Sunday, 06 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

José Álvaro Moisés

QUALIDADE NA TV

ASPAS

NOVA EMISSORA

"Por que uma TV de cultura e arte?", copyright Folha de S. Paulo, 4/04/01

"O Ministério da Cultura está criando a TV Cultura e Arte, com o objetivo de valorizar e de difundir a cultura brasileira. Além de homenagear a enorme riqueza dessa cultura, abordando todas as suas linguagens, trata-se de cumprir uma decisão do Congresso.

A lei n? 8.977, de 1995, que disciplinou o funcionamento das TVs a cabo, criou as TVs Senado, Câmara, Universitária e as TVs comunitárias para ampliar a oferta de programação de qualidade aos telespectadores. Soma-se a elas a TV Cultura e Arte.

A iniciativa do Ministério da Cultura atende também a uma das principais finalidades das leis de incentivo à cultura. Além de assegurar o direito de expressão cultural da sociedade, por meio do apoio a artistas e criadores, quer garantir que os bens culturais produzidos com recursos públicos cheguem aos mais amplos setores da população, como preconiza a Constituição.

Com efeito, considerando que o mercado não assegura por si só uma programação de qualidade nem abre espaço para os valores culturais locais ou regionais na mídia eletrônica, o legislador quis criar a possibilidade de as comunidades, as universidades, o Legislativo e os órgãos públicos de cultura e educação -nas três esferas administrativas- oferecerem uma programação inovadora e alternativa, capaz de resgatar temas que têm pouca atenção dos canais comerciais, a exemplo da música popular de raiz, do teatro, da dança etc.

Por isso, além de difundir a massa de produtos audiovisuais realizados nos últimos seis anos com o apoio das leis de incentivo, a Cultura e Arte quer levar aos telespectadores verdadeiras pérolas de todos os tempos de nossa cultura. Grandes exposições de artes plásticas, concertos e shows, filmes e livros feitos com recursos públicos -e o patrimônio artístico e a cultura popular fomentados- farão parte da programação. Um público mais amplo poderá vê-los e avaliar os seus custos e benefícios.

Ao permitir que artistas e produtores realizem em liberdade os seus projetos, as leis de incentivo à cultura pretendem democratizar o acesso da população aos bens públicos, cuja significação não se restringe à importância econômica, como na criação de empregos e riquezas, mas se refere a processos fundamentais de formação de identidade e de auto-estima dos cidadãos -a formação de cidadania requerida pela democracia.

O direito dos indivíduos de participar da sociedade exige que o Estado reconheça a legitimidade da diversidade cultural e das múltiplas identidades formadoras da nação. Mas esse direito só se realiza plenamente se o público, a começar pelos formadores de opinião, tiver conhecimento adequado dos fundamentos de sua cultura. A participação cívica requer, portanto, o reconhecimento, pelos cidadãos, de suas identidades. E a difusão da cultura é um dos fatores mais fundamentais para isso.

Esses são os pressupostos da TV Cultura e Arte. O Ministério da Cultura, por isso, está programando, para as 16 horas semanais com que iniciará as suas atividades, a apresentação de uma enorme variedade de documentários culturais, vídeos e filmes sobre as diferentes áreas da cultura e das artes -e, inclusive, da cultura estrangeira.

No caso brasileiro, os programas tratarão das matrizes formadoras de nossa cultura, de suas expressões regionais, da música erudita e da popular, das artes cênicas, da literatura, do patrimônio histórico, artístico e cultural e do cinema -expressões de uma sociedade multicultural que se integra em seus símbolos e em suas artes, gerando sonhos, coesão social e solidariedade. O cinema brasileiro tem papel central aí.

Só uma simplificação grosseira sustentaria que isso pode fazer concorrência ao Canal Brasil. Enquanto ele está no ar 24 horas por dia, a Cultura e Arte será transmitida por duas horas, de segunda a sexta, e por três, nos finais de semana; sua programação de cinema ocupará apenas a noite dos domingos, exibindo clássicos brasileiros e estrangeiros. É uma fraude vergonhosa afirmar que tal programação prejudicaria aquele canal, a menos que ele se considere incapaz de resistir à programação experimental da nova TV, que, aliás, no médio e no longo prazo, se apoiará na produção audiovisual independente.

Só uma concepção privatista esconderia o fato de o governo ter investido, por meio das leis de incentivo à cultura e do Orçamento, mais de R$ 452 milhões na produção cinematográfica, nos últimos seis anos. É patético, portanto, chamar de ?expropriação do direito dos produtores? o dever de exibição pública, sem fins comerciais, de filmes beneficiados por incentivos fiscais. É patético mas, sobretudo, é antidemocrático e contrário ao interesse público.

É necessário mais debate público sobre tudo isso, o que independe da criação da TV Cultura e Arte.

Mas a reação à criação de uma TV pública dedicada à difusão cultural é um exemplo típico de reacionarismo, de sobrevivência de corporativismo privatista e de subserviência a interesses que pouco têm a ver com a defesa dos valores da cultura brasileira -dos quais, aliás, é defensora a grande maioria dos cineastas brasileiros.

(José Álvaro Moisés, 55, é secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura, professor associado de ciência política da USP e autor de ?Os Brasileiros e a Democracia? (Ed. Ática), entre outros)"

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