Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Justiça Eleitoral e imprensa: a difícil neutralidade

Carlos Alberto de Salles (*)

 

A

relação entre imprensa e Justiça Eleitoral não é das mais fáceis. Nem sempre uma satisfaz a expectativa da outra e o relacionamento acaba marcado mais pela conflituosidade que pela cooperação. Um passo importante para a pacificação entre elas é a compreensão do papel de cada uma delas em uma sociedade democrática.

A Justiça Eleitoral foi concebida como uma resposta institucional para a solução das acaloradas disputas eleitorais de nosso país. Diferentemente das funções normais do Judiciário, a ela foi outorgada a tarefa de promover a realização dos pleitos democráticos do país, envolvendo atividades de caráter verdadeiramente executivo, características de outros segmentos da organização estatal.

Certamente, a missão de conduzir os processos eleitorais no país foi outorgada ao Judiciário, mais do que por suas qualidades, pela inexistência de outra alternativa possível. Não é sequer imaginável, no contexto brasileiro, marcado por uma longa história de fraudes e manipulações eleitorais ? por certo ainda não totalmente eliminadas ?, permitir a condução do processo eleitoral por qualquer órgão do poder executivo ou legislativo. Acostumados a decidir sob a cor de bandeiras partidárias, ao sabor de maiorias parlamentares e sob a influência da mais variada gama de grupos de pressão, esses poderes seriam de todo ineptos a ocupar a necessária posição de neutralidade e eqüidistância entre os concorrentes no pleito. Não é por outro motivo que o sistema político-eleitoral brasileiro acabou por pegar uma carona na tradição de isenção e abstencionismo político do Judiciário, deixando em suas mãos a realização da eleição.

De dois em dois anos, nos pleitos gerais e municipais, a Justiça Eleitoral volta ao centro da cena política para comandar o processo pelo qual os cidadãos escolhem seus governantes. Sua participação nesse processo não se limita a decidir as disputas entre os concorrentes políticos, mas estende-se ao exercício de um poder de polícia sobre as campanhas políticas e ao comando da coleta e da apuração dos votos.

De alguma forma pode-se dizer que a Justiça Eleitoral, durante as eleições, mais do que um árbitro entre posições antagônicas, é um xerife do espaço público em que elas se desenvolvem. A ela cabe institucionalmente dizer o que pode e o que não pode nesse espaço, encarregando-se de reprimir os abusos e determinar medidas imediatas de compensação, porque, nessas circunstâncias, a justiça que tarda, inexoravelmente falta. Passada a eleição, de nada adianta reclamar pelos votos que foram perdidos ou deixaram de ser ganhos em razão de um ato injustamente praticado.

Nessa atividade de polícia do desenrolar do debate político-eleitoral, a imprensa é, sem dúvida, o principal alvo de medidas interventivas da Justiça Eleitoral. É claro, o debate político cada vez mais desenvolve-se através da mídia, impressa e eletrônica. O “corpo-a-corpo”, o discurso na praça, a panfletagem ou a preleção no botequim, embora sempre presentes, têm uma importância bastante marginal se comparados com a inserção de uma notícia em um jornal de grande circulação ou em um programa de rádio ou televisão. A definição da intenção de voto, outrora baseada fundamentalmente em relações pessoais, é hoje em grande parte mediada pelos meios de comunicação.

Assim, a mídia é hoje a principal arena onde se desenvolvem as disputas políticas de nossa sociedade.

Se essa constatação é verdadeira, pelo menos duas questões devem necessariamente ser respondidas. Primeiro, até que ponto a imprensa, de maneira geral, é um espaço verdadeiramente democrático para o desenvolvimento do debate político. Segundo, em que medida é admissível e aceitável a interferência da Justiça Eleitoral nos meios de comunicação para neles garantir os princípios democráticos pelos quais devem pautar-se as disputas eleitorais.

Não obstante os cânones da ética jornalística apontem para a necessidade de um mínimo de neutralidade e objetividade no trato da informação, sabe-se que, notadamente em matéria eleitoral, não é isso que ocorre. Os veículos de comunicação de forma mais ou menos velada assumem ? e patrocinam ? suas preferências eleitorais. Nesse aspecto, os meios de comunicação longe estão de ser um espaço de livre transmissão e debate de idéias, obedecendo a condicionantes ideológicos dos grupos dominantes em cada órgão de imprensa.

Em favor da objetividade jornalística, alguém pode argumentar, também, que a imprensa é sobretudo um espaço de mercado, no qual o fluxo da informação é determinado pelos mecanismos de oferta e demanda, fazendo com que o produto jornalístico seja fruto da opção do consumidor, não da orientação ideológica do dono do jornal ou da emissora. No entanto, também essa colocação é inexata, pois, na dinâmica de mercado, ninguém garante que ao consumidor estão sendo dadas todas as alternativas de escolha, tendo em vista as barreiras econômicas e legais para entrada no mercado. Basta ver os custos e o risco da colocação de um jornal em circulação ou os requisitos necessários para obtenção de um concessão de rádio ou televisão.

A imprensa, assim, concebida como um espaço público de transmissão e debate de idéias ou como um espaço de mercado, é um meio notadamente imperfeito para alcançar-se certos objetivos sociais, estranhos às diferentes lógicas que regem o mercado ou o poder interno dos grupos jornalísticos. No caso das eleições, esses objetivos sociais são os de acesso livre e igualitário aos meios de difusão de idéias. Se os meios de comunicação não respondem adequadamente a esses objetivos, cabe retomar a segunda questão indicada acima, qual seja, a de saber até que ponto é aceitável uma intervenção estatal (através da Justiça Eleitoral) para corrigir essas imperfeições na realização de valores fundamentais à sociedade.

Presentemente, duas formas de intervenção na imprensa vêm sendo usadas pela Justiça Eleitoral. A primeira delas é o horário eleitoral gratuito, que impõe às emissoras de rádio e televisão a transmissão, em rede obrigatória, de programas político-partidários, com a finalidade de compensar eventual dificuldade de grupos políticos terem acesso a esses meios de comunicação. A segunda é o direito de resposta, concebido com o objetivo de corrigir distorções intencionais de informações divulgadas pela imprensa.

Sem entrar na discussão sobre a adequação ou impropriedade desses instrumentos legais e judiciais, a constatação é de que a mídia nos dias atuais coloca-se como elemento essencial na maneira como os cidadãos definem suas preferências eleitorais e, com isso, determinam os rumos da sociedade política. Assim, não se pode negar que a coletividade, através de seus mecanismos institucionais, como no caso da Justiça Eleitoral, deva ter alguma forma de controle sobre os meios de comunicação, de forma a conservá-los em sua vocação natural de espaço livre e igualitário de debate político.

Não se trata, é claro, de defender qualquer restrição à liberdade de expressão ou à liberdade de imprensa, valores que devem ser a qualquer custo preservados. Trata-se, isto sim, de demonstrar a necessidade de salvaguardas, capazes de garantir, durante o processo eleitoral, um mínimo de igualdade de acesso aos meios de comunicação e de corrigir abusos por parte de grupos ideológicos ou de interesse na manipulação da informação divulgada pela imprensa. Nesse sentido, observa-se que a imprensa e a Justiça Eleitoral, mais do que a neutralidade, devem perseguir o objetivo da pluralidade, permitindo a participação igualitária no processo político de todas as tendências em disputa.

 

(*) Promotor de Justiça em São Paulo, mestre e doutor em Direito Processual pela USP, professor da UNIP, membro do conselho de direção do IEDC.

 



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