Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Liberdade para mentir

LEITURAS DE VEJA

Démerson Dias (*)


"Desde sua fundação, a Abril norteou sua atuação por valores éticos claramente definidos, como independência jornalística, liberdade de expressão e compromisso com a informação."


Piada de extremo mau gosto? Mentira deslavada? Ou escárnio com os leitores de boa fé? A edição de Veja de 7/11/01 é para ser folheada com luvas assépticas. Deveria ser obrigatório um alerta na capa. O conteúdo é pior do que qualquer carbúnculo produzido na guerra biológica. Veja é um atentado à Democracia.

Tenho diversas críticas a Leonel Brizola.

Todas elas de ordem política.

Das páginas recentes de Veja constato que Brizola deve ser bem melhor do que a imagem que faço dele, pois, como disse certa vez Cristovam Buarque, podemos conhecer uma pessoa não só por quem a elogia, como também por quem a ataca. A matéria de Veja é tão rasteira que escapa de aferição sob qualquer crivo ético. É o tipo de produto jornalístico (sabe-se lá sob que intenção) que depõe contra qualquer argumento em favor da liberdade de imprensa e expressão. É preferível perder em liberdade do que perder a ética.

Não há liberdade que pague a mentira, pois esta é uma das patrocinadoras do fim da liberdade. A quem servem as mentiras de Veja? Sim, porque mentira não é somente a informação enganosa, mas também a verdade mal contada.

Diferença de parceiros

Já o primeiro parágrafo é odioso ao anunciar como elogio uma crítica velada através de subterfúgio retórico. Em que manual aquilo é considerado jornalismo? Por mais escusos meandros que pudéssemos observar na vida de Brizola, ela é incomparavelmente mais limpa e transparente que a vida e os bastidores dos setores de comunicação brasileiros. Inclusive os dominados pelas famílias Civita, Marinho, Frias. Curioso que conseguem todos ser piores do que os Mesquita, que assumem desavergonhadamente suas opções capitalistóides. O engajamento explícito acaba sendo menos truculento do que a imparcialidade anética de coisas como Veja.

A primeira coisa que falta a Veja é compromisso com a verdade. Como já disseram corretamente os mercenários a serviço da Folha (a quem falta igualmente a autocrítica), é possível mentir dizendo somente a verdade. A mídia brasileira condena o nazismo, mas recorre a seus métodos.

Incrível, Veja é tão ruim que nem gente como o Sergio Conti agüenta! Veja-se o nível! A revista é uma lobotomia a sangue frio. Um atentado a qualquer sociedade democrática.

Só mesmo aqueles leitores que foram catequizados pela revista não perceberão a profunda má-fé no vistoso gráfico que abre a matéria. Creio que Brizola, não fosse o asco de ter que se referir a esse negócio aí, poderia usar a matéria como atestado de lisura, comparado com a classe política brasileira, inclusive os beneficiários de Veja.

Pensando bem, em se tratando de Veja é melhor perder a chance do que confessar ter freqüentado suas páginas por qualquer razão que seja.

Lá está claro, desde 1988 Brizola possuía os mesmos 3 apartamentos e uma casa de campo. Tanto pior que com as vendas anunciadas o patrimônio avaliado regride. A vinculação com os mandatos é inominável e a leitura enviesada e casuísta não permite que se analisem fatos. Importa que se veja apenas a versão de Veja. Uma sujeira!

Onde então está a notícia? São sete páginas de subjetividades, leviandades camufladas por dados imprecisos ou deduzidos. Além disso, é pauta fria, portanto seu uso é também casuístico. Será que isso tudo é a Playboy se vingando do episódio Neusinha? Cabem até as divergências pessoais e/ou políticas familiares que já são requentadas e aceitáveis no contexto em que ocorrem.

Inaceitável é sua exploração política e pública. Como se as quedas de braço que ocorrem nos grupos familiares da imprensa, entre si e internamente não fossem piores e as motivações mais espúrias e mesquinhas. Os conflitos familiares de Brizola são uma poça de água da chuva perto do lamaçal das famílias de comunicação brasileiras.

Sob outra ótica muito comum em Veja, Brizola seria considerado um empresário apenas modesto. Não é proprietário de nenhuma TV a cabo ou provedor de internet e seus "parceiros internacionais" sequer teriam condições de freqüentar os mesmo ambientes dos parceiros do Grupo Abril. Além disso o velho caudilho, ao menos, não é tão mercenário em relação às suas convicções.

Tremendo embuste

Não iria aprofundar muito na barriga maldosa que a própria Veja plantou na matéria. Só para que os conspiradores travestidos de repórteres não pensem que são as mentes mais privilegiadas dentre todos os habitantes do planeta, vamos também brincar com os números. Só que com mais responsabilidade que eles.

Se é possível até aferir a produtividade das propriedades no Uruguai, seria questão de aritmética simples calcular em que medida, com a variação patrimonial do rebanho (R$ 5 milhões segundo a revista), acompanharia ou não a evolução apontada. A reportagem ficou pela metade, mas ao contrário de não levar em conta para deixar barato, parou aí o levantamento, pois senão provaria ao leitor que a matéria toda é um imenso engodo. Na verdade, essa manobra representa uma profunda má-fé, manipulação jornalística das mais asquerosas. Vamos prosseguir então no melhor estilo Aldo Novak, para descobrir o que não querem que saibamos.

Pegaram o salário. Ora, façam o mesmo com FHC e vejam onde vai dar. Como é que ele paga os cortes e gravatas? Vai ver que é tudo doação da família Civita.

Como a matéria parte de 1983, peguemos só aqueles 4,3 milhões do começo da história, e a poupança. Isso mesmo, aquela poupancinha que só não é mais sem vergonha do que quem pautou, escreveu e editou a matéria (não vou falar do diagramador e do fotógrafo, que até que fizeram um serviço razoável). Partindo em 1/1/94, o camarada Brizola teria hoje R$ 136.816.843,85. O pessoal da revista não só é ruim (mas bota ruim nisso) de matemática, como não deve nem conhecer o dinheironet, sítio de economia hospedado pelo Universo On Line. Isso na poupança!

Se fosse num fórum econômico Brizola seria condenado como empresário incompetente, perdulário, pois o crescimento de seus investimentos não foi nem vegetativo, em todos os sentidos ele perdeu patrimônio. Só não é mais incompetente do que quem escreveu a matéria. Mas seria o caso de sugerir a demissão deles? Claro que não. Vamos olhar tudo isso por um outro ângulo e veremos que a matéria toda é um embuste tremendo, vindo de quem vem.

Ética é grego

O título dado à matéria tem pretensão de denúncia que até caberia em alguns órgãos de imprensa, jamais na Veja. A revista enaltece quem faz fortuna mesmo que por meios duvidosos ou não sabidos. Só para Brizola isso tem tom de denúncia. Alguém poderia dizer que a revista é serviçal das elites. Engano, a revista é produzida exatamente por parte dessa elite responsável pelo obscurantismo em que vivemos. Veja é mais que porta- voz, é um instrumento. Isso é até mais grave do que na ditadura, pois não há ameaça à vida de ninguém. A vergonha na cara é a única salvaguarda que impediria esse tipo de leviandade, provavelmente trata-se de material muito escasso na redação de Veja. A Veja deixou de ser conivente com a ditadura, para ser parceira da gangue que assumiu o entorno do poder subseqüentemente. Se é que por trás não são os mesmos.

Sob que ótica Brizola fez fortuna? Pela minha, que ganho R$ 1.560 por mês, pode até ser. Mas é um acinte que o grupo Abril comente os mirrados 15 milhões de reais de Brizola do alto do 1 bilhão e meio de dólares de faturamento anual estimado pela Forbes (1,8 bi, segundo o Clarín). Mais de 200 vezes. Nem cabe no gráfico a diferença. Competência? Quanto o grupo não explora de seus trabalhadores e do público para atingir valores tão astronômicos?

Coitado do Brizola e do Recife (citado na matéria,). Que Recife, que nada, o faturamento do grupo Abril é o dobro da arrecadação de todo o estado de Pernambuco. Quanta coragem, Veja!

É explicável que Brizola percorra a variação patrimonial apontada. Espantosa é a evolução do patrimonial do Grupo Abril.

Mas é verdadeiramente incompreensível como alguém possa administrar tamanha falta de caráter ao publicar matérias como essa. Se Brizola levaria 70 anos de poupança para atingir seu patrimônio, quanto tempo levaria para alcançar o Grupo Abril?

Infelizmente a informação da evolução patrimonial do grupo não está tão disponível quanto a do velhinho, mas o fato é que, comparado ao Grupo Abril, o empresário Brizola é um indigente e incompetente com seu patrimônio. No passo de Brizola, levaria 7 mil anos (de todo o patrimônio, e não dos parcos salários) para alcançar o que o império Civita levou 51 anos. O Grupo Abril embolsa mais de um Brizola e meio por mês. Não é desfaçatez demais? Trata-se ou não de abuso do poder econômico por parte da empresa?

Não respondam, tenho certeza de que falar em ética é literalmente grego para a Veja.

Alienação e burrice

Mas isso tudo é pouco? Vejamos!

Veja usou para atacar Brizola o equivalente em publicidade a 693 mil reais (7 páginas). Movida com que interesses? Ainda é possível dizer mais, para comprar todas as páginas de Veja em publicidade Brizola empenharia toda sua “imensa fortuna”. Não sobraria nem para pagar a produção do próprio anúncio. Esses números todos que colhemos em diversas fontes nem fecham, e podem estar subestimados, pois projetando a publicidade da revista, só a Veja já garante mensalmente em publicidade para o grupo a bagatela de 27 milhões, ou seja, 1,8 Brizola. Em um mês, 20 anos da riqueza do Brizola.

Tem alguém maluco nessa história e não sou eu, nem o Brizola.

Brizola até pode ter garantido um futuro tranqüilo para os seus, mas se alguém na família Civita tem algo na consciência, realmente o futuro não será muito leve. Com matérias desse tipo não é realmente de se admirar por que o grupo é tão rico. O custo ético desse enriquecimento é que deve ser difícil suportar.

Lamentável que a Gazeta Mercantil, talvez a única publicação econômica séria do país, caia nas garras do Grupo Abril. Agora farão dobradinha com o Valor Econômico e decididamente não haverá de forma alguma informação econômica confiável nos meios de comunicação. Impressionante como a ditadura militar foi ingênua. Se tivesse aceito o grupo em seu círculo, como a atual ditadura civil, certamente não seria necessária censura nenhuma. O "fim da censura" serviu apenas para que as exploradoras da comunicação pudessem estabelecer livremente o preço de suas convicções e linhas editoriais.

Vocês certamente precisam lutar muito para que o Brasil nunca seja um país em que prevaleçam a justiça e a democracia. Mas lutem mesmo, com todos os tipos de recursos, como vêm fazendo. Num país decente jamais caberá algo como Veja. Veja é a melhor alternativa para aqueles que, além de pretenderem ficar cegos, almejem também se aprimorar em alienação e burrice. Vocês são PhD nisso.

Quanto a caráter, valores éticos, é melhor deixar pra lá.

(*) Militante petista e integrante da lista de discussão Praxis, da internet