polícia em Belo Horizonte, ?seja de forma ostensiva ou velada?. No episódio da rebelião da PM mineira, Lima informa que chegou a ser realizada uma reunião secreta de oficiais, para decidir que providências deveriam ser tomadas para impedir a publicação de suas matérias, todas explosivas, inéditas e comprometedoras.

?Acordos no trabalho de investigação jornalística geralmente são inevitáveis, mas os vínculos entre as partes devem ser bem delimitados. Conforme o temperamento de um dos componentes do trato – gente do lado de lá, naturalmente – o rompimento de uma cláusula pode significar espancamento, tortura e até morte. E isto vale tanto para os homens da lei como para os fora da lei. Afinal, se a principal preocupação de um repórter deve ser a matéria, nada impede que ele cuide também um pouquinho de sua própria pele?, conclui."