Tuesday, 15 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Lições que bem valem para nós

ECOS DA FRANÇA

Jorge Felix (*)

Depois da surpresa de políticos, intelectuais, institutos de pesquisa, eleitores e principalmente a mídia com o resultado do primeiro turno da eleição presidencial, a sociedade francesa ainda está debruçada sobre este fenômeno para descobrir as causas da vitória de Le Pen sobre Lionel Jospin, que caiu sobre o país como uma ordem da Ferrari em plena pista para um dos pilotos permitir uma inexplicável ultrapassagem. Como no processo político uma eleição no Norte pode ser reprisada no Sul, ainda mais num mundo globalizado, é importante para o Brasil ajudar os franceses a encontrar suas respostas. E para isso é fundamental retornarmos ao ambiente francês pré-eleitoral. É o famoso "como aquilo deu nisso".

Há menos de um ano da eleição, os franceses viviam num clima absurdamente atípico daquele país que serviu de alicerce para o pensamento político mundial. Algo muito estranho se passava na sociedade francesa. Para exemplificar, vamos começar pela própria mídia.

Depois do sucesso dos programas de reality show em vizinhos europeus e, sobretudo, nos Estados Unidos, a França se rendeu a este modelo de entretenimento popular. Em maio de 2001, todas as publicações num banca de jornal falavam do Loft Story (o Big Brother francês) em suas capas. A emissora M6, segunda colocada, ultrapassara a histórica líder de audiência, a TF1, com suas câmeras ocultas a revelar o dia-a-dia de 11 concorrentes na intimidade de um apartamento. O sucesso foi tão estrondoso (o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, ex-correspondente em Paris, comparou às barricadas de 68) que a TF1 teve que se render ao formato e também inventar o seu Big Brother. Pior.

Lama nas páginas

A paixão do telespectador francês por Loft Story provocou a queda do apresentador Bernard Pivot, 66 anos, titular de um programa de literatura "cabeça", há mais de 30 anos no ar. O Panelão de cultura, título da atração, chegou a ter mais de 1 milhão de espectadores, mas por causa dos reality shows que invadiram o horário nobre estava sendo transmitido cada vez mais tarde, e acabou exilado na madrugada. A saída de Pivot do canal estatal France2 foi como a queda da Bastilha. Estava revelado: o francês não gosta mais de ler como antigamente. Nunca mais veríamos aquela cena da francesinha que chega ao café, pede uma xícara, acende um cigarro e abre um livro. A sociedade francesa pré-eleição estava completamente hipnotizada por esses programas.

Na briga pela audiência, além dos reality shows, os telejornais franceses começaram a dar uma importância, para muitos descabida, ao noticiário policial. No entanto, os números da violência são menos estarrecedores do que as imagens e o tom das notícias na voz de locutores famosos. O tema foi catapultado para o topo das maiores preocupações dos eleitores. É que em 2001 o número de delitos no país aumentara 8%, ultrapassando 4 milhões de crimes. No entanto, os homicídios caíram 0,48% em relação a 2000. De 2,5 milhões de assaltos, apenas 9 mil foram feitos com arma. O assunto, porém, foi usado politicamente de uma forma tão descarada que alguns adversários de Jospin comparavam a França ao Rio de Janeiro. O fato é que o apelo foi suficiente para pegar alguns eleitores mais atentos. Embora fossem poucos, porque a maioria estava mesmo de olho em Loft Story.

Outro motivo de tal apatia do eleitorado francês antes de ir às urnas era a corrupção. François Miterrand, maior nome do Partido Socialista, já tinha deixado seu posto com um epílogo de denúncias em sua biografia política. E isto, evidentemente, atingiu Jospin. Ele foi contaminado pelo partido. Principalmente, quando esse argumento era sempre usado como defesa pelos partidários de Jacques Chirac. Nos últimos 12 meses, Chirac mergulhou em denúncias. Em maio de 2001, o Le Monde panfletava sua manchete em postes e bancas de jornais: "A prova contra Chirac". A sociedade francesa assistia a tudo isto com um pregador no nariz. Essa atitude só alimentava o desprezo com a política e servia para colocarem os candidatos no mesmo saco de gatos. Todos, ou pelo menos os principais concorrentes, tinham a sua mácula.

Resposta raivosa

Esse sentimento de desencanto, somado a uma despolitização provocada por falta de informação ou informação deturpada, levou a sociedade francesa a uma insatisfação coletiva. Esse clima encontrou os franceses bem diferentes daquele estereótipo que o mundo conhece, de pensadores, intelectuais e sempre atentos a discussões calorosas sobre a democracia. Desta vez, os franceses estavam mais preocupados em manter seus empregos e viver num país que, cada vez mais, se rende à urgência. Uma capa da L’Express pré-eleitoral questionava: "Por que se apressam os franceses?" E a ilustração era de uma mulher comum, telefone celular no ouvido e fazendo sinal para um táxi que passava direto. O desemprego diminuiu nos cinco anos de Jospin, de 12% para 6%, mas ainda é alto. Os franceses estão ainda mais individualistas, fechados nos seus mundinhos e preocupados (como o mundo todo) com a sobrevivência.

Neste ambiente, é fácil compreender por que 28% dos eleitores simplesmente decidiram ignorar a eleição. Afinal, por que votar se todos os candidatos são corruptos mesmo? Por que votar se ninguém é capaz de resolver meu problema e o de minha família? E que diferença vai fazer se, para os problemas coletivos, todos os candidatos apresentam a mesma proposta? Sim, porque para a principal preocupação dos franceses, a violência, os dois candidatos principais tinham a mesma proposta: um ministério de segurança pública.

A esta altura o leitor deve estar fazendo a inevitável comparação entre o clima pré-eleitoral na França e no Brasil. Sim, guardamos mais similaridades com o Primeiro Mundo do que podemos imaginar. Principalmente, quando o Primeiro Mundo desce um pouquinho e começa a parecer mais com o Terceiro. O importante é perceber que a resposta do eleitorado nestas situações ? e aqui no Brasil já vimos isso em 1989 ? é pregar uma grande peça em políticos, intelectuais, institutos de pesquisa ? e jornalistas. É dar uma resposta raivosa, como foi o caso não da votação de Le Pen, mas da abstenção. Todos esses fatores conjugados têm a força de um terremoto ? que nunca acontece de uma hora para outra.

(*) Jornalista