Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo, publicidade e parcerias perigosas

PESQUISAS DE OPINIÃO

Ivo Lucchesi (*)

A exemplo do que já foi desenvolvido em artigos anteriores, seguramente, nas origens da imprensa, não estava contabilizado, sequer por leve suspeita, e menos ainda por resíduo de vontade, um flerte entre a prática jornalística e o reino encantado da publicidade, seguido da quase sempre tendenciosa "pesquisa de opinião", pelo não menos deformador "método por amostragem". A fratura gerada por essa crescente união fez, entre outras coisas, encolher o sonho de a imprensa potencializar a circulação de algo que pudesse efetivamente contribuir para a qualificação do corpo societário, em níveis eticamente democratizantes.

Eis que o impulso empreendedor, com sabor de aventura e rasgo de heroicidade, da belíssima profissão (jornalismo) que o Ocidente acabara de inaugurar, ainda sob intensa contaminação de nobres ideais, foi invadido pelo acirramento de demandas, fruto da marcha voraz ditada pela Revolução Industrial.

Ciranda dos negócios

De pronto, a avalanche de mercadorias, determinante para a intensificação da atividade comercial, fundamento do ideário capitalista, encontrou, no novo veículo da informação e do conhecimento, a fresta que faltava aos olhares dos sequiosos negociantes. Daí, tem início o assédio crescente para a fixação de uma ponte eficientíssima entre "produto" e "público", disto resultando inevitavelmente um "discurso" que materializasse a intermediação: a "publicidade", palavra derivada obviamente (e não por acaso) de "público / publicar".

Nesse novo cenário, tinha início a perda da inocência do jornalismo autônomo e, por extensão, do jornalista independente, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, a cumplicidade indesejada, alimentada por verbas publicitárias cada vez mais atuantes, servia para expandir o setor industrial de comunicação, bem como a profissão de jornalismo. E tudo se foi transformando num grande negócio, sob o regime da permuta de interesses. O parque midiático foi alçado à condição de "eficiente vitrina" para a exibição do "mundo", deixando o alvo inicial da "consciência" para associar-se à longa dinastia do "capital". O que deveria gerar aumento de "massa crítica" produziu, na verdade, "massa consumidora", consagrando a "confraria" entre comunicação e sociedade de consumo.

A invenção da mídia eletrônica, a reboque do advento da fotografia e, em seguida, do cinema, foi a pedra de toque para sacramentar e realimentar o processo. A publicidade, por excel&ecircecirc;ncia, vampirizadora de linguagens, recebera poderosíssimo incremento: imagem e movimento. Mais uma força a desestabilizar o vigor da palavra. Perda também tiveram o espaço impresso para alongamento de matérias, em função da territorialidade ocupada pelos anúncios, e o tempo eletrônico para a duração dos comerciais. Enfim, começara o reino do capital a subtrair, do corpo societário, o pensamento e, com este, a esvair-se a expressão do autêntico desejo e da identidade. A linguagem, por fim, demonstrava também ela não ser plenamente uma criação humana confiável. O gênio do mal se apoderara da sede do pensar e do sentir.

O discurso publicitário, somado à ideologização do discurso político, bem inspirou Roland Barthes ao sentenciar que


"A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva /…/" ((BARTHES, Roland. Aula. p.12).


O mesmo autor arremata:


"(…) a língua, como desempenho de toda a linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer" (op. cit. p.14).


A linguagem e o fascismo

Com o intuito de melhor compreender-se a frase de Barthes, é necessário alertar que o "obrigar a dizer" não se dá por ato impositivo explícito e sim por meio de um processo sugestivo indireto. Para tanto, implementa-se uma rede discursiva integrada, cuja missão é formular e difundir informações e propaganda em larga escala, até a "verdade" afirmar-se "naturalmente" nas consciências majoritárias (ou expressivas) da população.

É de fundamental importância reconhecer a estratégia descrita no parágrafo anterior, por exatamente residir nela o aparato com o qual o fascismo, dotado de propósitos e ideário totalitários, pareça democrático, visto que vai em busca do apoio da massa. O fascismo, portanto, não é perigoso porque reprime; o fascismo é terrível porque recalca. Com o poder da linguagem e de seus respectivos veículos, a estratégia fascista silencia subliminarmente a consciência original dos seres, sobredeterminando-lhes a consciência oficial. Como conseqüência, o sujeito pensante é transformado em sujeito pensado, tudo precedido pelo tom alarmista e difusor de instabilidade para a vida dos cidadãos (desemprego, violência, terrorismo, epidemias, catástrofes são alguns temas apropriados). Ou seja, prefiguram-se crises deflagradoras de tensões sociais que, como atesta Jacques Juliiard em O fascismo está voltando? (Vozes, 1997), invertem o sentido real, insinuando que as vicissitudes sociais crescentes decorrem da debilitação da democracia, em vez de o estado crítico ser atribuído à implantação de um modelo econômico, sob orientação de uma razão perversa.

Pesquisa e opinião pública

De início cabe salientar que nada é um mal em si mesmo. Nada de novo a esse respeito. Afinal, já na Antiga Grécia, sabia-se que do próprio veneno se extrai o remédio, o que semanticamente revelava a palavra phármakos. Assim, pesquisa de opinião é, como tantos outros, um instrumento de sondagem a acusar, num dado recorte, inclinações, tendências, cujo perfil também pode, por inúmeras razões (sérias ou fúteis), alterar-se radicalmente. Até aí, tudo é aceitável. Todavia, nas últimas décadas (e ainda mais no Brasil), a prática indiscriminada e a freqüência desenfreada na exploração midiática desse instrumento já confirmam preocupantes desvios éticos de efeitos até levianos.

Com a ignorância reabastecida pela ingenuidade de que grande parte da população brasileira vem padecendo e demonstrando, "pesquisa" e "opinião pública" têm merecido, da parte da grande mídia e de alguns setores acadêmicos, sob o respaldo de um jargão difuso (cientista social / analista de mercado e derivados), intenso e fervoroso abrigo.

Desde o século 19, reflexões em torno da eficácia e da inutilidade das aferições são propostas. A título de resumo a envolver a controvérsia sobre o tema, há pelo menos dois bons ensaios: o de Jürgen Habermas (Comunicação, opinião pública e poder) e o de Herbert Blumer (A massa, o público e a opinião pública), ambos, ao lado de outros, reunidos na tradução brasileira de Comunicação e indústria cultural, sob organização de Gabriel Cohn. Igualmente importante o volume Teoria da cultura de massa, organizado pelo teórico Luiz Costa Lima. Outros estudos presentes em vários escritos de Theodor Adorno e Max Horkheimer focam as paradoxais angulações que desembocam, na realidade atual, numa atmosfera suspeita, quanto aos que do instrumento se beneficiam para a perpetuação do "modelo" que lhes é rentável e cômodo.

O grave fator a pesar contra os métodos de aferição diz respeito basicamente a fazer passar por ciência o que efetivamente não o é. Se é verdade que um mísero recorte de 2000 consultados (e às vezes se restringem a 800) tem a capacidade de revelar o que mais de 170 milhões pensam a respeito de qualquer coisa, então oficializemos o processo e pronto. O pior, porém, ainda é a transformação de tal aferição ridícula em percentuais, terminando tudo em manchete de primeira página, com dizeres dessa ordem: "72,8% aprovam ( ou desaprovam)…". O que nasce nada além de mera consulta passa a notícia. Isto não é pesquisa e menos ainda é jornalismo. Na verdade, é puramente um inaceitável estelionato revestido de legitimidade oficial. Não há democracia que se sustente, calcada em práticas fraudulentas, principalmente quando tais métodos são fartamente aplicados e divulgados para um público que dá sinais de evidente fragilidade intelectual e crítica.

Quanto à opinião pública, tantas vezes invocada para o que outros em nome dela querem dizer ou fazer, requer que se pense em algo: "opinião pública" sem o apoio do que lhe dê efetiva visibilidade se torna "entidade". Como alguém pode usar a expressão "clamor público", sem atos públicos? A campanha pelas "Diretas-já", os movimentos de rebeldia civil que ora se dão na Argentina são demonstrativos de uma efetiva opinião pública. Porém, sem manifestações concretas a respeito do que for, como se pode aferir? Ou também para tal fim são empregados os mesmos instrumentos por "amostragem"? Se é assim, pesquisas de opinião (além do que acima já foi caracterizado) não passam de procedimentos deturpadores e fictícios para propósitos antidemocráticos. Em outros termos, trata-se de "ferramentas fascistóides". A opinião pública organizada precisa urgentemente fazer-se ouvir por todos aqueles que supostamente em nome dela se pronunciam.

Enfim, o presente artigo quis problematizar algumas questões que, não enfrentadas pelos segmentos responsáveis, contribuirão progressivamente para a falência de si mesmos. O jornalismo, como importante sustentáculo da democracia, deve uma resposta ao quadro que se delineia, passo a passo, no horizonte cinzento da vida brasileira. É prudente não se adiar profunda e honesta autocrítica, a fim de não prosperar o mero ressentimento inútil e inercial.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV.

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I.L.