CASA DOS ARTISTAS
"Joguinho do mal", copyright No. (www.no.com.br), 15/11/01
"A parada, bróder, a bicudice que rola, é a Casa dos Artistas. Não há outro assunto. ?A gente está aqui se resolvendo a nossa vida, a nível de coisa, para não ter mais esse stress?, resumiu Alexandre Frota esta semana para Nubia Olivé. Os nomes são esquisitos, os diálogos deploráveis. Mas o futebol não anda melhor. A decoração dos shoppings para o Natal, então, nem se fala. Casa dos Artistas, mas pode me chamar de Casa da Mãe Joana do SBT, deu de 40 a 26 no último Fantástico. Avança cruel sobre a novela das oito, de que já ganhou na segunda-feira. Junto com a classificação dos pernas de pau do Felipão é a notícia da semana. Há quatro décadas a novela da Globo era mais sólida que o Pão de Açúcar, mais firme que os seios da Luma. Novos tempos. Casa dos Artistas é a novela que Sílvio Santos sempre sonhou aprender produzir e não conseguia. Quem vê Pícara Sonhadora percebe. O homem do baú é ótimo para fazer o aviãozinho voar plácido e depois cair feito um airbus sobre a platéia. Mas não entende nada da chamada tele-dramaturgia. Trancando seus brucutus e suas taliboas num casarão paulista, Sílvio Santos escapou do que não sabe: criar boas histórias, escalar diretores competentes, elencar atores de primeira. Deixou tudo por conta dos ambição humana, seus baixos instintos e incrível capacidade de se revelar mais sórdida a cada ?parada?. Os personagens podem até ser lamentáveis em sua cafajeste grosseria e palavreado. Mas, passado o susto de ver o Taiguara se coçando e a Nana Gouveia se aplicando desodorante íntimo, percebe-se agora que há uma nova novela no ar. Melhor: os personagens são reais. Melhor ainda: são quase todos bandidos.
Casa dos Artistas é um bom programa de televisão. Não se discute mais se Sílvio Santos roubou a idéia, não se lamenta mais a que ponto descaminha a humanidade gerada pelas siliconadas da revista Sexyway em seu cruzamento com os homens eréteis da G Magazine. ?A nível de? TV, como diria a Mari Alexandre, a coisa funciona. Os técnicos do SBT, que não sabiam editar imagens de novela com uma seqüência natural, inibidos talvez pela imensa superioridade da Globo no assunto, são co-roteiristas junto com os artistas. Vão colocando em ordem as muitas tramas paralelas que surgem espontaneamente da Casa. ?Vou dar uma enquadrada no Supla?, anuncia Frota para um dos seus parceiros. Corte. E Frota aparece num tête-à-tête com Supla, tentando ser plácido na voz para contrastar ainda mais com os músculos disformes. Quer que Supla entenda direitinho a ameaça de morte que está recebendo. ?Mermão?, diz Frota, ?espero nunca me decepcionar contigo. A gente está compondo uma parada?. Supla, pequeno, magro, parece tatibitate, medroso, diante do grandalhão. Mas pode estar, como diz a Núbia, fazendo ?o joguinho do mal?. Apareceu uma mesa de pingue-pongue esta semana. Mas foi por uns cinco minutos apenas. O joguinho do mal é o grande esporte da Casa. ?Essas meninas ficam pagando esse sapinho de fudidonas?, desdenha Supla em mais um momento de maldade e reinvenção da língua, outro esporte em voga entre os artistas.
O SBT conseguiu fazer finalmente a novela mexicana tão a seu gosto, com personagens reais e sem pagar o mico-sapinho de sempre. Outro dia, Supla, menino das melhores famílias de São Paulo, deu uma enquadrada em Taiguara, preto, pobre, que já andou pelos Estados Unidos lavando prato. Supla, punk de carteirinha, não gostou que Taiguara tirasse onda de representante das periferias. O preto-pobre chorou e se disse humilhado com a bronca do filho da prefeita. Bárbara, uma atriz gaúcha, também se diz pobre, sem dinheiro para pagar o aluguel, e órfã de pai e mãe desde a infância. Chora-se. A Televisa deve estar morrendo de inveja com o dramalhão. Nas mãos de um roteirista do SBT isso não só soaria ridículo como, diriam todos, improvável. Pois é tudo vida real. Supla e Barbara estão namorando. Ou, como diz a arqui-vilã Núbia, ?fingimento, marketing?. Não importa. Supla seduziu a moça e foram para a cama. Bárbara diz para as amigas que está vivendo uma paixão. Alexandre Frota, com a pensamento-bruto em bruto que o notabiliza, dá outra enquadrada em Supla: ?Tu vai querer que eu acredite que tu vai transformar ela na sra. Suplicy?? Supla, que até o capítulo anterior se passava por homem de alma feminina, na roda com os parceiro riu debochado e abriu o jogo canalha inerente à espécie: ?Claro que não, ô meu! Mas o bom é não falar nada, ô meu! Tô tirando uma onda, ô meu!? Mateus pede cuidado e reforça a misoginia boçal no quarto dos garotos: ?Essas mulheres já são chatas antes de dar, imagina depois.?
As novelas da Globo passam por um evidente impasse criativo. Os diretores, preocupados principalmente em cumprir os prazos industriais, não imprimem mais um cunho autoral. As tramas, repetitivas, apostam tudo no exotismo dos cenários e costumes muçulmanos. Casa dos Artistas traz novo formato para o gênero. Quando um talibã maluco, que tem a cara que o Caetano teria se a Paula Lavigne não tivesse cruzado o caminho do baiano, derruba as torres em Nova Iorque, não dá para pensar em outra coisa: a vida real está superando qualquer ficção. É o que o SBT, de um modo geral, está tentando mostrar. Os burraldos do Show do Milhão, os miseráveis do Ratinho e agora o que vai pela cabeça de quem gastou a maior parte da vida esculpindo músculos ou, como fez Nana Gouveia dia desses, passando creme amaciante no bumbum. As torres do império global balançam. Raul Gil já batia em Luciano Huck aos sábados e Faustão vem sendo humilhado há meses por Gugu. Na Casa dos Artistas tem muitos halteres e apenas dois livros. Um, trazido por Supla, ?Mate-me, por favor?, conta a história do movimento punk – e Silvio Santos cuspindo na lei do direito autoral não é outra coisa. O outro livro, peça de fino toque irônico, foi colocado pela produção do SBT e apareceu dia desses sendo folheado por Alexandre Frota. Conta a história dos 50 anos da televisão no Brasil e é assinado por ninguém menos que Bôni, o construtor, e síndico por muitos anos, das inabaláveis torres da programação global. Numa próxima edição Bôni vai ser obrigado a colocar um capítulo especial sobre a Casa dos Artistas e o resultado desse famigerado, mas esperto, ?joguinho do mal?."
"Cobaias em nome da fama", copyright Folha de S. Paulo, 18/11/01
"Se daqui a três semanas você encontrasse a atriz-modelo Núbia Ólive numa fila de banco faria confidências a ela? Compraria um carro usado do Alexandre Frota? Convidaria Marco Mastronelli para almoçar? Depois de acompanhar o angustiante cotidiano na ?Casa dos Artistas?, não é difícil responder a essas perguntas.
Personagens de uma novela real, cuja audiência emparelhou com a da trama fictícia de ?O Clone?, da TV Globo, os integrantes do programa do SBT provavelmente ainda não se deram conta de que, ao saírem da mansão, terão se revelado e exposto de uma forma irreversível perante a opinião pública.
?As expressões da pluralidade humana afloram nesses momentos?, analisa a psicóloga Henriete Morato. ?O comportamento tem sempre dois registros, o consciente e o inconsciente, e este último se projeta nesse tipo de relação grupal. É a condição humana: os mais educados demoram mais para perder a classe, mas também perdem?, afirma a educadora e também psicóloga Rosa Maria Melloni.
Para ela, a capacidade de suportar uma situação de confinamento grupal forçado é variável e a agressão física, previsível. ?Se durar muito, eles vão sair no tapa?, acredita Rosa Maria, que lembra as experiências com camundongos em laboratórios. Agrupados num espaço restrito, eles se devoram. ?Como experimento de psicologia, seria interessante, mas não como uma brincadeira de TV. Acho humilhante para todos que estão participando?, diz.
O professor de História da Cultura da USP Marco Antônio Guerra concorda. ?Com o passar dos dias, as máscaras vão caindo, eles vão regredindo ao estágio animal, com reações cada vez mais primárias?, afirma.
Essa tese pode explicar, por exemplo, a insegurança dos participantes da ?Casa?, que já não confiam em mais ninguém, nem naqueles com quem, no início, identificaram alguma afinidade. O ?pacto? de Núbia com Frota, algo como a aliança Hitler-Stalin, é emblemático: os dois combinaram que se ajudariam, mas, na verdade, um não acredita em nada do que o outro diz. Ambos estão se sabotando pelas costas.
Guerra credita a grande audiência ao fato de o público gostar de entrar na intimidade de gente conhecida. ?Essas revistas que exploram as desgraças dos artistas estão no mesmo plano?, diz.
Henriete Morato acha que o voyeurismo alivia o telespectador da prisão de seu cotidiano. ?A linha entre o público e o privado está muito esgarçada hoje em dia. Os participantes, em geral, são pessoas humildes que se prestam a tudo por mais um minuto de fama, pela chance de sair do anonimato da existência?, afirma a psicóloga.
Ela se diz bastante incomodada ao assistir ao ?reality show? do SBT. ?É como ver uma luta livre ou uma briga de galo, um espetáculo de sofrimento que permite ao espectador não pensar no espetáculo do cotidiano, do qual ele é personagem real.?
Outra psicóloga, Ana Cristina Limongi França, diz que, ao olhar pelo buraco da fechadura da ?Casa dos Artistas?, o público ?sente um prazer invertido? ao ver pessoas em situações em que ele, público, não gostaria de estar. ?Se nos filmes pornográficos se pode sentir prazer vendo o prazer dos atores em cena, no caso desse programa existe o deleite com o sofrimento alheio.?
Marco Antônio Guerra, no entanto, vê uma diferença entre ?Casa dos Artistas? e o ?No Limite?, da Globo. ?Acho o programa do SBT, pelo menos, mais honesto do que o ?No Limite?, que também é mundo cão só que disfarçado pelas belas paisagens e pela suposta competição. ?Casa dos Artistas? é horrível e não tenta disfarçar isso.?"